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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

ITÁLIA EM SUSPIROS - Alberto Landi

 

 



ITÁLIA EM SUSPIROS

Alberto Landi

 

A Itália é sempre uma poesia, uma arte esculpida em pedra.

Suas cidades refletem a rica história, a cultura e a beleza estética de um país onde cada rua, cada piazza é um museu a céu aberto.

A arquitetura impressiona pelos detalhes, que contam histórias ao longo dos séculos. Cada lugar é uma obra de arte viva, repleta de alma, luz e inspiração.

Em Florença, uma jovem caminhava distraída pela via dei Calzaiuoli, os olhos voltados para as vitrines, mas o coração capturado pelo som de um violinista que tocava Vivaldi. O ar se misturava ao cheiro do café recém-moído vindo de uma pequena torrefação, cada acorde parecia pintar em tela invisível no céu.

Em Roma, um ancião sentado em uma praça contava histórias aos netos.

Apontava para as colunas em estilo coríntio do Fórum Romano e dizia: Essas pedras já ouviram vozes de imperadores e também sussurros dos poetas.

Os meninos riam, mas no fundo sabiam que o avô tinha razão ali, entre ruínas, ainda se ouvia o pulsar da eternidade.

Em Veneza, as ruas não eram de pedra, mas de água. Um gondoleiro orgulhoso em sua profissão guiava turistas entre palácios que refletiam no canal como se fossem sonhos. Ao passar pela sombra de uma ponte, cantava uma canção herdada de seus ancestrais em dialeto veneto. Era como se a cidade toda fosse um palco flutuante.

Em Nápoles, ao cair da tarde, os becos estreitos se enchiam de vozes misturadas ao aroma do mar e do café fresco. Pizzaiolos lançavam pizzas ao ar com a maestria de escultores, enquanto pintores de rua desenhavam em poucos traços as faces dos passantes. Cada esquina era um palco onde a vida pulsava sem ensaio, vibrante e desordenada.

Entre roupas penduradas nas varandas e igrejas douradas pelo tempo, a cidade respirava paixão intensa, imprevisível e eterna.

Nápoles não se visita: se sente. Ela é música, túmulo e poesia.Tudo ao mesmo tempo.

Trieste repousa à beira do Adriático, entre o azul do mar e o silêncio das colinas.

O vento, chamado Bora, sopra histórias antigas pelas ruelas estreitas, levando o perfume do sal e da saudade. Os triestinos dizem que, quando o Bora sopra, limpa o céu e a alma.

Há um brilho no porto, onde o sol se despede lentamente e os navios parecem suspensos no tempo.

Os cafés guardam ecos de escritores e sonhadores. Ali ,o pensamento é livre como o horizonte.

Entre fachadas antigas e praças luminosas, a cidade revela seu coração mestiço, onde Itália e Europa Central se encontram em harmonia melancólica.

 

Matera dorme nas encostas de pedra, envolta em silêncio e memórias. As casas, esculpidas na rocha, guardam histórias que o vento percorre lentamente, e cada degrau, cada rua estreita, é um sussurro do passado que recusa a desaparecer.

Ali, o tempo não corre: caminha descalço, tocando as paredes gastas e os degraus de pedra com a serenidade de quem já viu tudo.

O sol toca os muros com delicadeza, e as sombras dançam entre os becos como se o tempo ali tivesse decidido não correr, apenas existir.

Há um perfume de terra antiga, de pão quente, de vidas que se entrelaçam com os séculos.

O passado e o presente caminham lado a lado, tranquilos, e quem passa sente que o mundo inteiro cabe naquele instante suspenso entre pedra, memória e silêncio.

Milão pulsa no compasso da moda e do aço, entre ruas elegantes e catedrais que tocam o céu.

O Duomo ergue-se como um sonho em pedra, e cada esquina sussurra histórias de arte, inovação e ambição.

