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quinta-feira, 11 de abril de 2019

FORTES EMOÇÕES - Hirtis Lazarin





FORTES EMOÇÕES
Hirtis Lazarin


     Chris só tinha dezoito anos.  Dinâmica e segura de si.  De personalidade forte vivia quebrando regras.  Era adepta do novo, do diferente, do secreto.  A rotina nunca fez parte de seu cardápio.  Jovem poderosa, se percebesse invasão à privacidade de sua alma, reagia com sarcasmo para proteger seus sentimentos.

     Sua beleza selvagem e cativante abria-lhe caminhos difíceis, transformando-os nos mais fáceis para se adentrar.  Os rapazes paparicavam-na e as meninas sentiam ciúmes. 

     Recentemente, a turma percebeu que Chris andava mais inquieta, mais impaciente e mais efusiva.  Somente Alice, amiga confidente, estava a par de que ela vivia um amor proibido, um amor bandido.  E, mesmo sabendo que Chris sempre buscava o incerto, o duvidoso, o arriscado, foram muitos os seus conselhos: uma desilusão, um adeus repentino ou a descoberta da traição.   O que importava pra Chris era rechear a vida com fortes emoções.  E, nesse momento, ela delirava de deslumbramento.

     Tudo começou no estacionamento do shopping, quando dois pares de olhos verdes se encontraram e aprisionados ficaram.  Eduardo era casado, quarenta e dois anos.  Nada disso impediu a troca de telefones e o primeiro encontro num hotel luxuoso.  O casamento perfeito do frescor juvenil com a virilidade masculina.  Era o jogo de sedução ininterrupto, o fascínio pelo proibido, as horas contadinhas no relógio para não se perder tempo com coisinhas.  O que importava era desfrutar emoções e prazer.  Cada encontro num ambiente novo e romântico, a fuga do cotidiano, um presente, uma flor.  E para apimentar a relação, criatividade é o que não faltava.

     Chris, mulher destemida e aventureira, escolheu viver esse momento intensamente.  Uma decisão consciente, sem promessas... sem compromisso.   Apenas viver...


EU SOU UMA PALAVRA - Hirtis Lazarin



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EU  SOU  UMA  PALAVRA
Hirtis Lazarin


     Eu sou uma palavra da língua portuguesa e tudo começou quando minha curiosidade despertou e eu quis saber exatamente o que sou e o que significo.

     Aconselharam-me a perguntar ao Google, mas a dificuldade no manuseio das tecnologias ultramodernas fez-me buscar outros meios.  E, num sótão empoeirado e invadido por traças famintas, encontrei um velho dicionário entre pilhas e pilhas de livros abandonados.  Abri-o com muito cuidado para não se desfazer em minhas mãos.  As folhas fininhas e amareladas mostravam o quanto fora usado.  Havia nele anotações, observações e muitas palavras coloridas com marca texto.  Emocionei-me e um nó formou-se na minha garganta quando li a dedicatória na contracapa:  "Eduardo, meu filho, na juventude, ganhei este dicionário do meu pai (naquela época poucos podiam ter um).  Você nem pode imaginar quanto me foi útil.  Espero que seja para você também.  Artur (02/03/1950)".

     Seguindo a ordem alfabética, encontrei-me.  Eu sou a palavra "FURACÃO".  Eu sou ciclone, tufão, tempestade, ventania devastadora.  Devastada ficou a minha alma.  Rancor e ódio vieram depois.  Tantas palavras lindas encontrei nas páginas e me presentearam com "FURAÇÃO".  Olha só as que rimam comigo: explosão, destruição, devastação.  Eu provoco medo, terror, pânico e morte.  Destruo tudo que vem a minha frente: campos e campinas, cidades e cidadãos, animais e plantação.  Eu sou odiada e creio que as pessoas nem ousam pronunciar meu nome.

     Encontrei no dicionário tantas outras palavras que eu gostaria de ser, mas o que me apaixonou mesmo foi a palavra "FELICIDADE".  Felicidade rima com serenidade, tranquilidade, bondade.  Lembra realização, paz, amor.          Frequentemente, as pessoas perdem-se por caminhos tortuosos em busca da felicidade, mas na verdade ela está sempre pertinho ou dentro de cada uma delas.  É só entender que felicidade não é ter o que se quer.  É querer o que se tem.  Uma simples bola faz um menino sentir-se o mais feliz do mundo.  Uma rosa faz da mulher romântica, a mais amada.  A volta do beija-flor e borboletas faz o jardineiro sonhar.

