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terça-feira, 17 de agosto de 2021

A oportunidade - Adelaide Dittmers

 



A oportunidade

Adelaide Dittmers

 

Era uma noite quente e seca.  O menino estava com sede e a fome lhe corroía o estômago.  Desamparado, percorria as ruas, estendendo as mãozinhas, para pedir uns trocados às pessoas, que passavam indiferentes e apressadas.

O rosto exprimia cansaço e desalento.  O olhar refletia um desamparo, que parecia envolver seu corpo frágil. Roupas nada limpas e um par de tênis, que devia ter passado por muitos pés,  mostravam a penúria em que vivia.

Subitamente, reparou que uma senhora estava tirando a carteira da bolsa, em frente a uma banca de jornal.  Um pensamento lhe atravessou a cabeça como um raio e sem resistir, passou por ela correndo e arrancou a carteira de suas mãos,

— Pega ladrão, gritaram as pessoas que viram o roubo.

E o menino, apesar da fraqueza, serpenteou pelos transeuntes, tentando fugir com o que tinha roubado.  Na sua consciência não havia culpa.  A única preocupação era escapar, sentir-se seguro e comprar algo para saciar a fome, que lhe roía as entranhas.

Como um animalzinho que escapa de seu predador, continuou a sua desabalada corrida.  Quando estava longe, parou sob uma árvore, abriu a carteira e contou o dinheiro.  Duzentos reais.  Quanta grana, pensou.  Tivera sorte.  Jogou fora a carteira e enfiou o dinheiro nos bolsos da surrada calça.

Mais adiante, entrou em um boteco e pediu um prato feito.  O dono o olhou com desconfiança, ao que ele lhe mostrou algumas notas, que tirou do bolso.

O homem trouxe, então, um prato cheio de arroz, feijão e carne,  que o menino devorou, como se nunca tivesse comido nada em sua vida.  Pediu um copo de água, que bebeu de um gole só.

Satisfeito e alimentado, continuou sua caminhada pela cidade, que sempre lhe parecia indiferente a sua miséria e solidão.  Depois de muito andar, chegou a um viaduto.  Embaixo, amontoadas, muitas pessoas dividiam um espaço precário.  Fogareiros improvisados, sacolas de alimentos e roupas deixadas por boas almas, que por ali passavam, espalhavam-se pela estreita calçada.  Um mundo diferente e sórdido na cidade rica.

Josué aproximou-se de uma das famílias e logo uma mulher sem os dentes frontais veio ao seu encontro.  Estava barriguda, prenha de mais um filho.

— E aí, você conseguiu alguma coisa?

O menino olhou-a com raiva.  Era sua madrasta, que só pensava em explorá-lo, mandando-o a mendigar nas ruas.  Sua mãe morrera, quando tinha sete anos e há quase quatro anos convivia com ela, irmãos e o pai bêbados.  Os seus onze anos de vida eram marcados por abandono, desesperança e maus-tratos.

— Consegui.  E tirou do bolso trinta reais, que estendeu a ela.

— Só isso? Perguntou a madrasta com uma careta de desprezo.

— Só! Respondeu bruscamente. Virou-se e foi se sentar encostado à parede do hostil viaduto.  Nunca que iria dar mais dinheiro àquela bruxa, pensou,  e um ódio silencioso espalhou-se pelo seu olhar.

Ajeitou a cabeça na parede dura e começou a imaginar o que faria com sua pequena fortuna. Foi a primeira vez que roubou.  Não era o que queria fazer, mas talvez o único caminho. Pedir não lhe rendia quase nada, apenas uns parcos trocados.  Roubar era arriscado, mas não fora difícil tirar a carteira da mulher.  Se conseguisse mais dinheiro, poderia fugir dali, talvez alugar um quarto em uma favela e livrar-se do pai inútil e da madrasta exploradora.

Aos poucos, dormiu embalado pelo sonho de se libertar daquela miséria e pelo menos ter o que comer e uma cama, mesmo que tosca, onde descansar.  Um sorriso puro de criança aflorou em seu rosto adormecido.  Talvez o último sorriso inocente da triste e perdida infância, porque, quando acordasse no outro dia seria um outro menino, que seguiria por um caminho tortuoso e perigoso.

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