No rastro da Galleria Vittório Emanuele, o tempo brilha em vitrines e passos apressados, onde o moderno e o antigo dançam em perfeita harmonia.

O sol se despede sobre a península, e cada cidade guarda em seus muros e ruas um sussurro do passado, um rastro de histórias que caminham descalças pelo tempo.

Da pedra antiga de Matera ao aço elegante de Milão, da paixão caótica de Nápoles à serenidade do Adriático em Trieste, cada canto é um verso, cada passo um poema.

E a Itália, eterna e viva, respira em cada passo, guardando-se nos olhos de quem a percorre!

 

 

DANÇA - PEDRO HENRIQUE

 

 


DANÇA

PEDRO HENRIQUE

 

É curioso observar a capacidade da dor de nos guiar ou influenciar nossas ações, como uma espécie de magia que tem um poder grandioso sobre nossos ombros e que rogamos veementemente aos céus para desaparecer. Porém, ela sempre se recusa a dar adeus.

     A dor é assim, é essa coisa que desde cedo está posta em nosso pescoço e, quando puxada, sufoca-nos, levando não só a respiração, mas o estômago, a boca, o afeto…

     Haverá de dar um jeito, porque a corda nunca sai de nossos pescoços; ela pode até afrouxar em certos momentos, mas sempre permanecerá lá. Lembrando-nos dela toda vez que pomos nossas cabeças no travesseiro ou quando nos levantamos dele.

Lembro dela, lembro todo dia, lembro desde quando foi posta em mim. Não ache tu, ó, leitor, que não experimentei o sabor azedo dos sentimentos hostis.

Todavia, lembro da dor da estranha. Ah, coitada. Recordo-me como se fosse ontem do dia em que ele entrou bêbado na sala e lhe revelara não o afago, mas o cair da árvore, o quebrar os ossos, o ir ao poço e ser empurrada ao abismo.

     A estranha teve de se virar, pois, apesar da dor, tinha de alimentar-se e, sem saber como, continuar. Agradecia sempre quando encontrava o pão de cada dia, ainda que viesse já mordido.

     Tinha vezes que achava mais que pão, achava laranja, bife, frango, certa feita achou uma pizza, estava estragada, claro, contudo sua fome não sentia cheiro nem sabor.

     Sendo assim, a estranha comia, comia com repulsa e lamento, mas comia. Quando a comida era ruim demais, pulava no imaginário e visualizava-se em um dos restaurantes mais caros da cidade, provando os pratos mais sofisticados que há e se sentia humana outra vez.

     Tinha vezes que pensava estar provando alcatra, filé, fraldinha, entre outras; então fechava os olhos e podia sentir o cheiro vivo da carne e dizia a si mesma:

— Isso é o que eu mereço.

 Pena que o que tinha de verdade era uma pizza podre. E, quando sua mente, no ato do imaginário, dava-se conta do real, chorava. Chorava porque o que se pode fazer, a não ser chorar? O que podia querer da vida a não ser a lágrima?

Havia noites em que se deitava e a filha decidia verter água pelos olhos e, não sabendo como acalmá-la, cantava. Cantava como fazia desde pequena. Talvez essa fosse a única coisa que tinha de louvável: o canto. E bastava a filha soar o grito no momento de apagar os olhos que ela começava:

 

“Se essa rua

Se essa rua fosse minha;

Eu mandava

Eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas.

Com pedrinhas de brilhantes.

Para o meu

Para o meu amor passar.

 

Nessa rua,

Nessa rua tem um bosque.

Que se chama

Que se chama solidão.

Dentro dele,

Dentro dele mora um anjo.

Que roubou.

Que roubou meu coração.”

 

Quando terminava, dormia a bebê e ela, que ao cantar empreendia-se um pouco de dignidade. E dignidade a vida lhe entregava em esporádicas ocasiões. Uma, por exemplo, ocorreu quando estava à procura de alimento e, antes de achá-lo, encontrou um vestido vermelho sujo e surrado, todavia sedutor.