     "FELICIDADE" é poesia, é purpurinar o mundo de cor-de-rosa.  É vida.

     "FURACÃO" é tormenta, é guerra.  É morte.


quinta-feira, 28 de março de 2019

Era desnecessário sofrer tanto - Hirtis Lazarin




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Era  desnecessário sofrer  tanto
Hirtis Lazarin


   
          Charles era filho único de pais mais idosos.  Amor e carinho nunca lhe faltaram, mas sempre acompanhados de normas bem rígidas.  Estudar muito, não perder tempo e encarar a vida com responsabilidade.  O resultado chegou na forma de um rapaz competente, seguro e aberto a novas ideias.  Um líder nato.  Por mérito tornou-se o responsável por um escritório contábil e mais quatro jovens promissores.  Duas lentes grossas escondiam olhos pequenos e observadores.  Capazes de controlar cada movimento de seus subordinados.  Embora cobrasse deles eficiência, atenção e raciocínio rápido, era paciente e não se importava em gastar o tempo que fosse necessário para treiná-los até que se sentissem seguros.  Charles tinha coração de ouro: repartia conhecimentos, distribuía entusiasmo e doava boa vontade.  

     Entretanto, algumas manias o incomodavam e aos outros também.  Maníaco por arrumação e limpeza.  Não tolerava nada que estivesse fora do lugar por ele definido.  As gavetas sempre fechadas porque abertas denunciavam nossas defeitos, documentos e pastas bem organizados ao lado do computador.  Celular, nem pensar.  Uma caixa na entrada recolhia-os desligados. 

      A organização de sua mesa era o exagero do primor, meio afeminada para um homem de um metro e oitenta, de jeito educado e fino, mas viril.  Ao centro da mesa o computador imóvel como se colado fosse com super bonder, à esquerda um porta-retratos dos pais, à direita um vaso solitário de cristal que oferecia todos os dias uma rosa branca à Nossa Senhora.  Sobre outra mesinha colada à sua, uma bandeja de prata ornamentada com toalhinha de renda da Ilha da Madeira, presente da avó, um copo, uma xícara e um pires de porcelana.

     No escritório não se podia pronunciar a palavra ”problema” porque junto dela vinha uma série de tropeços e muito azar.  Se Charles estivesse em pé, parado no mesmo lugar, olhar perdido, mexendo nervoso nos botões da camisa, a ponto de arrancá-los, era sinal vermelho.  Era fácil saber que algo o incomodava, difícil era descobrir onde estava o erro.

     Era sexta-feira, primeira reunião do ano no escritório central.  Charles chegou mais tarde ao trabalho trazendo novidades e distribuindo bom humor.  Seria um príncipe, não fossem as marcas profundas no rosto deixadas por um batalhão de espinhas que o atormentaram tanto na adolescência.  Um sofrimento reprimido que lhe presenteou com complexo de inferioridade somado à introspecção.  Ele vestia um terno marinho bem talhado, camisa azul bem clarinho e gravata vermelha.  Um executivo.  Luciana, a menina debochada, não se conteve e gritou: "os sapatos!"  Os olhares num coro mudo convergiram para os pés do chefe.  Uma confraternização de gargalhadas.  Era a primeira vez que Charles colocava a cabeça fora da concha.  Nos minutos próximos, escondeu-a novamente, todo desajeitado.

     Os funcionários chegaram às oito e trinta, como todos os dias.  A porta não estava trancada e a sala silenciosa na escuridão.  Estava estranho.  Charles chegava sempre mais cedo, abria a porta, acendia as luzes, abria a cortina e o dia de trabalho começava.  Chamaram a polícia e dois deles entraram armados.  A sala estava um deserto revirado de ponta cabeça.  As cadeiras no chão, as pastas e documentos espalhados, a cortina rasgada.  O estrago maior estava na mesa de Charles.  O porta-retratos espatifado no chão, o vaso em cacos sobre a mesa, a água escorria vagarosa danificando documentos e a rosa branca desfolhada, não teve tempo de pedir socorro e morreu em paz.

