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terça-feira, 17 de agosto de 2021

Por um triz - Adelaide Dittmers

 



Por um triz

Adelaide Dittmers

 

O jovem andava apressado. O rosto contraído e sério tinha uma expressão de desespero.  Não enxergava ninguém à sua frente. Esbarrava nas pessoas.  Parecia um autômato movimentando pela multidão. Pensamentos contraditórios chocavam-se em sua mente pela derrota que teve naquele concurso.  Tinha se esforçado tanto.  Atravessou várias madrugadas sem dormir.  Como iria contar isso ao pai, que sempre fora tão exigente e não admitia derrotas. Durante a infância e adolescência era cobrado a todo instante pelo seu desempenho.  Queria que o filho fosse seu espelho.  Um vencedor.

 Nunca quis cursar direito.  Nunca almejou chegar a ser desembargador ou ser, como nos sonhos mais insanos de seu pai, um juiz da Suprema Corte. Estava farto de tudo isso. Perdera a namorada, porque era inseguro e não conseguia tomar decisões.

Com esses sombrios pensamentos, chegou ao edifício da empresa do pai para lhe comunicar o acontecido, mas subitamente, um desejo premente de tomar ar antes de enfrentar a ira dele o levou ao terraço do último andar do prédio.

 Ao chegar lá, olhou a cidade, que se estendia embaixo, pontilhada por altos edifícios.  Quantas vidas atrás das muitas janelas, quantos dramas, quantas ambições, quantos fracassos, quantas vitórias.  A grande metrópole sempre lhe pareceu pulsar como um coração desvairado. 

Um helicóptero, que passou bem perto do terraço, o arrancou de seus pensamentos.  Respirou fundo e, de repente, uma vontade incontrolável de acabar com tudo apoderou-se dele.  Estava exausto da tirania e da vaidade do pai, de quem sempre recebeu minguados carinhos.

Olhou para baixo.  Tudo iria ser muito rápido.  Voaria para a liberdade.

Subiu na mureta e, quando se preparava para saltar, dois braços fortes o agarraram e o puxaram para trás.

— Moço, o que ia fazer?

O rapaz aturdido soltou-se do homem e caiu num choro convulsivo.

— Por que você me segurou?

— Um moço jovem como você, com a vida toda pela frente...

O moço olhou com atenção para o homem, que o impedira de se matar.  Era mais velho, vestia um macacão.  Devia ser um dos faxineiros da empresa.

— Minha vida não tem sentido. É um desfile de fracassos e desilusões. Disse, com as faces molhadas pelas lágrimas.

— Filho, disse o homem, ternamente. Não diga isso.  A vida é uma dádiva.  Um presente.  Você só tem que aprender a desembrulhá-lo.

— Fala isso para meu pai.

— Ah! Então é seu pai a causa do seu desespero. Livre-se da causa. Aprenda a fazer seu caminho.

Uma grande surpresa estampou-se no rosto lívido do jovem.  Como um homem tão simples podia lhe dar conselhos tão sábios.

— Como o senhor pode saber dessas coisas?

— Muitos anos vividos, filho.  Muitas lutas. Mas nunca desisti.  Nasci no sertão nordestino, onde o chão é seco, a gente planta e nada dá.  Menino ainda, andava muito longe para buscar água. Moço, vim para São Paulo, já com mulher e filhos.  A gente casa muito cedo por lá.  Como não conhecia as letras, só pude arranjar serviços muito simples.  Fui pedreiro, mas um dia caí de uma laje e tive sorte de não morrer. Quebrei as pernas.  Demorei a ficar bom e arranjei serviços de limpeza, que faço até hoje.

— Qual é a sua idade?

— Sessenta anos. Tenho muito orgulho que um filho meu fez faculdade e já tenho netos.

O rapaz olhou aquele homem, cuja pele enrugada pelo sol o fazia parecer bem mais velho.

— Quanta coragem! É o que me falta para realizar meus sonhos.  Exclamou mais calmo.

— E quais são os seus sonhos, moço?

— Ser escritor.  Gosto de escrever.  Tenho muita coisa escrita escondida na escrivaninha do meu quarto.

— Escondida! Por quê?

— Meu pai não acha que seja uma profissão séria e que dá dinheiro.

— É que ele não sabe o que a gente sente quando não sabe escrever e ler.  Meu filho, quando era estudante, lia para mim as histórias dos livros da escola. Aprendi muita coisa com ele.  Que coisa mais linda de ver.  Até me ensinou a escrever e a ler alguma coisa.  Foi o maior presente que recebi, conhecer um pouco as letras.

O rapaz comoveu-se e admirou mais ainda aquele homem, que lhe atravessou o caminho para o salvar, não só da morte, como da vida que não tinha.

Em um gesto súbito, pegou as mãos ásperas e calejadas do seu salvador e apertou-as entre as suas.

— Obrigado! O senhor me salvou hoje por duas vezes e nem sei seu nome.

— Sebastião! E o seu?

— Rodrigo!

Os dois levantaram-se.  Sebastião fixou seus olhos carinhosamente em Rodrigo e disse com um sorriso:

— Vá Rodrigo! Siga a vida que você quer. Não olhe para trás.

— Nunca vou me esquecer do senhor. Mais uma vez obrigado, e o abraçou fortemente, entregando-lhe um cartão de visitas.

— Meu cartão.  Me ligue quando puder, e se precisar de alguma coisa. Vou ficar muito feliz de tornar a vê-lo.

Sebastião acompanhou-o com um olhar feliz, ao vê-lo sair.  Tinha salvado uma vida.

Rodrigo acenou da porta e saiu do terraço.  Desceu diretamente para a rua. Não passou pelo escritório do pai. 

Decidiu que ia sair de casa e seguir um novo caminho. Ia viver, finalmente.

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