Colocou-o, fez um rabo de cavalo e passou um pouco de pintura no rosto, não era lá grande coisa, mas dava-lhe luz de uma beleza que nunca tivera e que nunca terá.

     Naquele mesmo dia, com a criança pequena no colo, foi até um botequim que vez ou outra ia para dar um fim na gravura ácida e incômoda de ser o capacho dos homens e da vida.

     Colocou na máquina de música seu forró preferido, pegou a filha nos braços e dançou como se não houvesse amanhã.

Dava aos seus pés o comando de não parar até se esquecer das pizzas podres, das brigas com seu filho, da faca, do soco, dele bêbado em cima dela. Da criança em seu colo com o rosto dele, da gasolina que ele jogava em sua casa com ela dentro, da chama consumindo tudo, dele indo preso e ela para o hospital.

     Só ambicionava dançar, nada mais, nada menos.

     E, quando a música não era o suficiente, bebia; e, quando a bebida não dava conta, fumava; e, quando fumar não lhe saciava, dançava outra vez. Se fosse preciso, passaria a noite ali; só não poderia parar de dançar.

 

 

É pra Dong Xuan que eu fui - Hirtis Lazarin

 



É pra Dong Xuan que eu fui

Hirtis Lazarin

                                                 

Finalmente cheguei ao meu destino. 

 

Até onde minha vista conseguia enxergar em meio ao denso nevoeiro, eu era o único passageiro que desceu do trem. Senti o reflexo de uma solidão metálica refletida naquele imenso bloco de vagões quase vazios.

 

Uma placa de madeira meio gasta pelo tempo escrevia, em letras maiúsculas, o nome do vilarejo “Dong Xuan”. Li aquela palavra várias vezes pra me certificar . Sim, era ali que eu queria chegar. 

 

 Subi as escadas.

 

A pequena estação ferroviária, iluminada por uma luz morre-não-morre, parecia deserta. Apenas o  tic-tac cansado de um relógio de parede intercalado ao som pesado dos pés  de um idoso que se arrastava e recolhia o lixo acumulado. 

 

Puxei conversa, mas fui ignorado. Repeti as perguntas e nada. Não sei se o homem era surdo ou indiferente…Tive vontade de gritar bem alto. Pensei melhor e não insisti. Eu não queria ser notado por extravasar minha  falta de paciência.

 

Procurei um sanitário; precisava de água fria pra lavar o rosto sonolento. A porta  estava trancada e não obedeceu aos meus impulsos violentos.

 

 Senti fome e saí andando…Alguns palavrões escaparam da minha garganta.

 

Era um vilarejo com ruas estreitas e pavimentadas com paralelepípedos que cheiravam à maresia enlutada.  Era como se ali próximo, num pedaço de mar, restassem destroços de barcos e afogados; mortos  que a saudade daquele povo ainda cultuava. A maioria das casas, de tão humildes,  pareciam caranguejos se acotovelando. 

 

Caminhei bastante e não vi ninguém, nenhum carro. Só um cachorro magro revirando latas de lixo.  Minha boca estava seca e meus pés doíam dentro de um sapato de couro falsificado. Até minha mochila que trazia apenas um tênis e uma muda de roupa ficou pesada.  Senti frio, me sentei nos degraus de uma igrejinha e fumei dois cigarros.  Quarenta minutos se passaram até que um rapaz sem camisa e de braços fortes apareceu  de  bicicleta, no final da rua. Por sorte, conseguimos nos entender no seu “Inglês-vietanita” e ele  me levou até o único albergue do local. 

 

Entrei com cautela.

 

Finalmente encontrei gente reunida  e senti  o olhar curioso de todos voltado pra mim. Afinal, eu era um estranho naquele ninho. Não me intimidei e me aproximei do balcão do bar.  Queria me familiarizar com o ambiente e não ser rejeitado.