     No banheiro, encontraram Charles sentado no chão, sem camisa, pernas flexionadas e rosto enterrado entre os joelhos.  Chorava e soluçava baixinho.  Muito lentamente levantou a cabeça, rosto branco esverdeado, tremia tanto que demorou um século para soletrar a primeira palavra: ba - ra - tas.  Baratas causavam-lhe pânico.  Era medo, dor, muito sofrimento.  Tinha coragem para enfrentar um animal selvagem, mas baratas ”NÃO”, “NUNCA".

     Charles nunca mais voltou ao trabalho.


REGINALDO O CAMPEÃO - Henrique Schnaider




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REGINALDO O CAMPEÃO
Henrique Schnaider


Reginaldo era um cara dez, admirado por todos, alto imponente, musculoso, troncos bem-feitos, a mulherada suspirava quando ele passava, olhos verdes, como esmeraldas, chamava atenção de todos, gostava de ser o tal, adorava elogios, queria sempre ser o rei da festa, não deixava por menos.

Era praticante de corrida de barcos de vela ligeira, super. Campeão, já trouxera, medalhas de prata, bronze, participando das olimpíadas, mas nunca conseguiu uma medalha de ouro, sua grande frustração, apesar disso, não desistia nunca. As olimpíadas estavam próximas, aconteceriam no Japão, faltavam trinta dias para o início dos jogos.

O rapaz treinava diariamente na lagoa Rodrigo de Freitas, no meio daquela tremenda poluição, podridão para todos os lados, mas não esmorecia, firme na busca daquele ouro tão sonhado, tão dourado que ofuscava os olhos.

A mãe e a noiva Raissa incentivavam o rapaz o tempo todo, acompanhando os treinos, não deixando que ele desanimasse, preparavam coquetéis de vitaminas para deixá-lo bombado. Reginaldo se expunha, todo pimpão, as pessoas o olhavam com inveja.

Certa manhã, bem cedo, lá foram os três para a lagoa, os jogos estavam próximo, eram os últimos treinos, Reginaldo pegou seu veleiro azul ararinha, e sai para treinar com incentivo da mãe e da noiva, eis que do nada surge uma lancha numa velocidade de formula um e acerta em cheio o veleiro do rapaz.

Foi um Deus nos acuda, explosão enorme, o fogo toma conta dos dois barcos, Lívia e Raissa, entram em desespero clamando por socorro, que não tardou a chegar, com equipamentos para combate a incêndio, lutaram para acalmar as chamas que consumiam tudo, conseguiram tirar Reginaldo todo machucado e queimado, mas vivo. O rapaz da outra lancha faleceu no local.

O pobre coitado foi levado as pressas para o Hospital Sousa Aguiar, foi direto para o centro cirúrgico tratar das queimaduras e das pernas quebradas. A cirurgia durou sete horas, pobre do rapaz teve as duas pernas amputadas, ficou uma semana entre vida e a morte, enfrentando o perigo de infecção generalizada devido as fortes queimaduras, mas sobreviveu. O sonho da medalha de ouro foi-se água abaixo, nem importava mais, a luta agora era que ele sobrevivesse.

Os dias passam, as olimpíadas começam e Reginaldo assiste aos jogos pela televisão, frustrado, mas feliz pois estava vencendo a dura batalha para sobreviver, com apoio da mãe e da noiva, estava melhorando dia a dia.

A vida sofrida no hospital, durou três meses, mas o rapaz venceu a dura luta, foi para casa, recebendo todo carinho e amor e calor humano, das duas pessoas mais importantes de sua vida, Lívia e Raissa.

Um ano se passou, Reginaldo se recuperou, se adaptou as duas próteses das pernas, voltou a ter gosto de viver apesar de tudo, não desanimou, muito pelo contrário já está pensando em participar da próxima Paraolimpíada, certamente com todo apoio e incentivo de sua mãe e da amada Raissa. 

O VELEIRO - Hirtis Lazarin



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O  VELEIRO
Hirtis Lazarin


     O ancoradouro escondia-se na neblina do amanhecer, quando o veleiro baixou as velas e zarpou às quatro horas da manhã.  Sua primeira viagem; uma semana com roteiro bem planejado.

