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segunda-feira, 13 de setembro de 2021

A CARTOMANTE - MACHADO DE ASSIS (1884)





 

 

Machado de Assis

A CARTOMANTE



HAMLET observa a Horácio que há mais causas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade.

- Errou! interrompeu Camilo, rindo.

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois.

- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

- Onde é a casa?

- Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

- Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

- O senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tomar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, - repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, - o que era ainda pior, - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

- Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...

- A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

- As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

- Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer causa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e continuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. s vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:

- Vá, vá, ragazzo inflamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.


Caramelos Havia -Uma Verdadeira Adoração - Helio Salema


 


Caramelos

Havia

Uma

Verdadeira

Adoração

 

Helio Salema

 

Saí da pizzaria, caminhava para tomar o metrô. Meu desejo era ir para casa, ouvir música e dormir. Mas surgiram na minha frente duas amigas. Foi um ótimo encontro.

Só não imaginava a mudança que iria ocorrer.

Ficamos contentes, pois há muito tempo não nos víamos. Lembramos que a última vez foi numa festa organizada por uma delas, a Sara. Que fez questão de ressaltar a minha participação naquele evento.

Realmente, colaborei com sugestões, ajudei nas compras e na arrumação, que ela insistia chamar de decoração. Rimos bastante, foi quando Luciana, aproveitando a brecha, disse que elas estavam indo para o aniversário de uma colega de trabalho, que morava no quarteirão seguinte. Com aquela postura de mandona, que possuía, ordenou:

— Vamos!

Usei todo o meu talento e argumentos.

— Claro que não! Não conheço a dita cuja. Não fui convidado. Não tenho vocação para penetra. Ainda mais, não tenho presente para a aniversariante. Acabei de saborear e me empanturrar de pizza. Trabalhei que nem um burro velho, transportando carga pesada.

Inclinei-me em direção a Sara para dar os beijinhos de despedida. Luciana me agarrou pelo braço e ordenou:

— Vamos! Não é hora de despedida.

Assim, com apoio da Sara, ambas me puxando pelos braços, fui sendo, literalmente, arrastado.

Na entrada do prédio, o porteiro que conversava com outras senhoras, arregalou os olhos. Perguntou se precisava de ajuda. Imaginei que a minha cara era de alguém passando mal. Elas que, certamente, eram frequentadoras do prédio, ele as conhecia de longa data. Se apressaram em dizer que não tinha necessidade.

Por um instante pensei em fingir que estava passando mal e assim escapar. Certamente, não daria certo. Perderia de 2 x 1.

Aceitei a derrota. Fomos para outro jogo. Num campo que não conhecia e em desvantagem numérica.

Ao chegarmos fomos recebidos com muita alegria pela aniversariante, Marisa. Também pela meia dúzia de mulheres que ali estavam.

Antecipei para me desculpar e explicar por não ter levado presente. A aniversariante, muito simpática, disse que a nossa presença era o melhor presente. Que eu era muito importante para que não parecesse o Clube das Luluzinhas.

Luciana explicou que Marisa tinha prazer em receber pessoas. Ela é que nos presenteava com seus maravilhosos doces. Fizeram questão de me levar até o recanto das formigas. Meus olhos fitavam e minha boca transbordava de saliva “Meus preferidos caramelos havia, percebi assim que os vi sobre a mesa. Uma verdadeira adoração. ”

À medida que os saboreava fazia sinceros elogios. Pela expressão da aniversariante fiquei tranquilo. Vi que ela demonstrava satisfação pelo meu presente.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

MÃE DINAH - Henrique Schnaider

 



MÃE DINAH

Henrique Schnaider

 

Lucia, nome de guerra Mãe Dinah, era especialista na arte das cartas enigmáticas usadas para encher os olhos dos incautos, o Tarô. No qual Lucia era useira e vezeira ao enganar as pessoas, jogando um futuro maravilhoso no coração dos iludidos.

Sua fama foi longe, alcançando até os crédulos no exterior. Ela lia cartas e enganava também ao decifrar as linhas das mãos dos trouxas. Usava uma técnica de ser uma parede que rebate a bola. E assim levava os otários, sem perceber a soltar aquilo que eles queriam ouvir.

