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quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Nem sempre o que parece é - Ana Catarina Sant’Anna Maués

 

 




Nem sempre o que parece é

Ana Catarina Sant’Anna Maués

 

   O tempo avançava sem dar trégua e Aurora naquela situação delicada. Não podia deixar vir a público a situação financeira que vinha atravessando, pois sempre ocupou lugar de destaque nos palcos e no cinema com papeis de sucesso. Em jornais e revistas seu status era visto por décadas como vip. Era figura conceituada sem dúvida, mas não conseguia um bom papel há meses, estava caindo, caindo, como estrela cadente e ultimamente nem comerciais fazia, nem recebia acenos para participar de programas de entrevistas. O fato de estar sendo esquecida no meio artístico a deixava sem chão. Foi então que teve a ideia de pegar os últimos tostões e aventurar-se numa viagem que divulgou, sendo para produzir um filme de própria autoria. Esta atitude desembaçaria sua imagem, dando a impressão de que ela agora queria ocupar outro posto, o de produtora de filmes. O tiro foi certeiro, a notícia rendeu-lhe algumas notas na mídia e lustrou provisoriamente o ego dela, mas nenhum convite aconteceu. Iniciou então o plano, chamando um velho e conhecido amigo para atuar como cinegrafista e, portanto, registrar as cenas da aventura onde ela havia apostado todas as fichas.  

   Aurora alugou um automóvel e providenciou um motorista, bem vistoso, alto, musculoso, sorriso perfeito, bem galante era Otávio, pois mataria dois coelhos com uma cajadada, ele dirigiria o carro e faria par romântico com ela, caso precisasse. Sua equipe tinha que ser reduzida devidos aos custos. Tudo pronto para a viagem, dias antes, na porta do edifício, uma admiradora dela. Vinha procurá-la com a proposta de seguir nesta viagem e no caminho ir registrando os feitos da consagrada atriz nesta nova empreitada, o que renderia no final, um documentário da sua vida. Aurora não teria gastos com a escritora. É claro que ela ficou lisonjeada e não resistindo, permitiu que Paulete a acompanhasse.  

   Tudo pronto lá foram os quatro rumo ao desconhecido. Na verdade Aurora não tinha um plano, não tinha um roteiro. Ela necessitava figurar nas notícias para conseguir um bom papel quem sabe numa novela, e seguiria com isto até alcançar. Pensava já, numa desculpa caso algum convite ocorresse, e ter que adiar seu projeto auspicioso de produzir um filme.

   Pelo caminho dizia ao cinegrafista que registrasse a paisagem, o pôr do sol, a revoada de pássaros, pois tudo seria usado no filme mais tarde. Paulete seguia com a série de perguntas para o documentário, as quais eram respondidas com delicadeza por Aurora, que amava falar dela própria.

   Eles haviam tomado o rumo do interior, querendo alcançar outro estado, mas a noite os surpreendeu e o cansaço bateu forte, resolveram pernoitar na primeira cidadezinha que avistaram, e hospedar-se no único hotel que a cidade possuía.

   Logo na recepção Aurora foi reconhecida e como que tapetes vermelhos lhe foram estendidos. Ela muito esperta e devido o tratamento recebido, pediu o melhor quarto, mesmo querendo economizar, precisava ostentar, pois calculou que com aquela recepção nem lhe fosse cobrado o pernoite. Dito e feito, o proprietário ficou tão embevecido com a presença da atriz que foi logo dizendo da honra de tê-la ali, e que seria cortesia a estada dela. Ponto para Aurora que só pagaria a hospedagem do motorista e do cinegrafista. Paulete registrava tudo em seu livrinho de notas.

   Os primeiros raios do sol banharam o corpo alvo da Aurora, acarinharam os longos cabelos claros dela, e fizeram-na espreguiçar-se já plenamente recuperada da viagem do dia anterior. A cabeça, porém, fumaçava de preocupações. Contava com sua perspicácia para sair de tudo que se metia.

   No café oferecido, ela foi rodeada pelos outros hospedes, e entre um autógrafo e outro, falava do motivo de estar ali. Seguia procurando um local para produzir seu primeiro filme onde atuaria também como diretora. Nesta hora um garçom gritou lá no fundo:

— Fique aqui grande dama, teremos a honra de tê-la em nosso hotel.

   A cabeça de Aurora acendeu “sabe que não é má ideia eu aqui sou reconhecida as portas abriram-se não tenho mesmo um projeto estou toda enrolada dívidas chegando aqui tenho hospedagem gratuita faço qualquer “misancene”, e viro notícia e logo, logo estarei de volta à capital com um bom papel. E sem ficar com a face rubra respondeu:

— Quanta gentileza, mas será que o jovem proprietário ainda me quer por aqui?

  Ouvindo-a, quase que de boca aberta, embasbacado que estava pela beleza dela, o proprietário derreteu-se e confirmou a súplica do garçom.