     Éramos três rapazes eufóricos e cheios de planos, carregando na bagagem conhecimentos sobre a magia, os segredos do mar e expectativas fantasiadas de corais, peixinhos listrados e criaturas abissais.

     Fazia dois dias que estávamos em alto mar.  A brisa noturna que embalava as velas alvíssimas, o cheiro adocicado da água salgada, o movimento ritmado das ondas acalentando o veleiro...  Era a perfeição!  A lua clareava o convés e as estrelas eram tantas que, na disputa por espaço, poderiam até despencar lá de cima.

     Nós três bebericávamos jogando conversa fora até o sono chegar.  Eu, na verdade, não pretendia dormir tão cedo.  Aquele momento da mais absoluta serenidade aquietava minha alma, refinava meus sentimentos e purificava meu jeito de ver a vida.  Do meu jeito fiz uma oração de agradecimento. 

     Sem que déssemos conta, o veleiro embrulhou-se num denso nevoeiro.  Não se enxergava um passo à frente.  Apenas nossos gritos de alerta.  Uma ventania furiosa virava e revirava tudo.  Objetos soltos voavam sem direção e misturavam-se num emaranhado de destroços.  Tudo ia sendo engolido por ondas gigantes.  Era uma montanha de espuma.  Nós, agarrados aos mastros, éramos desafiados e nada podíamos fazer.  Uma batalha injusta e desigual.
  
     Eu odeio ventania. Senti enjoo, náuseas e vomitei de pavor.  

     Nuvens negras e emboladas desmancharam-se em granizo; verdadeiras bolas de pingue-pongue que esburacavam as velas como se de papel fossem.

     Não sei quanto tempo passou.  Acordei zonzo com o rosto sangrando; preso a um pedaço de madeira, eu boiava em alto mar.

      Zeca, Leo onde estão vocês?  Não me abandonem... Minha vida só tem sentido junto de vocês... Leo me respondeu.  Estava preso a uma boia.  De onde apareceu essa boia? Oi Zeca, você tá me ouvindo?  Por mais que eu gritasse, Zeca não deu sinal de vida.  Ele e o veleiro jazem na profundeza das águas.  Eu choro sem parar, grito mil palavrões, desabafo até me sentir exausto e sem forças.  Isso não podia acontecer...Você não merecia isso.  Sempre foi o mais entusiasmado, o mais dedicado e o mais apaixonado pelo mundo marítimo.

     Neste momento, nada me resta senão consolar-me com versos em que o poeta dizia: "Navegar é preciso.
                                                                                                                                                         Viver não é preciso." 
     Olho pro céu e as estrelas todas estavam lá.  E a lua também.  Testemunhas caladas.

quarta-feira, 13 de março de 2019

MISTÉRIO - Hirtis Lazarin



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MISTÉRIO
Hirtis Lazarin


     Jerônimo é o nome do delegado de Matinhos, cidadezinha sergipana.

     Dois metros de altura e músculos avantajados, impõem respeito.  Os traços faciais mal delineados e grosseiros é confundido com a braveza de um touro nervoso aprisionado.

     A cidade conta com poucos habitantes e muita tranquilidade.  Exige pouca ação dos representantes da lei.

     É a briga no boteco, garrafas quebradas e gente ferida.  É o marido que chega bêbado, chuta tudo que vê pela frente: móveis, mulher e até filhos.  É a cachorrinha fujona que foi parar numa cratera aberta pelas águas de março.  É o galo poderoso que faz um escândalo na intimidade da noite, acorda vizinhos e o dono das galinhas avisando-o que larápios invadiram o galinheiro.

     No momento, Jerônimo está com um caso complicado pra investigar: é o Seu Jonatas, pai de dois meninos, que saiu pra trabalhar e há oito dias não volta pra casa.

     O delegado, sentado displicentemente em sua poltrona pesada e macia, pernas esticadas sobre a mesa, botas de couro com brilho de espelho, perdido em pensamento, arquiteta um roteiro de investigação.

     Era o meio da tarde.  Ele sente um cheiro ruim, mal-estar e náuseas.  Um frio gelado arrepiou todos os pelos que tinha no corpo.  Levantou os olhos e ficou assustado.  À sua frente estava um homem estranho.  Entrou sem ruído.  O rosto pálido, num amarelo-esverdeado, os olhos tristes e chorosos causavam dó.  Entregou-lhe um envelope cinza-chumbo bem amassado.  Saiu calado, apressado. 

