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quinta-feira, 4 de junho de 2020

Era pra ser um sábado comum...- Hirtis Lazarin




Era pra ser um sábado comum...
Hirtis Lazarin



Estava distraída tirando o pirex do forno, quando o interfone me interrompeu.  Era o jardineiro que me aguardava na portaria do edifício.  Desci não antes de tomar o cafezinho coado na hora e deliciar-me com fatia generosa, ainda quentinha, do bolo de milho, receita herdada da minha bisavó.

Fazia um ano que Toninho cuidava do nosso jardim.  Mãos abençoadas.  Antes um espaço árido, hoje uma obra de arte.  Arbustos esculpidos limitam um tapete branco de lírios da paz, entremeado por caminhos estreitos de cascalho.  Orquídeas presas aos caules longos e finos de dois coqueiros caem em pencas num festival de cores. 

Nossa conversa foi interrompida por gritos histéricos que vinham da rua.  O muro-fortaleza não nos deixava ver o que estava acontecendo, até que alguém chegou ao portão eletrônico.  Tomada por ira fria e violenta, uma jovem exigia, aos gritos, que o porteiro o abrisse.   Queria entrar a qualquer custo.  Diante da insistência da moça, ele saiu da guarita, tentou, mas não conseguiu convencê-la do contrário.  À essa altura, moradores já se apinhavam nas janelas.  O escândalo saíra de controle.

Como síndica do prédio, desci as escadas,  a fim de resolver o problema.  Deparei-me com uma garota de apenas vinte e poucos anos, alta e esguia.  Os cabelos encaracolados e desalinhados escondiam parte do rosto miúdo e bem desenhado.  Uma enxurrada de lágrimas borrava a maquiagem dos olhos, pintando de preto o rosto branco e sardento.  Gritava palavrões de desgosto e fúria que não combinavam com sua aparência cuidadosa.  Fiz de tudo para acalmá-la.  Falhei como psicóloga.  Deixei-a extravasar todos aqueles sentimentos negativos até que o cansaço e o desânimo desarmaram-na.  Convenci a jovem a entrar até a saleta do hall e após longos e angustiantes momentos de silêncio, um nome foi repetido mil vezes:  "Eduardo...Eduardo..."

Mas quem era esse Eduardo?  Aos trancos e barrancos, contou-me, aos soluços, que era seu namorado.  Há mais de vinte dias desaparecera sem deixar qualquer sinal.  Não atendia aos telefonemas e cancelara todos os contatos sociais.  Não houveram desentendimentos, muito menos brigas.  E o pior,  tinha certeza que vira o rapaz abraçado a uma mulher entrando no prédio.  Consultei a listagem dos moradores, que não era grande, e não encontrei nenhum Eduardo.  A certeza da garota era tanta que não ouvia meus argumentos e conselhos. 

Inesperadamente, ela disparou numa corrida e abraçou por trás um rapaz que saía do prédio acompanhado por um idoso.  Ouvimos, então, um grito trêmulo e prolongado:  

"Eduardoooooooooooooooo".  

Assustadíssimo, o rapaz usou força para se libertar daqueles braços indesejados.  Não era Eduardo.  Não era quem ela achava que era.

Mônica caiu de joelhos debruçada num choro dolorido e sem fim. Uma certeza desfeita.  Uma esperança despedaçada.
Ela teria que colar os cacos por ela mesma.

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