 

Bêbados, acompanhados por um violão, cantavam bem afinados. Um velho sem dentes conversava, animadamente, com uma jovem estrangeira de cabelos loiros que chegavam até a cintura. Um grupo de pescadores exagerava nas histórias de peixes tão grandes que não cabiam na embarcação, peixe que quase engoliu um amigo, peixe que voou de volta pro mar. O mais velho de todos, que tinha fascínio por jacaré-açu, jurou que, nas suas andanças de pescador, encontrara um que sabia assobiar nos modos gregos. Acho que era um torneio pra descobrir o mais mentiroso da turma.

 

Até a cozinheira tentava me impressionar, contando sua história e os horrores que o pirata  Zheng Yi  fizera com seus bisavós e o Padre  Văn Thuận, que se hospedava na igreja, matou-o com um tiro certeiro soprado no coração.

 

Sem que ninguém percebesse, tirei uma caderneta do bolso, mostrei algumas anotações a ela e cochichei: “Leia apenas com os olhos". À medida que lia, ela balançava positivamente a cabeça e eu, ansioso, acompanhava sua leitura. Acho que o inglês é a segunda língua falada naquele país e eu consegui dela todos os detalhes de que precisava. Um punhado de “Dong”  em suas mãos arrancou-lhe o sorriso mais agradecido que eu já vi.

 

Quando um bêbado, que já tinha tomado todas, aproximou-se do balcão, aproveitei pra me afastar e comer uma sopa rala com pão e uma fatia gorda de queijo. Duas taças de “Rượu gạo”, um vinho de arroz, foram suficientes pra me derrubar. 

 

Hora de me recolher.  

 

Me surpreendi com o quarto, era simples e bem cuidado. Os lençóis de tão brancos pareciam azuis, feitos de um tecido tão macio que até me acarinhavam. Eu já tinha esquecido de como era gostoso sentir a delicadeza do carinho.

 

Era meia-noite quando me joguei na cama.  Respirei fundo.  E aliviado. Até aquele momento tudo corria conforme meus planos.  Eu tinha apenas duas horas pra rever meus próximos passos e descansar esse corpo que tinha viajado quinze horas seguidas.

 

Todo esse pesadelo começou há mais de três anos. Quanto dinheiro já gastei com detetives? Não sei.   Só sei que minhas dívidas só cresciam com os empréstimos bancários. Como pagar? Preocupação para o futuro. 

 

Eu não me reconhecia mais. Bebia todos os dias. Olhava-me no espelho e perguntava: “Quem é esse homem desleixado, tão feio?  De onde brotou tanto sofrimento, tanto ódio”? Tinha dias seguidos que a raiva era o único sentimento honesto que me restava. Me afastei de todos. A minha solidão era uma farpa na carne a me consumir.  Eu não sabia o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não sabia como frear minhas lágrimas, não sabia como vencer a dor de um silêncio que nada preenchia, eu não sabia como encontrar saída aos meus pensamentos suicidas.

 

Até que um dia tive um sonho esquisito e acordei um pouco mais lúcido: vi duas saídas: procurar ajuda psiquiatra e tocar a vida pra frente na tentativa de encontrar a paz. Ou viajar para o Vietnã. E, ao final daquele dia, a resposta me apareceu clara e tomei a decisão: “Vou ao Vietnã.

 

Passei dias pesquisando no Google”. Fiz meu roteiro, calculei minhas despesas e cheguei neste fim do mundo chamado “Dong Xuan”.

O relógio me expulsou da cama na hora que combinamos.

Lá fora, a madrugada estava fria e o vento gelado cortava a pele, arrastando folhas secas pela calçada. O silêncio da rua era opressor, como se o mundo estivesse segurando a respiração. A rua escura, iluminada apenas por um lampião tremeluzente, parecia um cenário perfeito. Eu era apenas um vulto que se movia silenciosamente, os passos de um gato, quase inaudíveis. Andei por vários quarteirões, ruas que subiam e desciam. Já ofegante e cansado, encontrei a porta de madeira nada resistente, marcada com o número noventa e nove.  Tateei a maçaneta com cuidado e girei-a com toda força dos meus punhos. A porta se abriu. 