      Jerônimo tem nome comprido, mas curto é o seu pavio.  Deu um pulo e com poucas passadas chegou à porta da delegacia.  O homem já havia desaparecido.  Lá fora, nem sinal...  A recepcionista, que controla entrada e saída das pessoas, jurou que esse homem não passou por ali.

     Lá fora de tão azul o céu ardia os olhos e o sol espirrava tantas cores e tanto calor que até derretia o piche do asfalto.

     Cabreiro o delegado voltou à sua sala, juntou o envelope, sem remetente nem destinatário, a outros papéis empilhados na mesa.  Tinha trabalho urgente a sua frente.

     Inesperadamente uma rajada de vento forte escancarou a janela maior da sua sala, sacudiu as cortinas e caminhou em direção à mesa.  Remexeu os papéis todos e apenas um deles voou.  Voou e parou no colo de Jerônimo que acompanhava tudo sem reação.  A ventania cumpriu sua missão e saiu por onde entrou.  "Como, se lá fora o céu continuava sem uma nuvem sequer?

     O homem apavorado e supersticioso tirou o terço da gaveta e se pôs a orar.  Fechou a porta da sala.  Não queria que ninguém o visse naquela situação.  Depois que recitou todas as orações que aprendeu no catecismo e ainda sabia de cor, sentiu-se aliviado e com coragem pra abrir o envelope.  Um bilhete:

Praia Pirambu
Casa amarela
Quadro na parede/ revólver
"SOCORRO!"

     Leu e releu as anotações, nem sei quantas vezes.  Decifrar não conseguiu, mas naquela mesma tarde, acompanhado de outros policiais, partiram pra Pirambu, a oitenta quilômetros de Matinhos.

     Já era noitinha quando chegaram.  Andando de lá pra cá, encontraram duas casas amarelas: uma iluminada e habitada.  A outra, abandonada.  Pintura desgastada, paredes com rachaduras de onde brotavam ervas daninhas.  Um empurrão mais forte abriu a porta.  A dobradiça enferrujada gemeu.  Lanternas nas mãos clarearam o interior da casa.  Muitas tralhas espalhadas pelo chão.  Na parede lateral o quadro.  Uma pintura surreal, assustadora, figuras enigmáticas e indecifráveis, domínio do absurdo, da imaginação fantasmagórica.  Era de arrepiar.

     Num puxão o quadro despencou desmontado.  No verso, outro envelope e outro bilhete.

Rua 7, número 177
Aracaju
Comunidade das Pedras

     Faltava o revólver.  Vasculharam cada canto e encontraram-no dentro de um saco de pão.

     Uma brincadeira de gato e rato?  Não importava.  Obstinado Jerônimo desvendaria aquele mistério.

     Na manhã seguinte, bem cedinho, deslocaram-se pra Aracaju.  Achar a comunidade foi fácil, difícil foi achar a rua 7.  Eram vielas e mais vielas, compridas e sinuosas.  Um labirinto.  Um rapaz sentado na soleira da porta, fumando maconha, orientou a equipe.  Era um barraco, quase não parava em pé.  A porta apenas encostada.  Tudo vazio, apenas um gato magricelo abriu os olhos com o barulho e voltou a dormir.  Num pedacinho de terra, uma imitação de quintal, uma bananeira morria às mínguas e um cheiro insuportável vinha de um poço fechado com tábuas pregadas.  Uma nuvem de moscas rodeava-o.

     Ali dentro apodrecia o corpo de um homem.  Junto dele uma caixa.  Dentro da caixa a foto embaçada de um casal e outro bilhete
                                                           

Jonatas

Meu amor era grande demais
Minha sede de vingança maior
Você mentiu, você me iludiu
Envenenou-me de amor
Como outro, jamais
Uma arma, um tiro, uma dor
Um choro sufocado, consolador.

Soninha


     Jonatas era o homem desaparecido há oito dias.  Morto pela amante Soninha.  A prisão da assassina foi questão de dias.

