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quinta-feira, 28 de agosto de 2025

... E ADÃO COMEU A MAÇÃ - Adelaide Dittmers

 

 


... E ADÃO COMEU A MAÇÃ

Adelaide Dittmers

 

Túlio admirava maravilhado o grande rio, cujas margens se perdiam de vista. A exuberância da floresta, que o cercava com suas grandes e imponentes árvores, exalava o aroma da natureza. Nuvens brancas bordavam o céu de um profundo azul.  De repente, um bando de tucanos cruzou o rio.

Seus olhos absorviam tudo com uma satisfação há muito não sentida.  Desejara aquela paz, que sua profissão impedira.  Descobrir crimes e seus autores. A constante convivência com a morte era algo, que estava deixando para trás com a recente aposentadoria.

Planejou essa viagem cuidadosamente e eis que estava no barco, que navegava mansamente, sem pressa, seguindo o ritmo plácido da natureza, para alcançar um hotel flutuante, à beira da mata.

Algum tempo depois, uma bonita construção envidraçada apareceu brilhando à luz do sol intenso.  Ele esticou todo o corpo.  Estava chegando ao paraíso.

O barco aportou e os passageiros desceram.  Os olhos brilhando e um sorriso feliz pela experiência inusitada, que iriam viver.

Depois de depositar sua mala na suíte reservada, Túlio desceu para almoçar.  As mesinhas rústicas distribuíam-se por um terraço aberto, que ladeava uma grande piscina. Sentou-se a uma mesa, onde estava um simpático casal.  A refeição veio farta:  pirarucu com banana da terra frita, farinha e vinagrete encheram seus olhos e ele inspirou o sabor original e delicioso daquelas iguarias, antes mesmo de experimentá-las.

Depois do almoço, o grupo se reuniu para se conhecer e trocar opiniões sobre aquele belo lugar. As caminhadas pelas trilhas marcaram a tarde quente desse primeiro dia. A emoção de estar andando pela imensa floresta esparramava-se pelas faces extasiadas dos visitantes, que pararam assustados ao se deparar com uma cobra, que cruzou calmamente o caminho.

No dia seguinte, foram conhecer uma tribo indígena e esse contato foi uma experiência marcante.  A dança com os trajes típicos, comer peixes feitos por eles de maneira rústica, mas deliciosos os surpreenderam.

Túlio estava fascinado e saboreava cada momento, cada novidade, que o paradisíaco lugar oferecia.

Na penúltima noite, o gerente do hotel anunciou que uma cantora da região iria brindá-los com as canções típicas da Amazônia. Todos se animaram com a apresentação durante o jantar.

O palco se iluminou e uma bela morena de cabelos lisos, que lhe cobriam os ombros, olhos verdes e amendoados, cujos traços revelavam sua mestiçagem, entrou e cumprimentou todos.  Com graça e leveza, cantou as canções amazonenses, como o carimbó e o rega.

Depois da apresentação, desceu e sentou-se para conversar com os hóspedes. Simpática, contou sobre sua ascendência indígena e portuguesa.  Crescera numa tribo e ainda hoje respeitava os ritos de seus ancestrais. A conversa foi até altas horas, com as pessoas encantadas pela história da jovem, que se dividia entre a aldeia e a cidade.

Na manhã seguinte, um Túlio sonolento, que adorara a noite anterior em que conhecera um pouco do povo da região, surpreendeu-se com o tumulto no restaurante.  As pessoas com expressões assustadas não paravam de falar.  Aproximando-se, ele perguntou o que estava acontecendo e soube que a cantora fora encontrada assassinada no seu quarto.

Ele arregalou os olhos e suspendeu a respiração.  Não era possível.  Veio para aquele paraíso para começar uma vida calma, sem a frequente presença da morte e o  crime o perseguiu.

O gerente do hotel estava nervoso, mas tentava acalmar os hóspedes.  Túlio se aproximou dele e disse em voz baixa:

— Sou detetive. Me aposentei há pouco tempo.  Quer ajuda?

O homem pousou a mão no braço dele e aquiesceu apenas com um balançar de cabeça.

Foram até o quarto.  A pobre jovem jazia no chão.  Túlio fez uma careta. O olhar cheio de piedade.  Vasculhou o quarto e abaixando-se viu uma chave perdida embaixo da cama.  Com cuidado, puxou-a com um pedaço de papel dobrado.  E virando-se para o gerente disse: 

— Vamos entregar essa chave para a polícia para verificar se tem impressões digitais.

Os policiais chegaram uma hora depois e levaram o corpo e a chave.

As pessoas passaram o dia excitadas.  Não conseguiam se desligar do ocorrido.  No fim do dia, três botos apareceram com seu jeito alegre e brincalhão.  Essa visita levantou o ânimo de todos e até Túlio se divertiu com a bagunça, que eles fizeram.