 

Entrei na casa.  Não posso negar que meu coração batia descompassado. A escuridão era quase total e afirmo que eu me sentia poderoso como um animal predador em seu habitat.  Os cômodos eram poucos e pequenos. Cheguei ao único quarto, a porta entreaberta revelou a figura adormecida na cama. Tirei o punhal do bolso e a lâmina   brilhou, refletindo a pouca luz que entrava pela janela sem cortinas.

 

O corpo deitado respirava pausadamente indiferente ao meu sofrimento. Nessa hora, assisti ao filme dos meus últimos três anos de vida amaldiçoada. A necessidade de completar a tarefa se fortaleceu mais e mais.

Aproximei-me da cama. A lâmina do punhal  rasgou o tecido da roupa e penetrou o coração da vítima. O som de uma vida sendo interrompida ecoou pelo quarto, mas logo foi abafado pelo som do vento lá fora. Abandonei o corpo sem vida no quarto que não viu nem ouviu. Saí daquela casa sem olhar para trás, deixando a escuridão e o silêncio guardarem o segredo de meu crime. 

 

Foi o que eu pensei…

 

Vós que me ledes, estais ainda entre os vivos, mas eu, que escrevo, parti há muito para o mundo das sombras. Na verdade, estranhas coisas aconteceram, coisas secretas serão reveladas e muito tempo decorrerá antes que essas notas sejam lidas pelos homens. E quando eles as tiverem lido, uns não acreditarão, outros porão as suas dúvidas e muito poucos entre eles encontrarão fecundas meditações nos caracteres que eu escrevo como se a caneta fosse um estilete de ferro singrando em tabuinhas de madeira.





 

 

 

A CASA ASSOMBRADA - Adelaide Dittmer



A CASA ASSOMBRADA

Adelaide Dittmers

 

A velha casa jazia em um terreno cheio de mato. Desabitada há muitos anos, tinha a fama de mal assombrada.

Histórias de fantasmas e gritos ouvidos em noites escuras eram contadas pelos habitantes daquela pequena cidade.

O povo simplório do lugar fazia o sinal da cruz ao passar por ela.

O pavor de entrar para descobrir o mistério que aquelas velhas paredes de pedra guardavam bloqueava qualquer aproximação.

Três meninos passavam por lá todos os dias no caminho da escola. Muitas vezes paravam e a ficavam observando. A curiosidade e o desejo de aventura cresciam dentro deles como ervas daninhas.

Certa tarde, de céu cinzento e árvores vergadas por um forte vento, entreolharam-se e batendo os punhos um nos outros, decidiram que iriam descobrir o que acontecia lá.

Afastando o denso mato, que a cercava, chegaram diante dela.  De perto era mais assustadora.  O silêncio, que os absorveu, só era quebrado pelo barulho do vento e dos trovões, que começaram a incendiar o céu.

Munido de coragem, um deles colocou a mão no enferrujado trinco e, com força, baixou-o. A pesada porta abriu com um alto gemido.

Eles entraram devagar, tentando enxergar algo na escuridão do interior.  Um deles tropeçou em uma mesinha, e o susto fez com que pulasse para trás. Outro abriu, com muito esforço, uma das janelas.  Uma tênue claridade revelou uma sala espaçosa, em que móveis antigos e cobertos de pó, espalhavam-se desordenadamente pelo ambiente.  O cheiro forte de mofo fez com que eles tapassem os narizes.

Adiante em um pequeno hall, uma escada de madeira escura subia para um segundo andar.

Pé ante pé, foram até ela.  Os degraus rangiam ao serem pisados.  Um barulho estranho vinha de cima.  Eles pararam.  Os olhares assustados se procuraram.  O barulho se repetiu.