     Jerônimo, na paz do dever cumprido, estica as pernas sobre a mesa, acende um cigarro e pega o jornal semanal.  Primeira página, manchete:  "A morte de Jonatas e a prisão da amante"

     O delegado olha bem a foto do morto.  Não pode ser... Esfrega os olhos.  Põe e tira os óculos.  Troca de óculos.  Não havia dúvidas.   Jonatas era o homem que lhe entregou o envelope cinza-chumbo.  O envelope com as dicas pra que não só o seu corpo fosse encontrado, como também denunciar a assassina.

     Hoje Jerônimo tem dois grandes medos: ratos e fantasmas.  Tem certeza que existem.


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

VIDA PERDIDA - Hirtis Lazarin





VIDA  PERDIDA
Hirtis Lazarin


     Conheci o Gino de ontem e conheço o Gino de agora.

     Há muito tempo, Gino abandonou a família, o trabalho estável bem remunerado e partiu sem rumo por este mundo de Deus.

     O que levaria um homem a fazer isso?   Um desgosto profundo?  Uma traição?  Um surto?  Loucura?  Todos esses pensamentos gritam quando se vê a vida do lado de cá.

     Aquela noite chuvosa estava muito... muito ...fria. Até o criquilar dos grilos saía congelado.

     A casa estava vazia.  Há horas, Gino angustiado caminhava incessantemente de um cômodo a outro seguindo o tic tac compassado do relógio.

     Ouvia-se lá de fora, o plim plim plim  ritmado dos pingos grossos da chuva batendo numa bacia de alumínio, como se uma música fosse começar. Até isso irritava-o, mas nada fazia pra interromper essa agonia.  Ao contrário, o seu ódio, o seu descontrole só fazia crescer.

     E foi assim, sem condições de pensar nas consequências, alucinado, desapareceu de casa sem levar nada.  Apenas um bilhete trêmulo e rasurado:  "Estou indo embora.  Não me procurem."

     Andou...andou...quilômetros por estrada desconhecida.  O cansaço parou-o num matagal espesso.   Desmaiou e só acordou quando, no dia seguinte, o sol forte que se esgueirava entre os galhos, por uma frestinha, encontrou seu rosto.  Cheio de dores e com muitos arranhões pelo braço, sabia o que teria que ser feito.  Era ali que queria ficar.

     Sem ferramentas e com pouca habilidade, abriu, ali mesmo, uma pequena clareira, espaço suficiente pra ele.  Aos poucos, recolhendo pedaços do que já foram portas, janelas e pés de mesa  armou sua barraca.  A chuva era impedida de entrar por sacos plásticos pretos e grossos.  Estava pronto o lugar onde passaria os últimos dos seus dias e, conscientemente, torcia pra que fossem poucos.  Não lhe importava mais saber  o dia, nem o mês, nem o ano.  Tinha o que precisava: "PAZ".

     As noites eram longas e silenciosas.  De vez em quando, acordava sobressaltado com o pio de uma coruja solitária e indefesa. O piar mais parecia o lamento de alguma alma perdida.   Durante o dia, o que realmente lhe incomodava, era o zum zum zum monótono e incessante de borrachudos loucos pra se alimentar do sangue da vítima.  Às vezes, varejeiras perigosas se fantasiavam  de verde azulado e se misturavam a esses mosquitinhos.

      Gino cobria-se com trapos que encontrava em suas andanças.  Muitos desses trapos tinham certos detalhes próprios de roupas que, um dia, fizeram parte de um guarda-roupa luxuoso.

       Hoje, os cabelos que já foram fartos e bem tratados, desapareceram.  Apenas alguns punhados de fios que teimam em resistir.  A barba crescida e desregrada esconde-lhe o rosto magro.  Visíveis apenas o nariz e os olhos claros lacrimejantes.

     Que sofrimento esconde essa criatura?  Quem tirou-lhe a esperança, o desejo, a mola propulsora da vida?  Quem ou o que o forçou à solidão?  Solidão que o tornou arisco, desconfiado e de pouquíssimas palavras.  Apenas dois gatos tinham o privilégio da sua companhia e de alguns gestos carinhosos. 

     Tudo tem uma explicação.  E eu fui em busca dela.  Desvendar esse segredo, o lado silencioso e obscuro dessa história.

