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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

VIDA PERDIDA - Hirtis Lazarin





VIDA  PERDIDA
Hirtis Lazarin


     Conheci o Gino de ontem e conheço o Gino de agora.

     Há muito tempo, Gino abandonou a família, o trabalho estável bem remunerado e partiu sem rumo por este mundo de Deus.

     O que levaria um homem a fazer isso?   Um desgosto profundo?  Uma traição?  Um surto?  Loucura?  Todos esses pensamentos gritam quando se vê a vida do lado de cá.

     Aquela noite chuvosa estava muito... muito ...fria. Até o criquilar dos grilos saía congelado.

     A casa estava vazia.  Há horas, Gino angustiado caminhava incessantemente de um cômodo a outro seguindo o tic tac compassado do relógio.

     Ouvia-se lá de fora, o plim plim plim  ritmado dos pingos grossos da chuva batendo numa bacia de alumínio, como se uma música fosse começar. Até isso irritava-o, mas nada fazia pra interromper essa agonia.  Ao contrário, o seu ódio, o seu descontrole só fazia crescer.

     E foi assim, sem condições de pensar nas consequências, alucinado, desapareceu de casa sem levar nada.  Apenas um bilhete trêmulo e rasurado:  "Estou indo embora.  Não me procurem."

     Andou...andou...quilômetros por estrada desconhecida.  O cansaço parou-o num matagal espesso.   Desmaiou e só acordou quando, no dia seguinte, o sol forte que se esgueirava entre os galhos, por uma frestinha, encontrou seu rosto.  Cheio de dores e com muitos arranhões pelo braço, sabia o que teria que ser feito.  Era ali que queria ficar.

     Sem ferramentas e com pouca habilidade, abriu, ali mesmo, uma pequena clareira, espaço suficiente pra ele.  Aos poucos, recolhendo pedaços do que já foram portas, janelas e pés de mesa  armou sua barraca.  A chuva era impedida de entrar por sacos plásticos pretos e grossos.  Estava pronto o lugar onde passaria os últimos dos seus dias e, conscientemente, torcia pra que fossem poucos.  Não lhe importava mais saber  o dia, nem o mês, nem o ano.  Tinha o que precisava: "PAZ".

     As noites eram longas e silenciosas.  De vez em quando, acordava sobressaltado com o pio de uma coruja solitária e indefesa. O piar mais parecia o lamento de alguma alma perdida.   Durante o dia, o que realmente lhe incomodava, era o zum zum zum monótono e incessante de borrachudos loucos pra se alimentar do sangue da vítima.  Às vezes, varejeiras perigosas se fantasiavam  de verde azulado e se misturavam a esses mosquitinhos.

      Gino cobria-se com trapos que encontrava em suas andanças.  Muitos desses trapos tinham certos detalhes próprios de roupas que, um dia, fizeram parte de um guarda-roupa luxuoso.

       Hoje, os cabelos que já foram fartos e bem tratados, desapareceram.  Apenas alguns punhados de fios que teimam em resistir.  A barba crescida e desregrada esconde-lhe o rosto magro.  Visíveis apenas o nariz e os olhos claros lacrimejantes.

     Que sofrimento esconde essa criatura?  Quem tirou-lhe a esperança, o desejo, a mola propulsora da vida?  Quem ou o que o forçou à solidão?  Solidão que o tornou arisco, desconfiado e de pouquíssimas palavras.  Apenas dois gatos tinham o privilégio da sua companhia e de alguns gestos carinhosos. 

     Tudo tem uma explicação.  E eu fui em busca dela.  Desvendar esse segredo, o lado silencioso e obscuro dessa história.

     Gino era casado, tinha um menino e Vanda, a mais nova. Os traços da menina, delicados e bem torneados, chamavam a atenção.  E, ainda bem pequenina, já era requisitada pra comerciais de t.v.  Mas foi na adolescência que sua beleza explodiu.  E junto, explodiram a rebeldia e a vaidade exagerada.  Era a preocupação com os cabelos, com o corpo, com a pele.  Deixou os estudos pra trás e a vontade de ser advogada.   Os livros da escrivaninha deram lugar a cremes, shampoos, cosméticos e essa parafernália toda que promete a juventude eterna. 

     A família vivia um cotidiano fútil baseado em beleza, moda, tratamentos e dietas em busca da perfeição.  "Passarela", "modelo", "sucesso" "fama" e "dinheiro" eram as palavras mais pronunciadas naquela casa.

     O tempo corria veloz e a carreira de Vanda andava feito tartaruga.  Os esforços eram muitos, as oportunidades eram poucas.

    Enquanto o pai aconselhava, advertia, mostrava a efemeridade dessa carreira, a mãe não só apoiava como era a maior incentivadora das loucuras da filha. 

     Vanda já passara por vários procedimentos estéticos, mas não se satisfazia com o que o espelho lhe mostrava.  Insistia agora numa lipoaspiração abdominal.  As dezenas de" não" do pai geraram choro, gritos, brigas, muita confusão.   A casa enlouqueceu.

     Às escondidas do pai, Vanda chegou à mesa de cirurgia. e tudo correu conforme a previsão médica.  Ficou internada por dois dias apenas e a recuperação seria em casa.  Cinco dias depois, um mal-estar que seria passageiro levou-a à uma nova internação.  E, pra desespero da família, uma parada cardiorrespiratória tirou-lhe a vida.  E, hoje, um túmulo frio e cinzento acolhe os dezoito anos de uma jovem sonhadora, que sonhou o impossível.

     Gino não suportou, entregou-se à bebida, abandonou tudo e perdeu-se pela vida. 



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