Nesse momento, uma chuva forte despencou com estardalhaço sobre a casa.  Umas gotas caíram vdo velho telhado e eles recuaram.

Do andar de cima, o barulho veio mais forte e assustador.  Os olhares apavorados se voltaram para cima. 

— Viemos até aqui, não vamos desistir. Vamos subir. Um deles sussurrou.

Com os corações acelerados chegaram ao andar superior.  Um comprido corredor os esperava. Dando um passo e parando para ouvirem o esquisito barulho, foram seguindo.  O medo estampado no rosto de cada um.

De repente, algo negro passou por suas cabeças.  Eles se jogaram no chão, cujo assoalho rangeu.  O pavor retorcia suas feições.  Outra sombra negra voou pelo corredor, soltando guinchos aterradores. Dessa vez, o voo foi rasante e a criatura quase bateu na cabeça deles.  Um deles gaguejou:

— Não são almas perdidas.  São morcegos!

Trêmulos foram se arrastando até a escada, que desceram em disparada.  Chegaram à porta de entrada e estacaram.  A tempestade caia desenfreada.

— Temos que esperar a chuva diminuir.

Um raio partiu uma árvore ao meio.  Os três estavam pálidos e assustados, mas um riso nervoso escapou dos três.

— Descobrimos o segredo! Gritaram apertando as mãos uns dos outros.

— Morcegos! Horríveis, mas apenas morcegos!

E fizeram um pacto.  Não iriam contar nada a ninguém.  Afinal o fato mais importante naquela pacata cidadezinha era o pavor pela casa assombrada.

 

A Velha Rua - Adelaide Dittmers

 



A Velha Rua

Adelaide Dittmers

 

A estreita rua calçada por grandes paralelepípedos avançava mansamente no ritmo cansado de tantos anos ali estendida, marcada por tantas pegadas e rodas barulhentas de carroças.

Inúmeras vidas passaram por ela.  Algumas a pisaram levemente, quase não a tocaram.

Sorrisos jovens a iluminavam, ecoando alegria por ela.  Outras arrastaram pés cansados e rostos tristes, que espelhavam as agruras do caminho.

Rodeada por pequenas casas, abraçadas umas às outras, que guardam em suas entranhas histórias de lutas pela sobrevivência, desentendimentos, traições e uniões.

Uma delas, pintada de amarelo e janelas azuis.  À porta, uma senhora de cabelos brancos derrama um olhar cansado na placidez da rua.  As lembranças dançando nos olhos sem brilho, que lentamente percorrem o entorno, vislumbrando, talvez, brincadeiras e namoricos de outrora.

Ao lado, outra casinha pintada recentemente de verde e janelas brancas, onde vasos de gerânios coloridos dão um tom fresco e alegre, o choro de um bebê ecoa pela rua, enquanto uma canção de ninar suavemente o embala.

Em outra, gritos são ouvidos.  Dentro de cada uma, a vida se manifesta de várias maneiras, com risos, choros, alegrias e tristezas, conquistas e derrotas.

Fora, a velha rua apenas segue silenciosa no seu destino de deixar passar por ela as marcas de cada um, que a pisa e ouvir silêncios e cúmplice o desenrolar de tantas histórias, que se escrevem ao seu redor.

 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

O segredo da Confeitaria Colombo - Alberto Landi

 



O segredo da Confeitaria Colombo

Alberto Landi

 

Era um fim de tarde quando a Confeitaria Colombo, no coração do Rio de Janeiro, começava a receber turistas curiosos e clientes fiéis. O brilho dos espelhos belgas refletia o burburinho e o cheiro do café misturava-se ao doce perfume de nata e dos bem-casados.

Sentada em uma das mesas centrais, Helena, uma jovem restauradora de arte, examinava atentamente um mapa antigo que havia encontrado nos arquivos esquecidos no antigo escritório do fundador.