     Gino era casado, tinha um menino e Vanda, a mais nova. Os traços da menina, delicados e bem torneados, chamavam a atenção.  E, ainda bem pequenina, já era requisitada pra comerciais de t.v.  Mas foi na adolescência que sua beleza explodiu.  E junto, explodiram a rebeldia e a vaidade exagerada.  Era a preocupação com os cabelos, com o corpo, com a pele.  Deixou os estudos pra trás e a vontade de ser advogada.   Os livros da escrivaninha deram lugar a cremes, shampoos, cosméticos e essa parafernália toda que promete a juventude eterna. 

     A família vivia um cotidiano fútil baseado em beleza, moda, tratamentos e dietas em busca da perfeição.  "Passarela", "modelo", "sucesso" "fama" e "dinheiro" eram as palavras mais pronunciadas naquela casa.

     O tempo corria veloz e a carreira de Vanda andava feito tartaruga.  Os esforços eram muitos, as oportunidades eram poucas.

    Enquanto o pai aconselhava, advertia, mostrava a efemeridade dessa carreira, a mãe não só apoiava como era a maior incentivadora das loucuras da filha. 

     Vanda já passara por vários procedimentos estéticos, mas não se satisfazia com o que o espelho lhe mostrava.  Insistia agora numa lipoaspiração abdominal.  As dezenas de" não" do pai geraram choro, gritos, brigas, muita confusão.   A casa enlouqueceu.

     Às escondidas do pai, Vanda chegou à mesa de cirurgia. e tudo correu conforme a previsão médica.  Ficou internada por dois dias apenas e a recuperação seria em casa.  Cinco dias depois, um mal-estar que seria passageiro levou-a à uma nova internação.  E, pra desespero da família, uma parada cardiorrespiratória tirou-lhe a vida.  E, hoje, um túmulo frio e cinzento acolhe os dezoito anos de uma jovem sonhadora, que sonhou o impossível.

     Gino não suportou, entregou-se à bebida, abandonou tudo e perdeu-se pela vida. 



Lisboa, 05 de dezembro de 1500 - Hirtis Lazarin





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Lisboa, 05 de dezembro de 1500
Hirtis Lazarin


                                                                 Pero (sem sobrenome)

    Homem maldito, despertaste em mim o inferno da ira.  A vontade de te destruir é tão forte que queima e explode dentro de mim.  Meu coração não pulsa mais no compasso;  ele corre desvairado atropelando meu equilíbrio e minha sensatez.  Faíscas de fogo brotam dos meus olhos e me deixam cego.  E tão ferventes são que, se lançadas em tua direção, derreter-te-iam em segundos.

     Eu, homem de pouca fé que sou, humilho-me, ajoelho-me e rogo a Deus que aquiete minha pessoa e permita a mim colocar neste papel o juízo que faço de ti.

     Quão insolente foste tu ao dirigir-te a este capitão-mor.   D. Manuel, nosso rei e soberano, lançou-me numa perigosa empreitada por águas bravias e pouco conhecidas.  Só confiou-me tal missão porque acreditava na minha bravura e destemor.  E, para glória do nosso povo, cheguei à Terra de Santa Cruz.  Mais uma conquista portuguesa.  A terra é tão fértil e pródiga que, por estas bandas de cá, já se ouve falar que "nela se plantando tudo dá".  As árvores do tronco vermelho são tantas, mas tantas... que não dá nem pra contar.  Até já posso vê-las, ora pois, transformadas em tantas novas embarcações, navegando por outros destinos.

     Quão insolente foste tu ao criticar o tratamento de meu feitio à tripulação que comandei.

     Quão insolente foste tu reclamando que trabalhava debaixo de tanto sol e que dos lombos escorria suor de raiva e rancor.  Esqueces-te por acaso de onde saíste?  Lembro-te: foi de um calabouço fétido, entalhado no mais alto da torre.  As paredes úmidas e emboloradas lá jazem inertes, arranhadas todas por unhas nervosas e desesperadas.  Paredes esburacadas que parem ratos e baratas.  Ratos que comem baratas e baratas que comem nada.  E famintas e enfraquecidas percorrem aqueles corpos quase nus, atraídas pelo cheiro forte e nauseante que exalam.   Ora pois, esqueceste também o terror que sentias dos gemidos sofridos, noite e dia, os gemidos dos que ali morreram de morte verdadeira ou de morte matada pela certeza do "nunca mais"?

