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quarta-feira, 7 de julho de 2021

NONNO E SUA CIDADE CURON VENOSTA (*) - Claudionor Dias da Costa

 



NONNO E SUA CIDADE CURON VENOSTA (*) 

Claudionor Dias da Costa

 

 

Naqueles instantes que a gente não sabe por que e como, vem à mente lembranças de pessoas queridas que marcaram nossa vida.  

 

Enquanto eu caminhava para meu compromisso, cruzei na rua com aquele senhor que deveria ter por volta de quase oitenta anos,  que me olhou e com sorriso suave,  me deu bom dia. Imediatamente,  a imagem de meu avô, que nos deixou há uns dez anos, surgiu clara,  e provocou minha memória.  

 

Parece que o via acomodado em sua cadeira de balanço, eu com quase quinze anos escutando atento suas histórias de um tempo perdido que se desvanecia nas nuvens que ele observava enquanto falava. 

 

O doce ócio daqueles dias de inverno regados a chá quente e gostosos biscoitos caseiros preparados com carinho pela minha adorável avó, que delícia! 

 

− Querido neto, você não tem ideia como era bonita a nossa pequenina Curon Venosta. 

 

Pontuava cada frase e gesticulava como bom italiano. Estava situada ao norte da Itália, encostada na Suíça e Áustria, e tinha pouco mais de mil habitantes na época.  

 

Prosseguia detalhando os costumes daquele povoado.

 

− A vida era simples. Éramos agricultores, plantando maça e uva, e produzíamos um pouco de vinho. Meu pai ainda fazia alguns trabalhos de marcenaria. E, assim,  a família de seis pessoas se sustentava. 

 

− Minha infância foi alegre e descontraída, com travessuras com os amigos em que escolhemos,  o Sr. Pepino como vítima. Dono da mercearia confusa com produtos espalhados. Causávamos mais transtornos à ele espalhando mais ainda sem comprar nada. Quem diria que viria a ser tio da minha namorada. 

 

− O tempo passou... 

 

Nesse instante vovô silenciou, parou o olhar e continuou franzindo a testa, mas, empolgado contando como se iniciou a segunda grande guerra mundial e que a sua Itália ficou ao lado da Alemanha, e em Curon cresceu mais ainda a adesão à ideologia de seu ditador, que viria a ser sanguinária. Outra parte mais resignada e assustada com a onda que invadia o país preferia discrição e se amparava em suas atividades de trabalho não entrando nas quentes discussões políticas que ocorriam. Nossa família estava neste grupo por uma questão meramente de sobrevivência. 

 

Sendo muito jovem meu avô dizia que esta situação o deixava revoltado e se envolveu em algumas confusões por não se manter calado, mas, por sorte e pelas pessoas conhecerem sua família acabaram tolerando e não o denunciaram. Porém, não se conformava com essa resignação serviçal. 

 

Até se irritava quando alguns habitantes falavam em alemão, dada a proximidade da fronteira com a Áustria.  

 

E continuava dizendo que somente o alegrava quando comparecia às missas dominicais da igreja de Santa Catarina.  O motivo principal que não o permitia se concentrar nas orações era por conta da visão da menina com seus cabelos alourados que refletiam luz dourada, com instigantes olhos verdes. Ela provocava estranhas sensações no vovô que aceleravam os batimentos de seu coração jovem e cheio de sonhos. Quando falava nela seus olhos brilhavam e seu entusiasmo aumentava. Seu nome era Catarina em homenagem à padroeira da cidade. 

 

Ao terminar o culto, na saída as famílias ficavam conversando à   porta da igreja. Nesses momentos ele e Catarina trocavam olhares e ele começou a sentir que também despertava simpatia. Daí aos sorrisos e algumas poucas palavras, passou a esperá-la na saída da escola junto com os amigos e a acompanhá-la até sua casa. 

 

Começava ali um romance para o jovem casal. Ele tinha dezessete anos e ela dezesseis. 

 

Contudo, os pais dela perceberam e mostraram contrariedade com a situação porque sabiam que vovô não gostava da dominação da guerra que tiveram que suportar. Os pais dela defendiam Mussolini. 

 

Assim, estava criado um problema que ele não sabia como resolver. Seu amor por Catarina cresceu mais ainda. A menina não sabia o que fazer, e muito triste suportava a pressão da família. Com isto, só conseguiam se ver aos domingos, e ao longe, na igreja. 

 

Meu bisavô sentia pena de meu avô Antônio, mas, procurava aconselhá-lo para que não persistisse no interesse por ela, e se dedicasse mais ao trabalho e estudos. 

A tristeza e revolta o dominou porque sentia que naquele lugar, época de guerra e preocupado com o futuro,  a única coisa que o interessava na vida era sua bela Catarina. 