O esboço parecia indicar a existência de uma sala secreta, construída ainda na época de sua fundação em 1894.

Na mesa ao lado, um homem bem vestido com terno escuro, Dr. Álvaro, advogado da família que herdara parte da Colombo, fingia ler o jornal, mas seguia cada movimento dela. Ele sabia do que aquele pergaminho se tratava.

O conflito se acendeu quando ele se aproximou:

— Esse mapa pertence à família Colombo. Não deveria estar em suas mãos.

— Pertence à história do Rio de Janeiro, e a história não tem dono — respondeu Helena, firme.

De repente, a luz oscilou e o supervisor do salão deixou cair uma bandeja. Entre o barulho de porcelana quebrando, Álvaro estendeu a mão, tentando arrancar o pergaminho, porém, ela segurou firme e a folha se rasgou em dois pedaços. Cada um ficou com uma metade.

Uma sala oculta guardava os acordos da República Velha. A história não se cala, apenas espera quem a conte.

Agora, entre os espelhos dourados e os vitrais imponentes, a confeitaria guardava um novo segredo.

Quem conseguiria primeiro descobrir a sala oculta e o que havia sido escondido nela há mais de um século?

Com metade do mapa nas mãos, ela saiu às pressas. Ele a seguiu decidido a impedir que ela revelasse qualquer coisa. O que estava escondido naquela sala poderia mudar não apenas a história da confeitaria, mas também da cidade do Rio de Janeiro.

Naquela noite, cada um estudou sua parte do pergaminho. Helena observou símbolos ligados à maçonaria, gravados nos arabescos da folha.

Ele, por sua vez, reconheceu assinaturas de políticos da República Velha, homens que costumavam se reunir em salões discretos, longe dos olhos da imprensa.

No dia seguinte, ambos retornaram ao local, disfarçados entre os turistas.

Um detalhe nos vitrais denunciava a entrada secreta: um touro esculpido em mármore olhava para um ponto exato do chão de mosaico.

Quando se preparavam para mover a peça, surgiu o maître. Não trazia bandejas nas mãos, nem o sorriso habitual que iluminava os salões. Seu olhar firme e silencioso lembrava menos o de um garçom, e mais o de um guardião antigo, como se a confeitaria fosse um templo e ele, o vigia de sua memória.

— Vocês realmente acham que são os primeiros a procurar? — Disse o maître com um meio sorriso. Essa sala guarda mais do que podem suportar, pensou Helena.

Ela e Álvaro se entreolharam. A voz do maître, baixa e firme, cortou o ar, mais um aviso do que uma saudação, rompendo o silêncio que pesava sobre os salões.

— Há coisas que não devem ser movidas sem compreender o que guardam.

— Esta confeitaria foi palco de encontros discretos — disse. Aqui se tramaram acordos que nunca chegaram aos jornais. E a sala que procuram guarda provas disso.

Sem hesitar, o maître moveu uma das pedras do mosaico.

O piso se moveu, revelando uma pequena escada em espiral, descendo as entranhas do prédio.

O ar era pesado, uma mesa de jacarandá ainda estava posta como se tivesse acabado de receber senadores e ministros. Em um baú no canto, Helena encontrou envelopes lacrados com selos da época. Ela leu em voz alta um dos documentos.

— Acordo firmado entre industriais do café e parlamentares, garantindo silêncio em troca de verbas para campanha presidencial.

Álvaro empalideceu.

— Se isso vier a público, o nome de famílias inteiras será destruído. Essas cartas falam de presidentes, de governadores, até da política de café com leite.

Helena, no entanto, via ali a chance de revelar uma verdade esquecida.

— Não são apenas nomes. É a história do Brasil que foi escondida. O povo tem direito de saber, disse ela.

Álvaro segurou-a com o braço firme e disse:

— Se publicar isso, pode desencadear um escândalo. E não se engane, ainda há descendentes poderosos desses homens, eles não hesitarão em calar você.