     Quão insolente foste tu em não reconhecer o gesto piedoso do nosso soberano, libertando-os daquele inferno em troca do trabalho nas grandes expedições.

     Quão insolente foste tu em me maldizer com a certeza de que o nome deste servidor de Vossa Majestade jamais entraria para a história da Terra de Santa cruz.  Ah! Ignorante e petulante que tu és, informo-te que o nome de PEDRO ÁLVARES CABRAL já está agraciado, juramentado e lacrado nos compêndios da literatura de Portugal.  Morrerei em paz e com a certeza do dever cumprido.

     Informo-te que pela insolência da sua pessoa e pelo valor que represento ao meu povo, nosso Rei cobrar-te-á pagamento justo e merecido.  Perderás a liberdade e deixarás de desfrutar das maravilhas da Terra Nova.  Esqueça, ora pois, das índias formosas da pele de mel e dos cabelos negríssimos e de comprimento tal que se arrastam pelas costas e por toda frente, escondendo-lhes a parte da vergonha.  E que todos os homens machos rezam pra que uma ventania chegue sem aviso prévio e cumpra sua missão: varrendo folhas e jogando cabelos ao léu.

     O portador desta apresentar-se-á acompanhado de um homem de pele cascuda, grossa, mas de voz fina;  braços troncudos e firmes, mas de andar  cambaleante; de cabeça comprida e ideias curtas.  Leva algemas e uma missão: trazer-te de volta à masmorra, de onde nunca deverias ter saído, ora pois, pois.
     
        PEDRO ÁLVARES CABRAL  


Amizade curiosa - Ana Catarina Sant’Anna Maues



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Amizade curiosa
Ana Catarina Sant’Anna Maues
  

De: Paulo Vitor
Para: Pedro Álvares Cabral

     Olá Cabral! Desculpe a intimidade, mas te conheço há séculos. A aventura que protagonizastes fantasiou minha mente infantil e seguiu comigo. Eu vi as embarcações deixando o porto de Lisboa e tomarem rumo no mar; eu vi desaparecerem no horizonte as torres mais altas do Jerônimo; eu vi o nevoeiro de três dias, e logo após, o monte crescendo e crescendo conforme as naus aproximavam-se de terra firme. Eu senti o sal por todo o percurso; eu senti o aperto da saudade que chegava sem aviso; eu senti a vitória no grito Terra a vista! Eu ouvi os choros; eu ouvi os risos; eu ouvi as orações. Daí, Cabral, quero dizer que, por mais que não tenhas o prestígio que mereces como pioneiro na história daí, e não ocupes acentuado destaque na história daqui, tendo até quem trame retirar-te a conquista da terra, possuis minha total admiração e respeito, pois a aventura que vivemos determinou meu destino. Hoje sou comandante também, o turismo minha bandeira. Levo em média cinco mil passageiros e percorro em doze dias, o caminho que fizestes em quarenta e quatro. 
Sem mais despeço-me com apreço. Paulo Vitor.



De: Pedro Álvares Cabral
Para: Paulo Vitor

     Ora pois, pois, gajo. Não estou a lembrar-me de ti! Por certo recordar-me-ia. Eras, por acaso, um pirralho? Mas deixemos de lado tais coisas e vamos ao que interessa. Pois bem! Não sei do que estais a falare. Como pode ser cinco mil marujos? Isto é deveras gigantesco. Estupendo, pois não?  Mas dou-te vivas por abraçar carreira tão majestosa. Ao conversarmos sobre tempo tão longínquo, recordo-me de uma bela rapariga que tocou-me o coração. Era nativa da terra recém descoberta. De cabeleira negra, pele avermelhada e corpo nu, encantei-me com a visão logo de pronto. Mas tive que abandonar a bela cachopa quando retornei a Portugal. Cá chegando enfrentei repreensões de Dom Manuel, o Venturoso, devido a escassa quantidade de tesouro que trouxera da ilha de Vera Cruz. Furioso estava, pois destinou o envio de dez naus e três caravelas ao desconhecido, mantendo forte esperança por riquezas. Daí não agradei a Vossa Majestade, e fui punido. Em resumo foi isto que se sucedeu. Sem mais rogo abençoa de Deus na sua vida.

Pedro Álvares Cabral.                                                  

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