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quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A escalada - Adelaide Dittmers

 




A escalada

Adelaide Dittmers

 

A mulher andava de um lado par o outro da sala, esmagando com passos impiedosos o assoalho, que rugia ao seu pisar.

Pensamentos latejavam, sacudiam, explodiam e ecoavam em seu coração.  O nervosismo azedava-lhe os sentidos. Sentia que estava morrendo dezenas de vezes.  O mundo estava desabando sobre ela.  O papel que há pouco recebera provocou um terremoto em seu corpo inteiro. Ondas de desespero a invadiam e a faziam ofegar pelo ar que lhe faltava.

Como iria enfrentar isso?  Sempre fora muito corajosa e enfrentara vários desafios, mas este, que estava se apresentando agora era muito diferente e não dependia só dela.

Começou, então, a relembrar como tudo acontecera naquele dia de escalada na altiva montanha.  As trilhas, que recortavam o verde intenso, vibrante e iluminado.  O rio esverdeado e caudaloso, que se feria nas ásperas e impiedosas pedras, que o pontilhavam e faziam a água explodir em espumas alvas e transparentes.  O dia frio de inverno iluminado por um sol aconchegante e morno e pelo azul profundo de um céu sem nuvens.

O grupo de alpinistas, que tentava submeter a orgulhosa montanha à sua ousada escalada, fincava com dificuldade os ganchos nas rochas expostas da encosta íngreme.

Aquele esporte sempre a atraíra.  Adorava desafios, que a deixassem vulnerável e a vitória da conquista a inebriava.  Era considerada exímia nesse alpinista.

 A gigante, que se erguia a sua frente tinha uma dificuldade maior do que muitas outras.  Suas escarpas eram lisas e traiçoeiras.

Pela sua grande experiência, era a condutora daquele grupo de jovens, ávido de se arriscar na aventura de conquistar a inóspita montanha, que estava lutando para se entregar a eles.

O planejamento da escalada fora feito minuciosamente.  Temperatura, possibilidades de ventos fortes, medição de tempo da subida, eventualidade de chuva, tudo verificado.

 O único risco era um jovem inexperiente, que insistira em ir com eles.  A teimosia e os argumentos dele foram mais fortes do que a cautela e previdência dela, porque no fundo adorava a audácia daqueles que praticavam o esporte, em enfrentar perigos.  Tinha consciência, no entanto, de que a inexperiência era uma ferrenha rival da eficiência.

Tranquilamente as grandes dificuldades estavam sendo vencidas com muito cuidado.  A adrenalina corria desenfreada pelas veias de todos.

A alguns metros do pico, a parede rochosa tornou-se vertical.  O verde da vegetação ficara muitos metros abaixo.  Era o grande desafio.  Todos se prepararam para vencê-lo.  O novato, entretanto, ao se deparar com a dificuldade à sua frente e ao se conscientizar da altura em que estavam, desesperou-se e morrendo de medo, começou a tentar subir mais depressa para alcançar o topo em menos tempo e livrar-se do pavor que sentia. 

Na sua imaginação ela viu o rapaz tentar, desesperadamente, fincar o gancho numa das saliências da rocha com mãos trêmulas e úmidas pelo suor. Com certeza, mal conseguia segurar o gancho, que lhe escapou das mãos, deixando-o pendurado, o que quase arrastou os outros com ele.

Nesse momento da lembrança daquele dia, a mulher jogou-se no sofá.  As mãos crispadas cobriram as faces.  A ordem, que gritou ao rapaz, soou em seus ouvidos.

— Balance a corda e tente se prender novamente.

O jovem, porém, estava fora de si. O medo abocanhara-o todo. As mãos soltaram-se da corda e ele caiu no vazio.  Gritos de horror ecoaram pelo vale.

O grupo apressou-se em chegar ao topo da montanha.  Mais abaixo o alpinista jazia em um platô verde da encosta.  O silêncio cobriu a indiferente paisagem com um manto negro.

Desde aquele dia, o remorso corroía a alma dela.  Sentia-se culpada.  Fora irresponsável.  E agora tinha acabado de receber uma notificação de que os pais do infeliz rapaz a estavam protestando.

Ela tinha conhecimento de que a legislação não cobria esses tipos de acidentes e que houve outro famoso processo, que não dera em nada, mas mesmo assim estava morrendo de medo de ser julgada. Tinha um nome a zelar.  O alpinismo era a sua vida.  Dentro dela, o remorso travava uma luta feroz com a angústia de pagar pelo seu erro.

Sempre quis estimular nos jovens o esporte, que amava, mas devia ter dito um sonoro e resoluto não ao novato.

De repente, imaginou que pegou um forte gancho dentro dela e o fincou na coragem pétrea, que sempre tivera e que a fazia alcançar os perigosos cumes das montanhas.

Levantou-se do sofá.   O rosto sério expressava a decisão tomada.  Pegou o celular e ligou para seu advogado.

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