Ela começou na arte de ludibriar bem cedo quem a procurasse, aprendendo com a avó cigana, uma vigarista profissional que limpava os bolsos dos desesperados para pôr um pingo de esperança em suas vidas, que naquele momento, estavam procurando um alento de um futuro melhor. Desta maneira as pessoas deixavam os tubos na consulta. Muitas vezes um dinheiro que nem sequer possuíam.

Lucia em pouco tempo aprendeu tudo da arte da malandragem e se tornou uma raposa dentro do galinheiro. Logo colocou sua avó no bolso ao ponto de a velha senhora resolver se aposentar e deixar o negócio lucrativo nas mãos da neta.

Assim Lucia saiu da miséria aos 25 anos e se tornou uma profissional PHD no uso do tarô, uma narrativa por acaso. Já era procurada por pessoas tanto pobres como ricas e para cada uma tinha o preço certo. Fama feita ao ponto de ser muito respeitada por todos que ouviam suas balelas.

Esta centelha da sorte que pousou nos ombros de Lucia, foi muito bem aproveitada no personagem assumido de Mãe Dinah. Especializou-se nas artes divinatórias como o jogo de búzios. Dizia aos que acreditavam nela, que recebia o espírito da mãe Dinah. Ela vinha do além incorporada na Lucia para fazer as consultas.

Nem uma vírgula do que falava, cobrando uma grana preta, era verdade. Ela tinha a qualidade de se fazer acreditar. Era um ser iluminado que estava ali, naquela sala mal iluminada apenas para criar um clima. Praticando o bem e Mãe Dinah só cobrava a consulta, para a Lucia que recebia seu espírito e precisava sobreviver.

Desta maneira todos que procuravam Lucia, achavam que estavam diante de duas pessoas, a Lucia e o espírito recebido de Mãe Dinah.

A vida ia rolando solta e a sacripanta enchendo as burras de dinheiro. Até que um dia ela conheceu o malandro dos malandros. O safado do José que a encheu de amor e carinho. A pobre da Lucia se entregou de corpo e alma ao Don Juan de araque, cheia de paixão

José ganhou tanto a confiança da Lucia, que ela lhe deu os cartões de banco com senha e tudo. Um dia o José se escafedeu, sumiu no mundo, sem lhe dar a mínima satisfação. E a Lucia que embrulhava a todos, caiu na real, se deu conta de que o malandro levou tudo o que ela tinha.

Pobre, Mãe Dinah, que previa um futuro brilhante a todos que a procuravam, não foi capaz de prever o seu próprio futuro, levou um tombo muito grande e agora seu futuro incerto iria demorar muito tempo para se recuperar e voltar à vida cheia de dinheiro e de tudo do bom e do melhor.

 

 

Clark, o capitão - Alberto Landi

 


Clark, o capitão

Alberto Landi

 

A história se passa entre Peniche, uma pequena cidade portuguesa, e as ilhas Berlengas, tendo como protagonista o capitão Clark.

Ele era um homem de meia idade, destemido, forte, valente, audacioso, corajoso, persistente, habilidoso, conhecedor dos oceanos, formado na Escola Náutica Infante D. Henrique, na cidade de Faro.   Tinha uma experiência extensa no mar, enfrentando todas as condições meteorológicas que o oceano poderia apresentar. Tinha conhecimento dos procedimentos de segurança, telecomunicações e sistemas de buscas e salvamento marítimo, pois, estava habituado a navegar com grandes embarcações.

Nos seus períodos de folga, visitava com frequência Peniche, e lá se encontrava com Josué, um amigo e líder nativo das ilhas Berlengas, que lhe fez uma proposta:

— Olá amigo! Você gostaria de conduzir uma pequena embarcação, o Bretagne, das ilhas até o continente, levando 4 turistas, uma carga de peixes para os restaurantes locais, e 2 marinheiros para te ajudar?

O capitão prontamente aceitou e começou a vistoriar as caixas de força, a água potável e o tanque de dejetos.

Ele, considerado um mestre dos mares, foi consultar o clima, temperatura, tábua de maré, ondulação e velocidade do vento. Monitorou os motores, posição do leme e demais aparelhos, cabos e equipamentos de amarração também.

