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quinta-feira, 4 de maio de 2017

O diário. - Amora


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O diário.
Amora

Hábito comum havia antigamente, fazer diário. Era uma forma de expressar sentimentos, comunicar-se, registrar momentos importantes e inesquecíveis. Ou escreviam cartas longas, ou marcavam em seus diários, o que não queriam esquecer.

Eu mesma, na infância e adolescência, fiz um diário. Não escrevia à máquina nem, atualmente, em computadores. Já estamos até entrando em nova era, quando só basta “pensar” que  fica registrado. Não entendo muito sobre isso, mas será num futuro bem próximo.

Sinto falta daquele tempo, quando a única preocupação era esconder o diário para que ninguém o lesse.   Hoje, a invasão da nossa privacidade é muito maior. Triste isso! Parecemos robôs ou marionetes manejados nem sabemos direito por quem? Suas intenções! Qualidades! Objetivos!

Controlados, talvez por máquinas! Sem vida. Sem alma. Falta espiritualidade.

Gosto das coisas antigas, dos costumes, linguagem, educação, respeito, atraem-me. Apego-me a filmes, livros, objetos, museus, até vestuário. Espero que sejam preservados para sempre!

Ah! Lembro-me, agora! Entrei, certa vez, numa casa velha, vazia, colocada à venda para demolição. Talvez um novo prédio, cheio de divisões ou compartimentos. Mania perigosa que tenho!

Sua construção antiga, arquitetura refinada, lembrando estilo barroco, período rococó, revelou mais ou menos a personalidade da família que ali morou. Gente abastada! Nobreza! Bairro de São Paulo considerado muito chique, em tempos passados, Campos Elíseos.

Visitei os cômodos enormes, tetos altos, algumas pinturas existentes, desenhos descascados que ainda se viam sob o desgaste aparente.

Muito surpresa, verifico, num dos quartos, uma velha cômoda de cerejeira, estilo Luís XVI. Cheia de gavetas enfeitadas com puxadores de cobre. Com certeza, não despertou interesse de ninguém,  ou não a tenham visto. Deve valer muito nas  lojas de antiguidades, apesar do estado.

Curiosa desde menina, sempre sonhadora e romântica, verifico se as gavetas ainda abrem. Sim, uma delas, a última,  não está emperrada. Abre facilmente.
Entre alguns papéis irreconhecíveis e jornais esmaecidos, o que vejo? Um caderno capa dura, amarelado pelo tempo, com folhas rasgadas nas pontas. Abro-o e percebo ter sido um diário. Alguém deixara nele, com tinta nanquim, ainda visível, escrito à pena, com certeza, impressões de uma vida.

Emocionada, sem que ninguém visse, apanho-o, fecho silenciosamente a gaveta, coloco-o na sacola e saio, às pressas, com medo de ser interceptada.  Senti-me carregando um tesouro, a ser escondido e revelado em minha casa, meu sofá, local predileto de leitura e filmes.

Feliz por morar sozinha, dessa vez, pois não seria importunada por ninguém!  Era um sábado, 18 de março de 2000.

Sento-me de modo confortável e, com mãos trêmulas,  controlando meu coração acelerado, folheio, delicadamente, as primeiras páginas. A tinta muito clara e a letra leve, redonda, formando pequenas curvas mais acentuadas, demonstram ser de mulher. Realmente, mulher jovem, alegre e apaixonada, percebo  logo. Seu nome, Valéria.”

São Paulo, 25 de maio de 1912, 8,00 h.
Hoje, levantei-me contente, querido diário, meu amigo mais íntimo, de todas as horas. Dia claro, ensolarado, céu sem nuvens, novidades boas no ar. Soube,  ontem, por papai, que meu prometido, Alfredo, está para chegar da Europa. Acompanhado pela mãe e irmãos, findou seus passeios e estudos em Paris, após rumores de guerra, principalmente França.
Finalmente, vou rever meu quase noivo, escolhido por nossas famílias, entre tantos primos e conhecidos que temos.
Gostei muito dele, colocando em Alfredo minhas aspirações de felicidade.
O meu dia hoje será de preparativos, idas a costureiras,  enxoval, muitas coisas que mamãe irá resolver. Sinto-me feliz.
Após algumas interrupções, voltei à leitura no dia seguinte.

São Paulo, 05 de junho de 1912, 10,00h 
Querido diário. Não tenho escrito muito nesses dias, porque a correria está sendo grande.
Amanhã, iremos a Santos esperar Alfredo e família que chegarão no vapor das cinco. Meu entusiasmo é grande e minha saudade também. Estou muito ansiosa com tantos preparativos e não vejo a hora de repousar em seus olhos claros, desmaiar no seu sorriso bonito, seu porte elegante e calmo. Ele é diferente dos rapazes que conheci até hoje.

Continuo lendo, bastante interessada, em outro momento.

São Paulo, 20 de junho de 1912, 9,00h
Alfredo chegou! Sua aristocrática família, também. Alegre, saudoso, gentil, encheu-me de carinhos e presentes, demonstrando que não me esqueceu, apesar dos anos fora e tantos conhecimentos adquiridos.  Morria de medo que, com o tempo, esquecesse do seu compromisso aqui, no Brasil. Quanto a mim, bastou um sorriso seu para voltar todo o meu entusiasmo e amor por esse homem que preenche tudo que penso em assuntos românticos e sentimentais. Gosto dele e, se não casarmos, não quero mais ninguém!
“novo dia, nova leitura.”

