A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

quinta-feira, 4 de junho de 2020

O pra sempre, sempre acaba Hirtis Lazarin



Vizinha Fofoqueira - Home | Facebook


O pra sempre, sempre acaba
Hirtis Lazarin


Quem diria que aquela garotinha se transformaria numa jovem inconsequente e odiada por tantos?  Uma garotinha que chegou a esse mundo pra trazer esperança, alegria e vida a um casal que a aguardou por mais de oito anos?  Uma garotinha mimada que cresceu não num quarto infantil rodeada
 de brinquedos, mas num aposento de princesa.
Ana Vitória descobriu bem cedo que tinha superpoderes naquela família.  Usou e abusou deles...

Aos quatro anos, quis muito o balé.  Mas não entendia que bailarina não combina com pratos de macarronada acompanhados de brigadeiros.  A sapatilha de ponta sofria cada vez em que era obrigada a acomodar aqueles pezinhos gorduchos e desengonçados.  Vi muitas e muitas delas descartadas no lixo, boca aberta pedindo socorro.  A desistência só aconteceu depois de uma queda roliça no “PLIÉ".

Na adolescência foi a vez do piano.  "Quero um piano.  A Julia tem piano.  Adoro o som do piano.  Quero também tocar piano.  O desafio durou alguns meses.  Professores?  Vários.  Impossível tolerar tanto capricho e nenhum talento.

Depois veio a pintura e outras artes...  Eu me angustio quando me lembro daquele corpinho jovem carregando uma menina que não sabia ouvir não, que esperneava se contrariada.  Pais batendo a cabeça nas paredes e cheios de culpa quando o erro foi amar demais.

Ana Vitória não se dava por vencida.  A mente criativa e alerta, um farol em meio escuridão do mar, criou um perfil falso nas redes sociais, uma rede de intrigas e fofocas que se tornou a brincadeira mais gostosa de jogar.  Misturava verdades e mentiras, um jogo de xadrez onde movimentava as peças ao bel-prazer.  Criar conflitos, brigas, inimizades era muito divertido.

Além de cuidar da vida dos colegas, mirava também a vida dos vizinhos.  Da janela do seu quarto de frente pra rua e protegida por cortinas fartas, ela via, ouvia e arquitetava planos.  Bisbilhotar era o verbo que movia suas ações o que lhe causava imenso prazer.  Não se importava com a fama que já alcançava distâncias.

Era uma noite chuvosa.  Ana Vitoria abriu parte da janela para o último cigarro.  A rua arborizada cobria-se de folhas soltas pela ventania passageira.  Um carro com faróis desligados apontou na esquina.  Deslizava silenciosa e morosamente; parecia a procura de algo.  Ela apagou o cigarro e esgueirou-se atrás da cortina.  Não poderia essa oportunidade de ouro, uma boa história pra espalhar.  Do seu jeito, é claro!  O carro parou onde havia sacos de lixo empilhados à espera do coletor.  O motorista olhou pra todos os lados e abriu a porta.  Um ouvido bem atento quanto ao de Ana ouviria o “tec” da maçaneta da porta assim que foi acionada.  Isso não aconteceu.  Ele desceu, certificou-se da solidão da rua, tirou uma mala grande do banco de trás e dispensou-a em meio ao lixo acumulado.  Ao retornar ao veículo, relâmpagos simultâneos fotografam detalhadamente o rosto do rapaz.  Ana sufoca um grito antes que ele denuncie sua presença.  Ela conhece o homem que, sorrateiramente, desaparece na escuridão.  Impressiona-a a sutileza e o cuidado dele ao abandonar aquele fardo.  Aquilo não lhe cheirava bem.  Ali rolava um mistério.

Uma chuva pesada desabou.  Ela reacendeu o cigarro não fumado.  Mil pensamentos... O primeiro foi sair e abrir a mala.  Caminhou até a porta da sala e abriu-a cuidadosamente.  Já estava na sacada quando desistiu.  Ainda bem que o bom senso nessa hora venceu a curiosidade.  Tentou dormir, mas como?  Pegou o telefone e ligou ao serviço de emergência policial e fez denúncia anônima.  Sua ansiedade só foi acalmada horas depois quando o carro policial estacionou em frente ao endereço denunciado.  A mala foi arrastada até o poste mais próximo.  Dentro havia o corpo de uma mulher.  Só foi retirado quando o sol já estava alto com autorização da polícia técnica. 

Durante as investigações muitos moradores da rua foram convocados pra depoimento, inclusive Ana Vitória.  Um conflito enorme martelava sua cabeça.  A fama de fofoqueira, de inventar e distorcer fatos e brincar com a vida das pessoas conspiravam contra ela.  Não teve coragem de contar a ninguém o que viu.  Essa decisão custou-lhe noites e dias de tortura.  E numa dessas noites em que não conseguia dormir, acendeu a luz e displicentemente buscou um livro na estante.  Um deles veio ao chão aberto na página treze.  E ali estava escrito entre outras coisas: "Síndrome de abelha: tem gente que pensa que é rainha, mas é apenas um inseto".  Ana Vitória leu e escreveu essa frase mil vezes.

Hoje, é na terapia intensiva que Ana Vitória busca forças pra se libertar do prazer que o vício da fofoca lhe proporciona.  E quem sabe, esclarecer o assassinato da mala.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.

A ÚLTIMA CARTA - Helio Fernando Salema

  A ÚLTIMA CARTA Helio Fernando Salema     Ainda sentada em frente ao gerente do Banco, Adélia viu, no seu celular, a mensagem de D. Mercede...