As 4 turistas sentadas à volta da embarcação, apreciavam embevecidas a belíssima paisagem que se descortinava, tirando muitas fotos.

O dia estava limpo, e o mar calmo quando deu início ao pequeno cruzeiro do Capitão Clark.

Já havia duas hora de navegação sem ocorrências. Eram aproximadamente 16 horas, quando, de repente, desabou uma descontrolada, muito forte tempestade. No início uma leve apreensão, mas ela se intensificou.

O mar se encheu de ondas, e a chuva começou a encharcar o barco, pois só havia uma cobertura de plástico.

No comando, dois marinheiros desesperados controlando o barco pelo motor de popa.

A chuva aumentava cada vez mais, ondas gigantescas e aterrorizadoras derrubavam as pessoas, arrastando-as para lá e para cá, assim com seus pertences.

Clark gesticulava em meio a tormenta:

— Por favor, todos para o meio do barco!

Com os olhos pregados no horizonte, tentando enxergar a pequena cidade à sua frente, corria de um lado a outro atento aos acontecimentos, sem perder a postura, pois tinha que transmitir  calma e tranquilidade à tripulação e aos passageiros.

Não se via nada além do mar e das nuvens ao seu redor.

Dizia para si em voz baixa:

— Logo a mim, logo a mim isso tinha que acontecer!

Mas foi pensando que Capitão habilidoso não se faz em mar sereno, não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade. Bons marinheiros nunca foram feitos em mar calmo!

Cuidado sempre, mas medo jamais. O medo muda o corpo como um escultor desastrado altera uma pedra perfeita. Nunca ouça o medo. O medo paralisa as pessoas! 

Não se sabe quanto tempo se passou, mas com certeza, devido às circunstâncias, foi uma eternidade então, assim, como começou, a tempestade, ela se foi formando um arco íris no horizonte e tudo se tornou visível.

Chegando ao continente e ao pisar em terra firme, todos agradeceram a Deus e a habilidade, a calma e coragem do capitão, em conduzir a situação, por estarem são e salvos.

Até a carga de peixes foi salva!   

A Vidente - Helio Salema

 

A Vidente

Helio Salema

 

Dona Ceulimar,  cartomante  famosa por seus atendimentos quase diários, muito mais de pessoas de outras cidades e estados, do que de moradores da sua cidade. Nos seus sessenta e alguns anos, se dizia viúva de um coronel.  Morava só, no pequeno bairro, Encontro das Ilusões. Numa modesta, mas confortável casa, cercada de algumas mansões. Tendo durante o dia a companhia da dona Clara, responsável pelos cuidados com a casa, compras e produzir as refeições. Enquanto a patroa ficava na sala de atendimentos quase o dia todo.  Nunca respondia às perguntas indiscretas sobre sua patroa, feitas pelas fofoqueiras de carteirinha.

Algumas pessoas diziam que embora tivesse uma vida modesta, a vidente, como era conhecida, possuía conta bancária entre as mais altas da cidade. Certamente engordadas pelos visitantes que chegavam em carros luxuosos.

Minha vizinha dizia que as cartas, às vezes, revelavam coisas que a própria cliente não gostaria que fossem ditas. Também que era muito difícil conseguir marcar uma consulta, pois a agenda sempre estava completa por vários meses. Tinha conhecimento de pessoas que conseguiram resolver problemas dificílimos com ajuda de Dona Ceulimar. Ela mesma costumava citar alguns acontecimentos ocorridos em sua família.

A clientela era bem diversificada, pessoas idosas, aposentados e profissionais de várias áreas. Também jovens inseguros, quanto a carreira profissional ou problemas sentimentais, eram assíduas frequentadoras daquela casa.

 ...

Numa manhã de inverno rigoroso, quando Dona Clara chegava para abrir o portão da casa, surpreendeu-se com um rapaz assustado, que saía apressado, tentando esconder o rosto.

