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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

A LIÇÃO DO CARAMUJO - Hirtis Larazarin


 


A LIÇÃO DO CARAMUJO
Hirtis Larazarin



André não tinha jeito, não.  Era briguento e insatisfeito com a vida.  Reclamava de tudo.  Uma família bem estruturada e pais carinhosos. Não tinha tudo o que queria, mas tudo que precisava.  Estudava numa boa escola, bons amigos e uma namorada apaixonada.

          Aos dezoito anos entrou numa crise depressiva.  Trancou-se no quarto, janelas fechadas.  A presença da luz e de pessoas irritava-o tanto, a ponto de perder a razão e destruir o que via pela frente.   Não aceitava medicamentos nem a presença de terapeuta.  Os pais não sabiam mais o que fazer.  Enquanto as crianças irrequietas e felizes brincavam lá fora. André definhava lá dentro.

          Numa madrugada, quando a casa dormia no silêncio da noite, ele levantou-se e, pé ante pé, atravessou os ambientes e chegou ao jardim.  Sentou-se no degrau da sala iluminado pela luz fraca do poste, as plantas adormeciam.   Nem uma brisa.  Apenas o silêncio que o confortava.  Foi então que percebeu não estar sozinho.  Um animalzinho delicado caminhava lentamente e com muito esforço carregava a casa nas costas.  E o cansaço deixava um rastro de sofrimento por onde passava.  Era um caramujo, um molusco indefeso que visita jardins à noite e se alimenta de folhas tenras, protegendo-se dos predadores, inimigos mortais.

           De pronto o rapaz identificou-se com ele.  E todas as noites,  na madrugada, André visitava o caramujo que já se acostumara com sua presença.  Tornaram-se amigos e ganhou até um nome:  Carmelo.

          Não é que o rapaz se imaginou na pele de um caramujo.... Sentiu a dificuldade de rastejar-se pelo chão.  Sentiu inveja dos pássaros que viajam alcançando as mais altas árvores do bosque... Das borboletas de asas brilhantes que colorem por onde passam... Até da joaninha pintada de vermelho com bolinhas pretas espalhadas pelo corpo...

          Mas o caramujo solitário não desistia de viver.  Fazia o melhor dentro de suas parcas possibilidades.  Era humilde e aceitava o que não podia mudar.  E toda essa reflexão começou a "rebuliçar" a cabeça de André.

          Na madrugada de uma quinta-feira preguiçosa e chuvosa, ele encontrou o amigo sem vida enroscada num galho miúdo e seco que se soltara da roseira.  Foi um choque.  Chorou muito.  Nem sabia que se apegara tanto àquele ser que quase passa invisível aos olhos humanos.

          Mas foi o Carmelo que o ajudou a compreender o quanto era ingrato e egoísta.  Não foi de repente, mas aos poucos...  Foi se desvencilhando daquela casca grossa envolvente que o impedia de ver o quanto era feliz e privilegiado. 

E o mais importante, valorizar a força que possuía para caminhar sozinho, vencer desafios e escrever sua história.

          Hoje Carmelo está guardado num vidro ao lado dos livros de André.  E a cada vacilo, é só encará-lo que as forças depressa chegam.




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