A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Eu não quero ser uma caneca - Hirtis Lazarin





Eu não quero ser uma caneca
Hirtis Lazarin



 
Vó Toninha morava no casarão da esquina na Rua Torta.  Apesar de viver sozinha, esbanjava bom humor e a solidão nunca conseguiu encontrá-la.  Criativa e inteligente, sentia prazer imenso em contar historinhas, inventar outras e até alterar as já conhecidas.  Não é à toa que vivia rodeada de crianças.

     Como passava o maior tempo na cozinha, seu cantinho preferido, até apelidos e brincadeiras ela fazia com os objetos da cozinha.  Dizia que o "bule" tinha o bico aberto e não parava de tagarelar.  A "tigela" de porcelana finíssima pintada de flores era a" margarida desfolhada" só porque tinha uma rachadura quase imperceptível na borda.  A "panela" de alumínio amassada e com o cabo de madeira esfrangalhado era a "idosa querida".  Fazia até competições entre as xícaras de café, "as anãzinhas", com as de chá, "as poderosas".  Confusão na certa!

     Guardada no armário de vidro espelhado, reinava uma caneca de louça vermelha e branca com o emblema da Suíça.  Presente que o esposo ganhou do governo de lá.  Era poupada e resguardada.  Uma relíquia. A tal caneca sabia do valor emocional que representava e se aproveitava disso.   Sentia-se poderosa e esbanjava orgulho.  Nunca abriu mão do seu trono.


     Numa noite estrelada em que a lua cheia espantou a escuridão, a caneca abandonou a clausura daquele convento.  Queria conhecer o mundo que girava lá fora.  Nos primeiros dias foi dificílimo driblar os passos dos pedestres para não morrer pisoteada.  Todos tão apressados como se o mundo fosse acabar naquele instante.  Atordoada naquele vaivém,   escondeu-se debaixo de uma lixeira e toda encolhidinha aguardou a tontura e o pavor passarem.  Atravessou uma rua calma e sentou-se numa pracinha sombreada, onde crianças pequenas brincavam.  Divertiu-se muito com as peripécias da criançada até que um garoto bem fortinho deu um chute certeiro na bola.  Ela subiu zunindo no ar, deu duas ou três piruetas e caiu acertadamente no banco onde a caneca, até então, sentia-se a mais segura das criaturas.  O banco de madeira já gasto chacoalhou-se tanto que a caneca saltou no ar e, só não se espatifou porque sua queda foi amortecida por um ursinho de pelúcia.  Só recobrou os sentidos quando estava noite e o parquinho vazio.  Teve a grandeza de agradecer por estar viva, pôs-se em pé e se contorceu toda para se livrar da areia suja que a incomodava.

     E foi a primeira vez que suas lágrimas rolaram. "Estou arrasada.  Sei que meu fim está próximo.  É só alguém, nervoso ou irritado, por engano, encher-me de café fresquinho e bem quente.  O líquido vai escorrer pelo trincado e eu, coitada de mim, serei atirada bem longe até e me desfarei em pedacinhos.  Mil pedacinhos.  Um final muito triste"

     Era uma vez uma caneca presunçosa que se amava além da conta. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.

A última carta. - Adelaide Dittmers

  A última carta. Adelaide Dittmers   Suzana segurou o envelope meio amassado, como se tivesse passado por diversas mãos. Um frêmito s...