Não teve dúvidas, era Ricardo, conhecido filho de família simples, que não estudava, nem trabalhava. Mas era bastante famoso pela sua vida de conquistador. Nunca tinha namorado moças da sua geração, preferindo mulheres mais velhas e separadas, geralmente de patrimônio cobiçado. Vestia-se muito bem, frequentava lugares caros, onde era bem recebido pela sua simpatia no trato com todos.

A empregada entrou e logo percebeu algo diferente. O jornal na varanda, a patroa não havia levantado, pois sempre quando chegava, ela já estava toda arrumada tomando seu café, que ela mesma fazia questão de preparar.

Depois de quase uma hora apareceu, cumprimentou a empregada de maneira seca, como se fosse uma estranha. Pegou o jornal e voltou para o quarto.

Recebeu seus clientes na sala de trabalhos como de costume, fez as refeições normalmente.

Mas com semblante preocupado durante todo o dia. Conversou com a empregada apenas o estritamente necessário.

Na hora de ir embora, dona Clara saiu sem despedir da patroa, pois ainda havia clientes aguardando para serem atendidos. O que acontecia frequentemente. Desta vez com uma preocupação. Como será o dia seguinte? E os demais?

Nada de novo. Tudo demonstrava que o dia anterior foi apagado do calendário e também da memória. Experiência de muitos anos e sabendo muito bem, que “Nada melhor do que um dia depois do outro”.  

Assim, os dias transcorrem sem novidades, na casa de refúgio dos necessitados. Exceto na cabeça de dona Clara, que não se conteve e trocou informações com a filha adolescente, Carolina. A menina e as amigas conheciam Ricardo muito bem. Embora não tendo os conhecimentos de Dona Ceulimar, ambas faziam previsões e viam nuvens negras sobre a casa da vidente.

Porém a tempestade caiu no principal clube da cidade, onde Ricardo conversava, animadamente, com uma senhora recém-chegada. Quando Luciana chegou e logo que viu, percebeu onde seu namorado pretendia chegar. Aproximou, deu lhe um longo beijo na boca e olhando para a senhora, ironicamente disse:

— Seja bem-vinda, minha senhora.

A elegante e educada senhora levantou-se e saiu, silenciosamente.

Ricardo e Luciana iniciaram uma grande discussão que chamou a atenção dos presentes. Acusações de todos os tipos, principalmente, de traições.

— Você é mulherengo e safado. Traidor sem escrúpulos.

— Então por que você não fala da sua traição? No mês passado quando foi fazer o curso no hotel fazenda! Com um cara que você conheceu no mesmo dia, só depois descobriu que era casado?

— Mentiroso?

— É verdade. Mesmo assim foi procurá-lo.

Ela, chorando e desesperada, saí às pressas. Ricardo continuou esbravejando em voz alta, com palavras impróprias para o local. Imediatamente, percebendo o vexame que causara, e que certamente, não encontraria ninguém que apoiasse sua desastrosa conduta, sai também sem olhar para os lados.  

Luciana vai, diretamente à casa da vidente. Aos gritos e sem se importar com as pessoas presentes.  Ceulimar aparece assustada e fica ainda mais, quando é chamada de charlatona. Luciana aos berros:

— Você contou para o Ricardo, o que eu lhe disse na consulta. Bem que me disseram que vocês são amantes. Que você conta para ele o que as pessoas dizem para você.

Dona Ceulimar começa a passar mal, é socorrida e em seguida levada para o hospital.

A casa fica vazia, de gente, de fé e de esperança. Dona Clara depois de se acalmar resolve fechar a casa, sentar no sofá da sala e aguardar por notícias. Lembrando do dia em que viu Ricardo saindo apressado e de tudo que sua filha lhe contou sobre ele.

Horas depois estacionou um carro em frente. Abre a porta e vê Dona Ceulimar e Ricardo entrando pelo portão. Ao entrar na casa a patroa diz:

— Estou bem. Já é tarde, pode ir, muito obrigado por ter ficado aqui até esta hora.

A empregada pega suas coisas, se despede dos dois, e sai preocupada e pensativa.

No dia seguinte ao entrar se espanta com o que vê. Tudo revirado. Casa vazia. Sobre a mesa uma carta.