   Foi nesta hora que Paulete saiu, a um canto da sala, para atender o celular.

Misteriosa, falando baixo e com monossílabos. A verdade é que Paulete trabalhava para um programa de tv, de fofocas. Ela desconfiava que a atriz estivesse alquebrada e planejou se passar como escritora de um documentário para viver mais de perto com Aurora, e em confirmando sua suspeita, estampar como escândalo a notícia, mas até o momento não tinha descoberto nada.

   Ela já estava há uma semana na cidadezinha, e nada. Passava bastante tempo no quarto e quando saia dizia que esteve escrevendo, repassando algumas cenas que filmaria.

  Numa manhã ela acordou animada e disse ao cinegrafista e ao motorista, que iriam fazer algumas cenas ao ar livre.

    Ela contava com a experiência do cinegrafista que tomaria as cenas do suposto romance, mas isso ainda estava bastante nublado em sua mente, precisava de tempo e contava com a sorte de ser logo contratada e parar de vez com aquele projeto emblemático.

   Era bem cedo, a cidade ainda dormia, quando os quatro saíram, cada um na sua função. Aurora parecia que havia feito um pacto de encantamento com o dia, pois vestia um floral esvoaçante onde a cor rosa saltava aos olhos e a deixava especialmente mais doce. Ela precisava montar uma cena e seguir com seu falso projeto. Sugeriu uma tomada onde caminharia pelo calçamento e vez por outra colheria violetinhas que espalhadas coloriam o verde da grama, e iria colhê-las até que formasse um buquê. Quando isto acontecesse Otávio entraria na filmagem, e enquanto ela caminhasse distraída, ele se aproximaria dando um encontrão nela, fazendo-a desequilibrar, mas a segurando imediatamente, impedindo- a de cair. Tudo isto captado pela lente do experiente cinegrafista. Como espectadora, apenas Paulete, fingindo anotar tudo em seu caderninho.

   Foi dada largada, o cinegrafista disse “ação”. Acontece que o encontrão combinado aconteceu bem em frente ao casarão do único advogado da cidade, e, diga-se de passagem, advogado sem causas, por isto totalmente falido. Que se aproximou muito irritado de ver que a jovem estava colhendo as violetinhas, fruto de grande e árduo trabalho que teve para plantá-las.

   Chegou esbravejando, porém de pronto reconheceu Aurora e logo se desculpou. E após muitas desculpas para cá, desculpas para lá, pois ela também se desculpou por colher, todos entraram na mansão de Douglas.

   Ele gentilmente ofereceu uma xícara de chá, mas ruídos desconcertantes vinham do segundo andar e ele tratou logo de fazer todos irem embora.

   Após saírem, Douglas muito revoltado, chamou as três filhas fantasmas para uma conversinha.   

 — Será possível que não posso trazer ninguém aqui em casa que vocês tratam logo de fazer bagunça?

— Ora, papai, disse uma delas, que teria dez anos se estivesse viva. Não queremos que você namore ninguém, o senhor é viúvo e vai continuar sendo.

   Mas esta moça é uma atriz famosa, não olharia para mim, só quis ser gentil.

  Mas é assim que começa, tudo começa com um chá, mamãe disse isto para mim um dia, interpelou a outra que contava oito anos de idade.

— Margarida, disse Douglas, você é a mais velha minha filha, controle suas irmãs por favor.

 — Papai, o senhor sabe que eu te amo, mas elas são mais fortes que eu, unem-se contra mim. Eu peço, peço e não me escutam. Eu só estou aqui papai por que tenho algo a contar e quando contar vou embora. É que ...

— Margarida não se atreva, disseram as duas quase a uma só voz.

   E assim sumiram as três.

   Douglas ficou encantado com a beleza suave de Aurora e à noite a lembrança do dia, povoaram seu coração e mente e pela primeira vez, depois de anos, adormeceu com um sorriso nos lábios.

   No outro dia sentiu grande ímpeto de procurar Aurora e abrir seu coração do porquê de praticamente tê-la expulsado da casa.

   Tomou coragem e foi.

   No hotel, Paulete não conseguia avançar em suas investigações. Queria ter uma oportunidade de entrar no quarto da atriz e mexer em armário, bolsa, documentos, precisava apresentar algo que fosse um grande furo de fofoca, o mais cedo possível, pois já estava aborrecida de fingir ser escritora. Resolveu então, aproximar-se do cinegrafista, envolvê-lo, prometendo soma em dinheiro, caso soubesse de algo, ou descobrisse algum passo maldado de Aurora. Por enquanto, o cinegrafista disse, suspeitar de problemas financeiros, mas não podia afirmar nada, pois ela o pagava semanalmente de forma correta, mas prometeu ficar atento. Otávio chegou mansinho e escutou a conversa entre os dois e disse saber sim de algo bombástico, mas queria também uma pontinha no acerto entre eles. Os três então fizeram um pacto. Otávio contou que antes de partirem nesta viagem, trabalhando como motorista dela, levou a atriz até um banco de penhor, certamente para penhorar joias, e perguntou se isto serviria como fofoca para a mídia. Paulete argumentou que ela poderia ter apenas guardado as joias e não penhorado. Daí precisava da cautela do penhor, o documento que provasse a ação. Isto sim seria uma prova boa para mostrar a falência de Aurora em todos os sentidos, pois até desconfiava que o fato dela estar dizendo que reproduzia um filme, era puro blefe.          

