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quarta-feira, 12 de novembro de 2025

INFÂNCIA - PEDRO HENRIQUE

 




Infância

Pedro Henrique

 

     Ouvi do mar a canção, delineada pelas mãos do destino, que consagrava o corpo da jovem ao fardo de velejar pelos mares da solidão. 

     De seus olhos verte o sangue que encharca o manto branco com o qual se protege dos homens, da vida, do silêncio…
      Procura, cava, vasculha na lama a possibilidade de sair pelas vielas do extraordinário para analisar se lá há de encontrar algum sentido para seu pobre corpo.
     Tudo aqui me é um tanto estranho, todavia real, e o real me assusta.
Vi-a quando comprava cigarros no bar e seu olhar, longínquo, humano e odioso, emanou um perfume de berros e gemidos das entranhas do indizível, portanto me intriguei em mapear o que de inquietante havia ali.
     Olhando com mais afinco, pude notar que se tratava de família. Sei como relacionamentos permeados de arames farpados podem dissolver a alma no copo da amargura, então, sim, legitimei minha tese e fui buscar as respostas, com isso voltei em uma parte crucial de sua vida: infância.
     Ao averiguar, vi uma cena que provocava-me ao extremo:

     Uma criança, com asas prontas para o voo no céu dos devaneios, dando banho em uma senhora. 

     Começou derramando água em seus cabelos grisalhos, em seguida sobre o seio tímido e indo ao pé. Vi que do olhar da pequena lágrimas indeléveis caíam, batizando seu próprio ser à coragem de defrontar-se com a vida e dizer: aqui estou, eu aguento.
     Esta cena me fez procurar pelo seu começo, que encontrei no abandono da pequena pela própria mãe. E assim sendo, foi jogada nos braços da avó paterna que teve de cuidar dela.

     Vasculhei mais um pouco aquela casa e encontrei um homem alto e com a aparência de cães sarnentos e veiacos, sim, o pai da menina. Porém, não era o suficiente, tive que ir mais a fundo.

     Encontrei a certidão de nascimento dela com o registro apenas do nome dele, então soube: a mãe fugira para sempre.
     Tinha desejos, sonhos, ambições e tudo isso tinha um preço imposto pelos bancos do destino e o amor materno não foi forte o suficiente para prender aquela que tinha em si as elevadas metrópoles, as festas e as passarelas da grande São Paulo.
     A avó pegou para cuidar a pedido do pai que trabalhava como camioneiro e nunca parava em casa, mas não importava, bastava a escola particular estar paga, o balé e o inglês em dia e pronto, era o melhor pai do mundo. Não importa a atenção, o sentimento, o beijo antes de dormir, os parabéns no aniversário.
     Porém, quem pode julgar um pobre ser que fez de seus trapos, roupas e tenta, mesmo sem saber como, ser pai?
     A avó, então, teve que olhar para o rosto daquela que delatava na arquitetura da face ser filha da mulher que destruiu a vida de seu primogênito.
     Ah, mas isso não ficaria por isso mesmo, não poderia pegar a mãe, entretanto a filha? Essa podia tudo. Beliscões, tapas, serviço pesado e noites trancada no quarto e devia agradecer: “Se não fosse eu, você estaria em um orfanato.”
     Com isso, erguia seu manto de dor, secava as lágrimas de angústia e se perguntava por quê?
     Mas quem tem essa resposta, não é mesmo?
     Tinha uma amiga: Ana Paula. Era lá que ia quando não aguentava segurar o fardo de ser a eleita pela violência e desamor.
     Ana tinha uma coleção de bonecas que dava à nossa pequena a chance de descortinar o que seria a felicidade.
     Aqueles vestidos ínfimos, aqueles cabelos loiros e as imitações e onomatopeias mostravam a ela que sim, infância podia ser uma palavra presente em seu vocabulário.
     Com o passar dos anos, o corpo foi ganhando forma e revelando mais ainda sua origem, o que fazia a avó se enterrar nas plantações do ódio que nutria desde o dia em que seu filho revelara que seria pai da filha da mulher que ela desaprovava como nora, portanto podia intensificar a violência. 

     Não precisava mais do cinto nem do chinelo, tinha direito a vassoura ou ao bico de boi que comprara para mostrar que podia, sim, dissolver sua raiva com as chibatadas e sentar-se na mesa farta da vingança.
     No entanto, desconhecia que o coração do homem tem suas idiossincrasias e que sob pressão, não existe submissão nem civilização, só nos entregamos à nossa forma primitiva e dela forjamos nosso louvor à sobrevivência.
     Isto posto, temos o fato que engendra a abertura deste texto. Falo do bico de boi ser utilizado como objeto de medo pela avó e tal fato homologado pelas feridas nas costas da neta que a cada chibatada domava dentro de si o animal que clamava para ser desenjaulado e ao ter seu anseio aparecido e aprovado voou para abater seu algoz, mas nem teve chance, esta se apavorou e transigiu o corpo para trás de tal forma que quando se deu por si, estava no final dos degraus da escada da casa com uma poça de sangue ao seu redor.
     E como um coração ferido não esquece dos espinhos, a neta permaneceu imóvel e, se não fosse o pai chegar naquele exato momento, a avó estaria jazendo embaixo da terra, contudo viveu para contrariar todos os que desejavam vê-la gritando no lugar onde todas as almas ruins gritam. 

    Ah, mas a vida é sábia e o que se faz aqui, se paga aqui. Viveu? Sim, entretanto, não falava nem gesticulava. Tetraplegia, disse o médico.

     E assim sendo, o carro do pão passou no dia seguinte, os automóveis continuaram a buzinar, o pai, o caminhão, pois para andar e a vida com todo seu labor, teve de se movimentar. Ela? A pequena? Coitada, teve que da avó cuidar. 

     Dar banho, trocar fraldas, fazer a comida, lavar as roupas, etc., etc., etc. 

     Um dia, enquanto arrumava o quarto, encontrou o bico de boi e sentiu em seu peito um sentimento já um tanto familiar se aproximar. Olhou para o chicote e para a avó sentada na cadeira de rodas defronte à janela do quarto e resolveu experimentar. 

 

 

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