“Bom dia minha amiga. Estou me mudando. Como você, há muitos anos, vem cuidando de mim e da minha casa, deixo para você, merecidamente, tudo que aqui está. O aluguel está pago até o fim do mês. Você tem todo esse tempo para esvaziar a casa. Tenha um bom proveito. Que Deus te proteja. Abraços “

Com as pernas bambas se deixa cair no sofá. Lê e relê várias vezes para ter certeza de que tudo aquilo era verdade. Percebeu que tinha cerca de vinte dias para resolver o problema. Verificou a casa toda para ver se estava tudo em ordem. Trancou e foi para casa dar a novidade para a filha.

Com ajuda de parentes e amigos conseguiu levar o que lhe interessava. O restante foi vendido por bom um dinheiro.

Vários anos se passaram até que um dia sua filha foi passar o fim-de-semana numa pequena cidade do interior, para conhecer a família do noivo. Depois de algumas horas na casa, Carolina aceitando o convite da futura cunhada, saiu para conhecer a pequena, bonita e pacata cidade. A praça muito bem cuidada, jardins floridos e muito limpa, logo a surpreendeu. Porém algo lhe prendeu toda a atenção. Sentado num dos bancos um homem, pacientemente, dava a uma senhora numa cadeira de rodas, algo para ela comer. Cada colherada, parecia que ela engolia com dificuldades.

Carolina disse que estava admirada de ver aquele filho cuidando tão bem da mãe. Subitamente, outra surpresa. Ouviu a outra explicar que não era filho. Eles chegaram há pouco tempo. Logo ficamos sabendo que ela não era mãe do Ricardo.

Carolina se assustou. Ao se aproximar, disfarçadamente, reconheceu e não teve dúvidas.

Ali estavam em plena harmonia, pessoas que um dia se prejudicaram.

INEVITÁVEL - Hirtis Lazarin

 





INEVITÁVEL

Hirtis Lazarin

 

A luz na sala grande e bem mobiliada era pouca.   Apenas alguns raios de sol forte se infiltraram num espaço oferecido pelas cortinas mal fechadas.

Ao lado da mesa de jantar e diante de tapeçarias penduradas na parede, uma poltrona solo de veludo cor de vinho. Ali sentada, uma mulher até bonita de se olhar.  Muitos fios brancos misturados no emaranhado crespo dos cabelos castanho-escuros.

Os olhos já foram brilhantes e sagazes.  Hoje, um cinza desbotado carrega-lhe o olhar pensativo e perdido. 

O vestido de mangas compridas num azul opaco não tem qualquer ornamento.  Apenas um cinto com folhas miúdas lavradas em prata.   Nenhuma joia vistosa; só um brinco de pérolas, as mais pequenas que já vi.

Um silêncio que fere a alma é quebrado pelo tique taque monótono do carrilhão de família.  O balançar repetitivo da perna esquerda revela que a mulher está inquieta e muito apreensiva.  Um gato deitado aos seus pés descalços tenta acariciá-la, mas  é repelido.

A campainha toca duas vezes e a criada aparece esbaforida secando as mãos no uniforme branco.  Olha indagativa para a senhora que permanece imóvel.  Apenas o balançar da cabeça autoriza  a abertura da porta.

Dois policiais federais se apresentam e a Dra. Joaquina levanta-se;  ajeita a gola do vestido e calça os sapatos pretos de salto baixo;  Confere as horas e caminha pausadamente em direção aos dois homens.  Não mostra o turbilhão de sentimentos que a corroem.

Sem uma única palavra e sem olhar para trás, acomoda-se no banco traseiro da viatura onde a aguardava outro policial.  O mais forte deles deu partida e tão logo o carro deslanchou, ligou a sirene.  Não era necessário anunciar o espetáculo, mas...

 A criada ficou parada à porta sem nada entender.  Agachou-se e apanhou o jornal do dia que não fora ainda recolhido.  Sentiu o papel quente queimar suas  mãos.

Na primeira página, as letras da manchete eram tão GRANDES que chamaram-lhe a atenção:  “JUÍZA É JULGADA E CONDENADA POR VENDA DE SENTENÇAS”.

Nunca antes lera um jornal e não entendeu o recado.   Deu de ombros e fechou a porta.