     Enquanto isto, Douglas chegou na recepção do hotel procurando por Aurora.

    O recepcionista a chamou e ela desceu para encontrar o recém amigo. Os dois saíram a caminhar até uma praça próxima e ali permaneceram. Douglas abriu o coração e disse ser viúvo, que sozinho vivia, não tinha filhos. Perdeu a família num desastre aéreo e as filhas assombravam a casa, pois não aceitavam que ele se aproximasse de qualquer moça, sentiam ciúmes, e explicou que o barulho no andar de cima, no dia de ontem, foram as meninas querendo assustar a todos. Ele estava muito cansado de toda esta situação.

Aurora apiedou-se dele e dali surgiu algo envolvente.

   No hotel os três tramavam entrar no quarto e revirar as coisas de Aurora.

Dentre eles o mais ousado era o cinegrafista e para ele coube a façanha. Paulete foi até a praça atrasar à volta de Aurora ao hotel. Otávio ficou no corredor observando a circulação dos funcionários, dando cobertura ao cinegrafista. Já dentro do quarto a busca foi frenética, até que numa sacola com zíper, o cinegrafista encontrou a cautela, prova de que as joias de Aurora foram mesmo penhoradas.

   Ele fotografou com o celular e colocou o documento no mesmo lugar.

   Na praça Paulete recebeu recado de Otávio para dar uma chegadinha até a recepção. Ela deixou Aurora e Douglas conversando animadamente.

   Quando a atriz retornou, não encontrou mais nenhum dos três. Apenas o aviso de que tinham ido embora. Aurora ficou surpresa e intrigada. Chegou no quarto achou tudo em ordem, até pensou que a tivessem furtado em algo, mas não percebeu nada de anormal.

   No outro dia quando desceu para o café, encontrou um jornal sensacionalista sobre a mesa, com a manchete “ARTISTA AURORA PENHORA ÚLTIMAS JOIAS E FOGE PARA O OSTRACISMO “.

   Foi como um soco no estômago. Império ruído. Desmascarada no seco, sem dó nem piedade. Fama e glória para debaixo do tapete como poeira. Não houve como não chorar copiosamente. Funcionários e proprietário do hotel ficaram penalizados com a visão.

   Aurora foi para a rua atordoada, caminhava sem rumo, cabisbaixa, envergonhada, humilhada e chorosa. Quem veio encontrá-la foi Douglas, que já tinha lido o jornaleco, e quando a viu a abraçou e a levou para sua casa.

   Chegando, não foi bem recebida pelas fantasminhas, que iniciaram uma série de ruídos, arremessavam utensílios, arrastavam móveis, mas para surpresa delas, Aurora não ligava, não se impressionava, tinha os olhos inchados de tanto chorar.                

   Douglas a consolava e a encorajava. Resolveu contar a ela seu infortúnio.

— Sei bem o que você está sentindo, pois já tive fama, já fui aclamado por muitos quando era advogado famoso, com dinheiro e poder. Recebia inúmeros convites para festas, entrevistas, tive até um programa onde as pessoas buscavam esclarecer dúvidas jurídicas. Fui alvo de uma trama por pura inveja de alguns amigos da mesma profissão. Que não interessa relembrar agora. Cidade pequena, já viu né, fui para o esgoto, sem notoriedade alguma. Até minha esposa inventou uma viagem com minhas filhas e disse que quando retornasse não me queria mais aqui na nossa casa.

   As fantasminhas escutaram esta revelação e ficaram com peso na consciência pelo muito que perseguiram o pai tantos anos, por pensarem que ele era que queria se separar da mãe delas. Resolveram então deixá-lo finalmente, mas não sem antes devolver o cofre com muitas notas de dinheiro e papéis de muito valor.

  — Papai, disse uma delas, queremos pedir seu perdão. Mamãe nos disse que você queria nos deixar e por isso antes de viajarmos, escondemos o cofre para você não ir embora, mas agora escutamos a verdade, o cofre está enterrado no quintal, próximo ao mamoeiro. Vamos deixá-lo papai, queremos que seja feliz e você também Sra. Aurora.

   Um silêncio se fez ouvir na sala onde estavam Douglas e Aurora.

   Dez anos já se passaram. Aurora e Douglas casaram e vivem na casa antes assombrada. Ela conseguiu um papel de destaque num filme, mas a carreira perdeu o encanto, agora não pensa mais em ser famosa, apenas em ser feliz com Douglas.  

 

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