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quinta-feira, 28 de março de 2019

Era desnecessário sofrer tanto - Hirtis Lazarin




Resultado de imagem para mesa de escritório bem arrumada

Era  desnecessário sofrer  tanto
Hirtis Lazarin


   
          Charles era filho único de pais mais idosos.  Amor e carinho nunca lhe faltaram, mas sempre acompanhados de normas bem rígidas.  Estudar muito, não perder tempo e encarar a vida com responsabilidade.  O resultado chegou na forma de um rapaz competente, seguro e aberto a novas ideias.  Um líder nato.  Por mérito tornou-se o responsável por um escritório contábil e mais quatro jovens promissores.  Duas lentes grossas escondiam olhos pequenos e observadores.  Capazes de controlar cada movimento de seus subordinados.  Embora cobrasse deles eficiência, atenção e raciocínio rápido, era paciente e não se importava em gastar o tempo que fosse necessário para treiná-los até que se sentissem seguros.  Charles tinha coração de ouro: repartia conhecimentos, distribuía entusiasmo e doava boa vontade.  

     Entretanto, algumas manias o incomodavam e aos outros também.  Maníaco por arrumação e limpeza.  Não tolerava nada que estivesse fora do lugar por ele definido.  As gavetas sempre fechadas porque abertas denunciavam nossas defeitos, documentos e pastas bem organizados ao lado do computador.  Celular, nem pensar.  Uma caixa na entrada recolhia-os desligados. 

      A organização de sua mesa era o exagero do primor, meio afeminada para um homem de um metro e oitenta, de jeito educado e fino, mas viril.  Ao centro da mesa o computador imóvel como se colado fosse com super bonder, à esquerda um porta-retratos dos pais, à direita um vaso solitário de cristal que oferecia todos os dias uma rosa branca à Nossa Senhora.  Sobre outra mesinha colada à sua, uma bandeja de prata ornamentada com toalhinha de renda da Ilha da Madeira, presente da avó, um copo, uma xícara e um pires de porcelana.

     No escritório não se podia pronunciar a palavra ”problema” porque junto dela vinha uma série de tropeços e muito azar.  Se Charles estivesse em pé, parado no mesmo lugar, olhar perdido, mexendo nervoso nos botões da camisa, a ponto de arrancá-los, era sinal vermelho.  Era fácil saber que algo o incomodava, difícil era descobrir onde estava o erro.

     Era sexta-feira, primeira reunião do ano no escritório central.  Charles chegou mais tarde ao trabalho trazendo novidades e distribuindo bom humor.  Seria um príncipe, não fossem as marcas profundas no rosto deixadas por um batalhão de espinhas que o atormentaram tanto na adolescência.  Um sofrimento reprimido que lhe presenteou com complexo de inferioridade somado à introspecção.  Ele vestia um terno marinho bem talhado, camisa azul bem clarinho e gravata vermelha.  Um executivo.  Luciana, a menina debochada, não se conteve e gritou: "os sapatos!"  Os olhares num coro mudo convergiram para os pés do chefe.  Uma confraternização de gargalhadas.  Era a primeira vez que Charles colocava a cabeça fora da concha.  Nos minutos próximos, escondeu-a novamente, todo desajeitado.

     Os funcionários chegaram às oito e trinta, como todos os dias.  A porta não estava trancada e a sala silenciosa na escuridão.  Estava estranho.  Charles chegava sempre mais cedo, abria a porta, acendia as luzes, abria a cortina e o dia de trabalho começava.  Chamaram a polícia e dois deles entraram armados.  A sala estava um deserto revirado de ponta cabeça.  As cadeiras no chão, as pastas e documentos espalhados, a cortina rasgada.  O estrago maior estava na mesa de Charles.  O porta-retratos espatifado no chão, o vaso em cacos sobre a mesa, a água escorria vagarosa danificando documentos e a rosa branca desfolhada, não teve tempo de pedir socorro e morreu em paz.

     No banheiro, encontraram Charles sentado no chão, sem camisa, pernas flexionadas e rosto enterrado entre os joelhos.  Chorava e soluçava baixinho.  Muito lentamente levantou a cabeça, rosto branco esverdeado, tremia tanto que demorou um século para soletrar a primeira palavra: ba - ra - tas.  Baratas causavam-lhe pânico.  Era medo, dor, muito sofrimento.  Tinha coragem para enfrentar um animal selvagem, mas baratas ”NÃO”, “NUNCA".

     Charles nunca mais voltou ao trabalho.


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