O silêncio da sala secreta foi interrompido apenas pelo ranger das tábuas antigas. Ali, sob os espelhos dourados da Colombo, nascia um dilema: revelar a verdade e enfrentar os poderosos ou proteger um passado sujo em nome da estabilidade atual.

Nos dias seguintes, ela começou a organizar o material encontrado. Cada carta e envelope era uma peça de quebra-cabeça que revelava como políticos e empresários moldaram a República Velha nos bastidores.

Álvaro, por sua vez, não a deixava sozinha, seguia-a nos momentos mais inesperados, em cafés próximos, em livrarias, até nas filas de museus, sempre com a mesma pergunta silenciosa: Você vai mesmo divulgar isso?

Helena percebeu que não precisava apenas proteger os documentos, mas também agir com inteligência.

Começou a registrar cópias de cada carta, escondendo uma parte em lugares diferentes. Cada movimento era calculado para despistar Álvaro, que respondia com cartas anônimas, ameaças sutis e telefonemas misteriosos.

Um dia, enquanto revisava os envelopes, ela encontrou uma assinatura que não esperava, de uma figura ainda viva, descendente direto de um dos senadores envolvidos.

Essa descoberta aumentou a tensão. Álvaro sabia disso e agora ela tinha um trunfo poderoso: podia negociar a forma como a verdade viria à tona, decidindo o momento certo e a intensidade do impacto.

O conflito atingiu o ápice quando ele a confrontou na própria confeitaria, agora vazia após o expediente.

— Você não entende. Isso não é apenas histórico. É poder!

— Pode destruir famílias, criar inimigos e até colocar sua vida em risco.

— Entendo, respondeu Helena, firme, mas esconder a verdade não devolve nada ao povo, e eu não temo enfrentar os poderosos.

Por um instante, o silêncio reinou, quebrado apenas pelo tic-tac do relógio. Ali, sob os espelhos e vitrais da confeitaria, o que repousava já não eram apenas documentos antigos, era algo que o tempo tentou esconder. Tratava-se agora de um duelo de inteligência e coragem, cada decisão, uma linha traçada entre o passado e o destino dos dois.

Meses se passaram desde que ela descobrira a sala secreta. Helena havia reunido cópias de documentos mais importantes e analisado cada detalhe. Ele continuou a observá-la, mas seus encontros se tornaram menos agressivos, como se ambos soubessem que o verdadeiro poder estava na informação e não na força.

Decidida, planejou sua jogada. Em vez de expor tudo de uma vez, organizou uma exposição histórica em parceria com um museu do RJ. Cartas e registros seriam apresentados como parte da história da República Velha, desvendando os bastidores ocultos da política sem expor diretamente os descendentes ainda vivos.

No dia da abertura, Álvaro compareceu. Observou em silêncio enquanto ela conduzia os visitantes pelos documentos e relatos da época. Havia conseguido transformar o que poderia ser um escândalo em uma aula viva de história, revelando o passado com coragem, mas com inteligência.

Ao final, se aproximou de Álvaro.

— Não destruí ninguém, mas todos aprenderam que a verdade pode ser contada sem vingança.

— Você venceu, de uma maneira que não esperava, admitiu Álvaro. Talvez exista um modo de usar o poder do passado sem criar inimigos.

A confeitaria voltou ao seu brilho habitual. Entre espelhos e vitrais, Helena revelou a história oculta daquele tempo: a verdade triunfou sobre o silêncio, sem destruir ninguém.

Agora havia mais do que doces e café, e sim uma história cuidadosamente revelada, que ensinava a coragem, estratégias e respeito pela memória da cidade.

Ela sabia que às vezes, o verdadeiro conflito não é vencer o outro, mas encontrar a maneira de contar a verdade!

 

 




ITÁLIA EM SUSPIROS - Alberto Landi

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