 

Os pais dela procuravam ao máximo evitar contato entre eles. Aumentavam o controle nesse sentido. A irmã mais nova todos os dias passou a acompanhá-la na saída da escola. Contudo, ela era simpática aos dois e passou a disfarçar que não percebia quando vovô passava bilhetinhos à Catarina. Eram declarações de amor eterno e frases românticas que a deixavam emotiva olhando meigamente para vovô. Ele descrevia para mim aqueles momentos como se os estivesse vivendo novamente. 

 

Até que vovô, em seu ímpeto juvenil, resolveu elaborar um plano: fugir com ela. 

 

Para isto, precisaria usar as economias que recebia do pai nos trabalhos no campo e muita coragem. Seria suficiente? Só o tempo dirá. 

 

Movido pelo seu grande amor, combinou com Catarina que fugiriam num domingo à noite, quando todos já estivessem esgotados pela semana. Separaram umas poucas roupas, se encontraram furtivamente na escuridão, e partiram. Caminharam por mais de três horas e cansados se abrigaram na cocheira abandonada de uma fazenda. Quando amanheceu procuraram sair rapidamente e tomar a estrada novamente. 

 

Com algumas mentiras onde Catarina se passou por minha irmã e pedindo carona pela estrada fomos parar em Bolzano. 

 

Acabei me aventurando trabalhando como auxiliar num armazém que vendia de tudo. Aprendi muito nesse comércio, desde venda de alimentos até o vinho e suas características. Aproveitei a tolerância do Sr. Pietro que queria mais que eu trabalhasse e não fazia muitas perguntas. Até permitiu que morássemos nos fundos de uma propriedade velha que ele estava sempre pensando em reformar. Catarina passou a trabalhar na sua casa como doméstica. Despertou simpatia em sua esposa pelas habilidades que tinha e até fazia bordados junto com ela. 

 

E assim foi ... 

 

Após quase um ano, eis que de repente fomos descobertos por meu pai que estava acompanhado do pai de Catarina. Ouvimos poucas e boas. Eu engolia em seco mudo e preocupado. Ela soluçava em lágrimas e mal olhava para o pai. Porém, passado aquele momento, começaram a nos perguntar como chegamos ali, o que fazíamos e como vivemos aqueles meses. Nos recuperamos e tivemos a ajuda do Sr. Pietro que nos elogiava. Aliás foi através dele que chegaram à nós, porque sensibilizado, meio a contragosto com a situação que nos envolveu, resolveu escrever para as autoridades em Curon. 

 

E vovô batendo forte uma mão na outra, rindo muito disse: 

 

− Nos levaram de volta para Curon. Ficamos até felizes, porque já estávamos com saudades de todos e de nossa “Piccola Città”. E a emoção daquela visão quando chegamos:  

 

− “Ma que bello o Lago di Resia”. 

Não demorou quinze dias e fizeram o nosso casamento onde “ il mio Amore” estava lindíssima. Parecia uma deusa de branco com aquela tiara de flores. 

 

E se aproximou de mim e cochichou sorrateiro com sorriso no canto da boca : 

 

− Você já é moço e vou te confidenciar. Seu pai, Marcello,  já estava a caminho  há uns três meses. Mas, depois do casamento esta notícia deixou todos felizes e   foi feita a reconciliação com a família da Catarina. Com a morte de Mussolini em 1945 depois com o término da guerra a política foi sendo esquecida por eles.  

 

A nossa Itália por ter passado por tudo isto, não estava nada bem. Precisava ser reconstruída. 

 

Com estas dificuldades e como queríamos progredir, resolvemos emigrar para o Brasil, porque chegavam notícias de que era uma terra promissora e a agricultura iria crescer muito. Foi o que fizemos. Viemos com seu pai e sua tia Bianca e fomos parar numa fazenda na cidade de Pedreira, interior de São Paulo no lugar que devido a colonização italiana era chamado de Tri monte. 

 

Ficamos tristes quando soubemos o que fizeram com nossa Curon em 1950.  Foi totalmente submersa pelas águas, porque precisavam fazer a usina hidroelétrica e nossas famílias foram removidas para mais distante. 

 

Mas, como o comércio estava no meu sangue, não demoramos em vir para a capital. E aí você sabe de toda a história. 

 

E mostrando ar saudoso exclamava: 

- Aquele badalar dos sinos da igreja de Santa Catarina, me lembro até hoje. 

 

E virando-se para mim:  

 

− Vamos entrar que a “nostra bella fiore” irá nos servir o “fusilli com bracciola”. 

 

E cantava alto canção italiana. 

 

Que saudades do vovô. Contava tão bem suas histórias que até eu me imagino em Curon. 

 

 

 

(*) CURON VENOSTA - Cidade ao norte da Itália (fronteira com Suíça e Áustria) que em 1950 foi submersa por conta da construção de usina hidroelétrica. Hoje aparece no Lago de Resia somente a torre da Igreja (Campanário). A Netflix fez uma série usando esta visão da cidade. Dizem que em noites frias ouve-se até os sinos. Contudo, é uma lenda porque foram retirados há alguns anos. 

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