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quinta-feira, 4 de junho de 2020

CAIU DO CÉU Hirtis Lazarin




CAIU DO CÉU
Hirtis Lazarin



Um grito exuberante de dor assustou o dia que amanhecia calmo e preguiçoso.  Depois de uma noite inteirinha de sofrimento, Poty deu a luz a um menino exageradamente comprido e robusto.  Uma gravidez difícil e problemática que fez a parturiente, miúda e atarracada, permanecer em repouso absoluto nos últimos quatro meses, tamanho era o peso que carregava no útero.

Fogo Ligeiro crescia mais rápido e mais forte que outros curumins da aldeia.  As pernas longas tornavam-no veloz feito um alce em fuga desesperada a safar-se da fera faminta. Curioso e observador, descrevia, em detalhes, as cores das penas de cada pássaro que sobrevoava as redondezas e, nas andanças solitárias pela mata, sempre descobria novas espécies de flores.  A cor, o colorido encantava-o.

Atrás dessas habilidades escondia-se um indiozinho medroso.   Desaparecia como rolha de champgne em explosão quando tivesse que participar de caçadas ou pescas. O seu medo amarelava só de ouvir a palavra "piranha".

O pai, índio corajoso, vivia brigando com o menino: não se conformava com esse seu jeito de ser.  Mas a mãe, desde sempre percebia que os olhinhos do filho faiscavam de alegria quando lambuzava as mãozinhas com tintas usadas na pintura dos corpos.  E os dedinhos compridos e buliçosos nunca se aquietavam, sempre riscando e pintando paredes, ou até mesmo o chão de terra batida.

Com o tempo, retas e curvas se aperfeiçoaram, linhas dispersas se encontraram e foram se transformando em desenhos perfeitos; novos traços, novas formas, novas cores foram aparecendo.  Do chão batido, os desenhos saltaram pra pedaços de esteiras de palha tecidas pelas índias. E o menino não mais se assossegava; novas ideias, criatividade fervilhando dentro daquela cabecinha irrequieta.  Fogo Ligeiro não cabia mais no espaço em que vivia.   Seu dom extrapolava tudo que o cercava.  Seus anseios e questionamentos não encontravam respostas.  Vivia insatisfeito e infeliz.

O dia mal começara quando os índios acordaram com um bimotor sobrevoando insistentemente a aldeia.  O avião perdeu altura e o piloto, com destreza e precisão, pousou numa clareira próxima à aldeia Guairirá.  Armados de arco e flecha, os índios cercaram a aeronave.  O território só poderia ser acessado com autorização do governo e aprovado pelo cacique.

O piloto foi o primeiro a descer acenando um lenço branco.  Atrás dele vieram o copiloto e um casal de turistas.  Entre os índios, alguns se comunicavam com um português rudimentar; foi, então, possível entender que o pouso foi forçado por pane elétrico no motor.

A permanência dos homens brancos na comunidade prorrogou-se por uma semana e três dias, tempo gasto desde que um helicóptero trouxe dois mecânicos ao local.  Durante esse convívio não planejado, a turista paulistana não só se encantou com a cultura e a vida pacífica dos guairirás, como constatou que, entre eles, havia um menino prodígio. Um menino que nunca teve contato com o mundo da arte, era um artista nato, puro, isento de qualquer influência.  Um dom que não se explicava, um dom que se aceitava e valorizava.  E foi o que essa santa senhora fez.  Trouxe pra aldeia, além de professores, todo material que o indiozinho necessitaria pra se desenvolver.  Uma mecena em pleno século XXI.

Fogo Ligeiro pode, então, expressar toda sua imaginação, toda sua criatividade, toda sua excentricidade.

Já participou de várias exposições pelo Brasil, ganhou alguns prêmios importantes e sua renda é empregada para aprimorar sua arte e melhorar a vida de seu povo.



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