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quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A galope - Hirtis Lazarin

 

 


A galope

Hirtis Lazarin



Ela nasceu numa família pobre e desestruturada.  Pai alcoólatra e mãe que aceitou a cruz como se não houvesse nada mais além.

Helena cansou-se de ouvir: "É o destino, filha".

Os domingos eram torturantes.  O pai não saía de casa, bebia e comia sem parar.  A mãe dividia o tempo entre o fogão e a pia.

Na chegada da noite, já bêbado, inundava a casa de palavrões e louças espatifadas pelo chão.  Desmaiava no sofá da sala para acordar, mal-humorado, só na segunda-feira, já gritando pelo café fresco.

Incontáveis vezes, Helena e a mãe, trancadas no quarto, imploravam proteção à Virgem Maria.  Quantas velas foram acesas e queimadas.

Helena nunca teve a chance de trazer amigos para casa, ouvir música sossegada ou escolher seu programa de t.v.

E, à medida que crescia, falava menos e revoltava-se mais.  Sentia-se muito só e com vergonha da família.

Não suportava a ignorância do pai, nem a passividade da mãe.  Abandonou os estudos a contragosto da dona Esmeralda que sabia muito bem a falta que  faz.  Sem estudo, tornamo-nos escravos de nós mesmos.  E a mocinha fingia não entender...

Nem tinha dezoito anos quando abandonou a todos e fugiu com o namorado.   A mãe quase morreu de tristeza.  Que experiência poderia Helena ter?  Qualquer coisa seria melhor que viver insegura e amargurada naquela casa dos horrores.

Mas, Helena teve sorte.  Samuel era um rapaz bom e trabalhador.  Fazia de tudo para ajudá-la na superação dos traumas, pagou psiquiatra, psicólogo e até se perdeu com tantos boletos de prestação na compra de um cavalo, quando ficou sabendo que a equitação ajudava na recuperação traumática.

Mas nada adiantava.   Helena continuava amarga e de palavras frias.

Tentou engravidar.  Quem sabe o riso e o choro de uma criança pudessem ajudá-la?   O trabalho ininterrupto preencheria o vazio existencial?

Após idas e vindas às clínicas e muitas tentativas, a gravidez não vingou.

Na casa escura, não havia mais música, nem sol.  As janelas sempre fechadas impregnavam às paredes de um cheiro embolorado, úmido e cinzento.

Até os muros que rodeavam a construção, gritavam melancolia.  Cuspiam cal e cimento.  E os buracos só aumentavam.

Samuel chegava cada dia mais tarde.  Passava sempre no boteco da esquina para um trago com os amigos e lá esquecia-se do tempo.    E, quando encontrou, em casa, garrafas vazias de bebida alcoólica escondidas debaixo de um móvel, não teve dúvidas.  Chegara a hora de deixar tudo pra trás.   Não houve discussão nem briga.  Helena sabia que acabara de cavar um buraco profundo pra enterrar de vez sua vida.

Era a primeira noite que ela dormia sozinha.  Sentiu falta do corpo masculino roçando o seu.  Sentiu falta do cheiro e até do ronco de Samuel.

Chorou tanto que ela e o travesseiro dormiram molhados.

Era de madrugada quando acordou sobressaltada.  No escuro e sem energia, aproximou o relógio dos olhos e os ponteiros marcavam quatro horas.

Espiou pela fresta da janela e o vento uivante derrubava coisas e arrastava-as numa cantoria infernal.

Apavorada e só, Helena desceu as escadas.  As janelas e a porta escancaradas.  As cortinas de tecido fino mais pareciam velas desgarradas em alto mar, entrelaçadas em nós.  O chão brilhava encharcado de chuva.  A louça do último jantar eram cacos espalhados sobre a mesa e pelo chão.

O cavalo que vivia solto no quintal relinchou como nunca antes e só se aquietou quando a moça apareceu à porta.

Num ímpeto, Helena soltou os cabelos que viviam escondidos, despiu-se e correu para a chuva.   Montou no cavalo branco e, galopando freneticamente, desapareceu em meio à escuridão da tempestade.



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