Tinha muito serviço pela frente.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Casa de Banhos - Helio Salema

 



Casa de Banhos

Helio Salema

 

Alguns amigos costumavam se reunir na casa de banhos. Combinavam para assim poderem continuar as conversas iniciadas dias antes. Cada um tinha um assunto preferido, negócios, política, família etc.

Inocêncio gostava de fazer comentários sobre outras famílias que não as dos amigos presentes. Falava como se aquelas não prestassem, não possuíam nenhuma qualidade. Parecia que às vezes ele exagerava ou até colocava defeitos. Aproveitava para exaltar a sua própria família. O que num certo momento um dos presentes cochichou no ouvido de alguém.

“E o porco falando do toucinho”

Granaildo colocava seus múltiplos negócios à frente de qualquer outro assunto. Dizia dos realizados, todos com sucesso, e os que pretendia realizar, obviamente com cem por cento de êxito garantido. Só não comentava sobre prejuízos, que ocorreram no passado, dele e os que ele causou aos outros.

Preventino pouco falava, mas ouvia tudo, atentamente. Um dia, por estar muito compenetrado, chamou atenção de todos, que se calaram e queriam saber o que ele pensava.

Diante do terrível silêncio e depois de muito meditar, resolveu atender aos amigos.

— Perto de onde moro, estão construindo uma enorme casa. Meu irmão ficou sabendo que um dos cômodos estava sendo reservado para a Casa de Banhos da família.

Todos acharam um absurdo. Preventino  completou:

— O mundo está mudando tanto que um dia o homem chegará na lua.

Todos riram e ao saírem alguém disse:

— Você já está lá.

Preventino ficou só.

Por um triz - Helio Salema

 



POR UM TRIZ

Helio Salema

 

Saí de casa caminhando até o supermercado, como faço, quase diariamente,

Além de comprar algumas coisas, nem todas necessárias. Também é o lugar onde encontro amigos. Dar pastos às vistas. Saber das novidades da cidade, das fofocas, ouvir e contar piadas. Fiz tudo isso sem pressa alguma.

Ao chegar na fila do caixa, uma senhora que aparentava pouco mais de vinte anos, bem vestida e bonita, mas em contraste, tinha o semblante fechado, quase hostil.  Mais parecia uma bruxa raivosa, preparando a poção da maldade.

Retirava os objetos do carrinho de maneira muito brusca.  Demonstrava um nervosismo exagerado.  Pegava do carrinho de qualquer maneira, acabava misturando alimentos com produtos de limpeza, uns sobre os outros na esteira, sem o menor cuidado. Como se fossem coisas sem importância alguma.

Um homem chegou bem perto dela, falou alguma coisa. Ela virou-se e respondeu gesticulando muito. Ele saiu e ela voltou a esvaziar o carrinho. Agora, mais apressada. Pouco antes de terminar, começou a discutir com a moça do caixa, que respondeu bem baixinho e calmamente, conseguindo convencê-la. Não sei exatamente o motivo da discussão, mas não devia ser importante, pois logo, pediu desculpas, continuou retirando as coisas do carrinho, apressadamente.

Fiquei pensando na amargura dessa mulher, no azedume que ela espalha por anda passa, e me senti até feliz em não a conhecer. Já a tinha visto fazendo as compras, e ela estava com a filha bem pequena, uns 4 anos. Mas, o fato de pouco se dedicar à criança, chamou minha atenção.

Durante todo este tempo, ela nem sequer se lembrou da criança, que brincava com as cestinhas do supermercado ao chão, muito compenetrada, e distante do caixa.  Arrumava-as de uma maneira, parava, e colocando as mãos na cintura dizendo alguma coisa, que eu não entendia. Gesticulava com as mãos e movimentava a cabeça, depois mudava as posições das cestinhas. Assim ia se repetindo. Como se ali só existisse ela, as cestas e o infinito. Interessante perceber a diferença de estado de espírito entre mãe e filha.

Ao terminar de esvaziar o carrinho, dona nervosilda, só então mostrou-se buscando com os olhos, a filha pequena. Sem perceber que ali estava não apenas uma criança, mas um ser, sem culpa alguma, do que aconteceu horas antes, no mundo louco e desgovernado dos adultos.