São Paulo, 09 de julho de 1912, 9,00h
Querido diário, sempre apaixonada, espero Alfredo todas as noites. Tem vindo jantar e passa horas conversando com papai, no escritório. Acho que conversam sobre sua viagem e estudos realizados.  Ambos são advogados e têm muita coisa em comum. Logo marcaremos uma data para o nosso noivado que, segundo ele, será rápido, marcando o casamento quase em seguida. Será mais uma satisfação à sua mãe e à sociedade, amigos que frequentamos.

Vejo-me envolvida com Valéria.

São Paulo, 01 de agosto de 1912, 10,00h
Hoje o dia amanheceu lindo. As rosas do jardim parecem mais brilhantes e vivas, combinando com o meu coração.
Querido amigo diário! Meu noivado foi ontem, maravilhoso, sentindo-me a mais feliz das mulheres. Alfredo nunca foi tão amoroso e gentil! Nossa festa deu certo, meu vestido ficou muito bom, os convidados estavam alegres, participando da nossa felicidade. Os familiares contentes, confirmando ser a nossa união do agrado geral.
Nunca me senti tão segura e  certa do passo sério que é um casamento.  Já me sinto unida a Alfredo como se nunca tivesse separado.
Algumas amigas que hoje são casadas, não sentiram essa segurança. Pareciam estar nervosas e indecisas até o grande dia, quando se acalmaram. Marita foi uma delas, minha melhor amiga, nervosa como só ela. Será minha madrinha. Ela e o marido Leandro, que é tão bom quanto Alfredo será.

Que interessante! E agora, o que virá, tantos anos antes?

São Paulo, 04 de setembro de 1912, 9,00h
Meu casamento foi marcado para 12 de dezembro, dia do aniversário da minha futura sogra. Os preparativos são muitos, roupas, moradia, móveis, presentes, convites, escolha da igreja, ensaios, número de convidados. Eu e Alfredo estamos meio estressados. Mal temos tempo par conversar,  namorar como fazíamos antes. Nunca pensei que um casamento desse tanto trabalho. Ele, coitado, começou a trabalhar, montando um escritório de advocacia na Rua Direita, em sociedade com um amigo. Seus momentos de lazer terminaram. Ultimamente, temo-nos visto pouco. Sinto sua falta e espero que o casamento chegue logo.

Entusiasmada e emocionada, continuo lendo seus relatos como se fosse um romance.

São Paulo, 12 de outubro de 1912, 8,00h
Meu diário, meu companheiro. Escrevo aqui minhas preocupações também. Ando entristecida porque não tenho visto meu noivo como queria. Como nos víamos antes. É tanto trabalho, tanta coisa para resolver, que vou acabar ficando igual às minhas amigas, nervosas até a cerimônia. Marita tem me ajudado  vindo várias vezes fazer companhia. De vez em quando, olha-me assustada, como se quisesse me  dizer alguma coisa. Acho que é preocupação demais. Sempre foi meio cismada. Logo chega dezembro e tudo se resolve.


Novas palavras no diário: percebo, preocupada... Tudo indica alguma modificação no assunto.




São Paulo, 15 de novembro de 1912, 10,00h
Tenho escrito pouco. Até vontade e tempo de escrever está sumindo. Faz uma semana que Alfredo não aparece, alegando muito trabalho e pequenas viagens. Parece que a guerra na Europa está começando mesmo e isto o tem preocupado. Medo que atinja também o Brasil. Meu pai também anda preocupado e olha-me compadecido. Sinto algo no ar! Alguma notícia estranha. Desabafo-me com você, coloco minhas preocupações nessas linhas estreitas, em você, meu diário. É a única maneira que tenho de falar, sem causar constrangimento.

Entristecida, prevejo outro final para a linda história de Valéria!

São Paulo, 28 de novembro de 1912, 10,00h
Não tenho vontade de escrever! Sinto que amadureci ou endureci de repente, querido diário. Minha angústia e tristeza é tanta que, acredito, seja o dia de hoje, uma despedida. Deixo aqui gravadas, em você, meu amigo, como se fosse alguém e não um objeto de expressão.
Após algum tempo de pequenas frustrações, ausências repetidas e desculpas de Alfredo, recebo a visita de Marita que, muito reservada, chama-me ao meu quarto para conversarmos. Com muita delicadeza e mágoa, prepara-me para uma notícia triste. Soubera, pelo marido, que Alfredo se apaixonara por uma mulher humilde, muito bonita, com um filho a caminho, querendo desfazer o compromisso de noivado, mas não tem coragem. Abriu-se com a mãe que, de desgosto, mudou-se para outra cidade. Não poderá haver mais casamento, nessa situação. Alfredo sempre foi um homem sentimental, um pouco fraco e  sensível, colocando a beleza e a arte como qualidades principais em sua vida. Gostou de outra, trocando  cultura, posição e riqueza por simplicidade e beleza de outra pessoa. Uma costureira.
Desfaleci e Marita me amparou. Nem coragem de vir me contar, teve.
Acho que vou morrer! Não acredito em mais ninguém!
                                  

Após ler tantas folhas espaçadas e interrompidas por minhas atividades, comovo-me e choro, percebendo que o diário de Valéria  mexeu comigo, fazendo um diário na minha vida também, levando alguns meses para sua leitura.

Guardei-o amorosamente em minha gaveta. E, meses mais tarde, folheei-o, vendo uma página solta, escrita às pressas, pelas poucas palavras e entusiasmo.

São Paulo, o2 de abril de 2013, 8,00h
Meu diário, estou me despedindo, virando sua última página em minha vida. Após o rompimento com Alfredo, sofri uma grande depressão, pensando em acabar com tudo. Felizmente, fui salva por meu médico que me encaminhou a um serviço voluntário com crianças doentes. Conheci Roberto, um médico pediatra.  Apaixonamo-nos e devo casar em breve. Minha lua de mel será nos Estados Unidos! Encontrei novamente a  felicidade. Adeus!




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