Infância
Pedro Henrique
Ouvi do mar a canção, delineada pelas mãos do destino, que consagrava o
corpo da jovem ao fardo de velejar pelos mares da solidão.
De seus olhos
verte o sangue que encharca o manto branco com o qual se protege dos homens, da
vida, do silêncio…
Procura, cava, vasculha na lama a possibilidade de sair
pelas vielas do extraordinário para analisar se lá há de encontrar algum
sentido para seu pobre corpo.
Tudo aqui me é um tanto
estranho, todavia real, e o real me assusta.
Vi-a quando comprava cigarros no bar e seu olhar, longínquo, humano e
odioso, emanou um perfume de berros e gemidos das entranhas do indizível,
portanto me intriguei em mapear o que de inquietante havia ali.
Olhando com mais afinco,
pude notar que se tratava de família. Sei como relacionamentos permeados de
arames farpados podem dissolver a alma no copo da amargura, então, sim,
legitimei minha tese e fui buscar as respostas, com isso voltei em uma parte
crucial de sua vida: infância.
Ao averiguar, vi uma cena
que provocava-me ao extremo:
Uma
criança, com asas prontas para o voo no céu dos devaneios, dando banho em uma
senhora.
Começou
derramando água em seus cabelos grisalhos, em seguida sobre o seio tímido e
indo ao pé. Vi que do olhar da pequena lágrimas indeléveis caíam, batizando seu
próprio ser à coragem de defrontar-se com a vida e dizer: aqui estou, eu
aguento.
Esta cena me fez procurar
pelo seu começo, que encontrei no abandono da pequena pela própria mãe. E assim
sendo, foi jogada nos braços da avó paterna que teve de cuidar dela.
Vasculhei
mais um pouco aquela casa e encontrei um homem alto e com a aparência de cães
sarnentos e veiacos, sim, o pai da menina. Porém, não era o suficiente, tive
que ir mais a fundo.
Encontrei
a certidão de nascimento dela com o registro apenas do nome dele, então soube:
a mãe fugira para sempre.
Tinha desejos, sonhos,
ambições e tudo isso tinha um preço imposto pelos bancos do destino e o amor
materno não foi forte o suficiente para prender aquela que tinha em si as
elevadas metrópoles, as festas e as passarelas da grande São Paulo.
A avó pegou para cuidar a
pedido do pai que trabalhava como camioneiro e nunca parava em casa, mas não
importava, bastava a escola particular estar paga, o balé e o inglês em dia e
pronto, era o melhor pai do mundo. Não importa a atenção, o sentimento, o beijo
antes de dormir, os parabéns no aniversário.
Porém, quem pode julgar um
pobre ser que fez de seus trapos, roupas e tenta, mesmo sem saber como, ser
pai?
A avó, então, teve que
olhar para o rosto daquela que delatava na arquitetura da face ser filha da
mulher que destruiu a vida de seu primogênito.
Ah, mas isso não ficaria
por isso mesmo, não poderia pegar a mãe, entretanto a filha? Essa podia tudo.
Beliscões, tapas, serviço pesado e noites trancada no quarto e devia agradecer:
“Se não fosse eu, você estaria em um orfanato.”
Com isso, erguia seu manto
de dor, secava as lágrimas de angústia e se perguntava por quê?
Mas quem tem essa
resposta, não é mesmo?
Tinha uma amiga: Ana
Paula. Era lá que ia quando não aguentava segurar o fardo de ser a eleita pela
violência e desamor.
Ana tinha uma coleção de
bonecas que dava à nossa pequena a chance de descortinar o que seria a
felicidade.
Aqueles vestidos ínfimos,
aqueles cabelos loiros e as imitações e onomatopeias mostravam a ela que sim,
infância podia ser uma palavra presente em seu vocabulário.
Com o passar dos anos, o
corpo foi ganhando forma e revelando mais ainda sua origem, o que fazia a avó
se enterrar nas plantações do ódio que nutria desde o dia em que seu filho
revelara que seria pai da filha da mulher que ela desaprovava como nora,
portanto podia intensificar a violência.
Não
precisava mais do cinto nem do chinelo, tinha direito a vassoura ou ao bico de
boi que comprara para mostrar que podia, sim, dissolver sua raiva com as
chibatadas e sentar-se na mesa farta da vingança.
No entanto, desconhecia
que o coração do homem tem suas idiossincrasias e que sob pressão, não existe
submissão nem civilização, só nos entregamos à nossa forma primitiva e dela
forjamos nosso louvor à sobrevivência.
Isto posto, temos o fato
que engendra a abertura deste texto. Falo do bico de boi ser utilizado como
objeto de medo pela avó e tal fato homologado pelas feridas nas costas da neta
que a cada chibatada domava dentro de si o animal que clamava para ser
desenjaulado e ao ter seu anseio aparecido e aprovado voou para abater seu algoz,
mas nem teve chance, esta se apavorou e transigiu o corpo para trás de tal
forma que quando se deu por si, estava no final dos degraus da escada da casa
com uma poça de sangue ao seu redor.
E como um coração ferido
não esquece dos espinhos, a neta permaneceu imóvel e, se não fosse o pai chegar
naquele exato momento, a avó estaria jazendo embaixo da terra, contudo viveu
para contrariar todos os que desejavam vê-la gritando no lugar onde todas as
almas ruins gritam.
Ah, mas a vida
é sábia e o que se faz aqui, se paga aqui. Viveu? Sim, entretanto, não falava
nem gesticulava. Tetraplegia, disse o médico.
E assim
sendo, o carro do pão passou no dia seguinte, os automóveis continuaram a
buzinar, o pai, o caminhão, pois para andar e a vida com todo seu labor, teve
de se movimentar. Ela? A pequena? Coitada, teve que da avó cuidar.
Dar
banho, trocar fraldas, fazer a comida, lavar as roupas, etc., etc., etc.
Um dia,
enquanto arrumava o quarto, encontrou o bico de boi e sentiu em seu peito um
sentimento já um tanto familiar se aproximar. Olhou para o chicote e para a avó
sentada na cadeira de rodas defronte à janela do quarto e resolveu
experimentar.
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