De repente a mãe foi até a criança e puxou-a pelos cabelos, depois lhe puxou as orelhas, numa atitude covarde e sem nexo.  Em seguida ela colocou à frente, segurou de modo brusco pelas mãos e saiu apressada atrás do rapaz que levava as compras.

Aquela atitude violenta da mãe buscou dentro de mim o que sempre tento esconder que existe, além de repúdio, a ira. Queria ter defendido a criança, ter pelo menos me mostrado contrário àquilo.

Por um triz não lhe disse um monte de besteiras, e chamei a polícia.

Mas não o fiz para não melindrar a menininha.

Fiquei por alguns minutos meditando naquela mãe tão grosseira e sem amor, Deus dá mesmo a carga certa para alguns carregarem?

Muitas mulheres grávidas pedem a Deus uma criança normal com saúde. Aquela mãe tinha uma filha perfeita, mas não tinha sensibilidade para usufruir daquele momento sublime.

Talvez, neste caso, a carga certa para carregar, Deus não tenha dado para a mãe, e sim para a criança.


JOÃO LOROTA - Henrique Schnaider

 


JOÃO LOROTA

Henrique Schnaider

 

Na grande praça de touros, idos de 1800 e nada, atual Praça da República. Era um dia com plateia cheia. Bem lá no meio do povão agitado, querendo ver sangue na arena, estava o João Lorota. Levava a fama de grande mentiroso. Devido a isso o apelido.

Ele era totalmente desacreditado, pois só contava histórias do arco da velha. As pessoas queriam ouvir o que ele tinha para contar, apenas para se esborrachar de rir.

O pessoal queria mais é ver o Touro Tan Tan enfiar aqueles chifres afiados no ventre do pobre toureiro. “Puxa, algo injusto”. Até parece que o touro era o herói, e o toureiro o vilão daquela batalha. O povo gritava, pega ele Tan Tan, pega ele Tan Tan. O João na concorrência, tentando arranjar plateia, falava, falava e falava, um papagaio.

Ele nem se interessava pelo que acontecia na arena onde a tourada pegava fogo. O que será que o João falava? Para ele quem ganhasse aquela luta não era nem herói nem vilão, situação sem interesse. O povo torcia e o João distorcia.

O touro Miúra muito bravo.  Foi ficando cada vez mais furioso. Raspava sem parar os cascos no chão cheio de pedriscos que pulavam para todos os lados. Rap, rap, rap. Os olhos eram de puro ódio, vermelho ardente. Verdadeiras centelhas de fogo do diabo.

O que deixava o Tan Tan cada vez mais irado soltando fogo pelas ventas, era o pano vermelho sangue, nas mãos do toureiro balançando para todos os lados, vamp, vamp, vamp. O povo, pega ele Tan Tan e o João aos gritos pedindo para o povo ouvir suas histórias absurdas.

João Lorota olhava para todos ali, esperando, esperando, esperando até alguém se dispor a prestar atenção. Paciente, apesar da gritaria, João um professor, queria dar a sua aula, afirmando com convicção e conhecimento:

– Este homem que tudo consegue, um guerreiro alado, este homem vai longe. Este homem vai chegar à Lua com certeza. Irá até lá numa nave que terá foguetes poderosos para levá-lo e depois trazer de volta.

Estará vestido com uma roupa especial para poder respirar e protegê-lo daquele lugar sem vida da Lua. Com certeza irá nos mostrar do que ela é feita. Voltará nas asas do seu foguete para contar tudo que viu lá e trazendo pedaços do satélite.  Vontade de ferro, vencerá todos os obstáculos.

Este homem estará lá no futuro. Ele ainda vai nascer daqui a muitos anos e muitos anos, filho de um casal de cientistas. Ele será chamado de astronauta. Será capaz de muitas coisas e de muitas coisas será capaz. Nós não poderemos presenciar esta façanha pois ainda vivemos em tempos muito atrasados.

Quem quiser acreditar pode acreditar, pois quem me ouvir verá a verdade. Não duvidem e nem riam de mim. Apenas eu vejo tudo com os olhos do futuro. Não sou um mentiroso, apenas eu tenho um pressentimento, que me deixa enxergar aquilo que vocês desconhecem.

Alguém do lado do João falou com ar de deboche:

– Esta história tem um cheiro de mentira -  e todo mundo riu. Deixando o João Lorota entre um sentimento de constrangimento e ressentimento. Foi embora dali, pois ninguém mais queria ouvir suas histórias.

Mal sabiam todas aquelas pessoas. Nem nós nunca saberemos. Como o João poderia saber, lá naquele passado tão distante, de tanta coisa que, dezenas e dezenas de anos depois, se concretizaria e tornariam verdade a história do João sobre a viagem a lua.  Só podemos dizer que ele era um visionário.

Sempre que ouvirmos alguém prevendo coisas lá no futuro. É bom a gente por um pé atrás antes de duvidar.

FREDDY Alberto Landi

 

FREDDY

Alberto Landi

 

Freddy, é funcionário do Parque Nacional de Redwood, jovem, aos 22 anos. O Parque está situado ao longo da costa norte da Califórnia. Monitora a preservação dos bosques de sequoias e controla a exploração madeireira.

Diariamente ele vai para o Parque. Mas um certo dia, ao passar nas proximidades da orla da mata, surgiu uma harpia, que inesperadamente arrancou o chapéu Panamá da sua cabeça. Foi pousar no galho mais alto de uma enorme e imponente sequoia localizada na ribanceira de um rio, dificultando assim para ele recuperar o chapéu.   

A harpia é considerada a maior águia do mundo pelo seu porte imponente. Ponta de bico afiada. Tendo ao redor do pescoço uma espécie de um colar de penas negras e cabeça adornada com um cocar cinza. Onde surge um conjunto de penas ainda maiores; tem força para levantar um carneiro. Essa, tinha um aspecto matreiro e lúdico. Na base da sequoia havia três galhos que formavam uma espécie de forquilha. Onde foi trançado um espetacular ninho formado por grossos gravetos.  A ave colocou o chapéu virado para cima e bem apoiado nos gravetos.

Toda vez que Freddy ia ao parque. Olhava para o ninho da harpia e constatava que nada poderia fazer, para resgatar o chapéu, tamanhos eram os emaranhados de galhos, e a altura daquela gigantesca árvore das margens dos rios e riachos.

Após algum tempo Freddy encontrou seu velho chapéu, amassado amarelado, e ao lado um filhote de harpia abandonado. Caídos aos pés da grande arvore. Levou a pequenina e quase desfalecida ave para casa e a alimentou com pequenos insetos. Colocou-lhe o nome de ARROW.

Com o tempo, Freddy e Arrow criaram um vínculo forte de amizade. Uma   afeição tão grande que não   conseguiam se afastar do outro.

Era até comovente de se ver: homem e ave sempre juntos monitorando o parque!

Freddy com seu velho chapéu Panamá tendo ao seu lado o mais novo e inseparável amigo. Uma amizade de seres tão diferentes, mas um amor tão visível que emocionava as pessoas que visitavam o Parque.

Mas certo dia, Arrow voltou para seu habitat natural, o bosque de sequoias, separando- se de Freddy. Ele entristeceu-se tanto que dava dó de ver. Seu ânimo para o trabalho e para a vida estremeceu.

Passado muito tempo Arrow resolveu visitar o velho amigo, e trouxe no bico 2 filhotes! Tão grande foi o contentamento de Freddy, ao vê-los no quintal de sua casa que logo pensou:

– O bom amigo a casa torna ainda com 2 filhotes, que alegria.

Freddy voltou a sorrir e levava todos ao trabalho. Era uma alegria que contagiava todos os visitantes do parque. Arrow deixou os filhotes para Freddy cuidar pois sabia que ele era o melhor. Mas algumas vezes retornava, para vigiar os pequenos.

Entretanto Freddy sabia que a qualquer momento os filhotes voltariam para seu habitat natural. Foram crescendo como o pai, lindos e fortes, mas o abandonariam para seguir sua natureza.

Mas desta vez ele veria este abandono como um crescimento, e um sentimento de missão cumprida. Exatamente como um pai se sente quando o filho sai de casa para construir seu novo lar...

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...