O dia da despedida do lugar amanheceu ensolarado e sem nuvens.  O grupo preparava-se para partir daquela floresta, que marcara suas vidas pela beleza, mas também por terem sido testemunhas daquele crime, quando chegou a polícia com a notícia de que o suspeito havia sido identificado pelas impressões digitais deixadas na chave. O homem tinha sido companheiro da pobre cantora. No entanto, ele afirmara que a chave tinha desaparecido da casa dele e que a tinha procurado por toda a parte.  Além disso, apresentou um álibi, pois na noite do crime, estava em Itacoatiara, cidade próxima a Manaus, onde intermediara uma compra de açaí para ser vendido para outros estados. Lá dormira em uma pousada e provou isso à polícia.

Todos ficaram perplexos. Quem teria matado a pobre moça? E por que?

Os empregados do hotel começaram a ser interrogados, Túlio acompanhou de longe o interrogatório.  Todos estavam nervosos. Ele pousou os olhos experientes em um deles, o garçom, que sereno, respondia às perguntas desviando o olhar do inquiridor.  As mãos inquietas no seu colo.  Seria ele?

Nunca iria saber.  Fora para lá para relaxar.  A polícia local é que teria que desvendar o crime.

O barco, que os levaria para a cidade, já tinha chegado e todos se dirigiram ao pequeno porto para embarcar. O silêncio tomou conta do grupo.

Túlio pensou na pobre jovem, que talvez perdera a vida de maneira tão violenta por não aceitar o assédio de um homem.

Sacudiu a cabeça para expulsar esse pensamento e mergulhou seu olhar no esplendor da natureza, onde tudo era harmônico, a floresta, os pássaros, o rio. Tão diferente do coração do homem, que abriga o inferno e o paraíso, o mal e o bem, o ódio e o amor.

Já na embarcação, olhou as águas azuladas do rio Negro, debruadas pelo verde intenso da mata.  Inspirou fundo o ar puro e deleitou-se mais uma vez com a paisagem exuberante, que se oferecia aos seus olhos. E pensou: ¨A alma do homem abriga o paraíso e o inferno, o bem e o mal, o amor e o ódio.¨

 

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Lembrança boa - Hirtis Lazarin

 



Lembrança boa

Hirtis Lazarin

 

Atenção! Passageiros e passageiras

Bem-vindos ao novo trem paulistano

Tenham todos uma boa viagem.

 

          Eu era o trem das novidades

          Nada igual a todos os outros

          Colorido e animado de verdade.

          Jamais esquecerei minha primeira viagem.

 

                                      Eu e o maquinista Joaquim

                                      O maquinista Joaquim e eu

                                      Eu e o maquinista Joaquim

                                      O maquinista Joaquim e eu.

 

Cheirava a tinta nova, nenhum ruído fora do lugar, corria macio sobre trilhos, nenhum defeito pra atrapalhar.

Lá ia eu, destino certo, terra, serra e mar.

Deixamos a primeira estação lá longe, tamanha era a vontade de chegar.

Um entra e sai de passageiros, cada um com histórias pra contar. Já aconteceu de tudo nesse tempo corrido que eu nem vi passar.

Levei a moça vestida de noiva pro rapaz que queria casar, entreguei o filho arrependido que pra casa queria voltar. Vi a mulher miúda, abatida, esperando o marido que nunca quis chegar.

Coisas engraçadas, também gosto de lembrar. A vaca leiteira, nos trilhos, tirava um cochilo e teimava em não acordar.

 

                             Era um puxa pra cá

                             Um puxa pra lá

                             Um puxa pra cá

                             Um puxa pra lá.

 

E a danada, por birra, não saía do lugar. Era gente xingando, pois tinha hora pra desembarcar, era criança torcendo pra vaca ficar.

Foi o Toninho alisar o seu focinho, a malhada deu um pulo e liberou nosso caminho.

Houve a noite da agonia. Uma nuvem bem pretinha fez o dia virar noite, confundiu até as galinhas que desandaram a cacarejar.

“Meu Deus do céu! Bem que o pastor avisou e foi difícil acreditar: rezem meus filhos, o mundo vai acabar!”

Gente nos bancos subia e gente sob os bancos se escondia. Mãe desesperada, os filhos sob as asas acolhia. 


Lá fora a coruja se protegia

O relincho assustado do cavalo 

Espantava a cotovia,

E chovia…Chovia… 

Trabalhar com amor era nosso lema

E driblar todo e qualquer problema.

É gente… Tudo acaba um dia…

O maquinista Joaquim está aposentado

Eu sou um ferro-velho enferrujado.

      

 

UMA NOTÍCIA QUE NÃO ESTÁ NO JORNAL - Dinah Ribeiro de Amorim

 



UMA NOTÍCIA QUE NÃO ESTÁ NO JORNAL

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Jorge, um médico muito atarefado, mal tem tempo de escutar notícias do dia a dia, ler o seu jornal predileto, assistir ao time de futebol do coração.

Na tarde de domingo, recebe folga do hospital. Um colega amigo o substitui, achando-o muito cansado.

Aproveita o dia, conversa um pouco com os filhos, faz compras para a mulher, apanha o jornal e senta-se, confortavelmente, na poltrona predileta. Espera, ansioso, o horário do futebol começar.

De repente, percebe Rosa, sua mulher, entrar rápido na sala, agitada, aos gritos, chamando-o, derrubando tudo que encontra…

— Jorge, preciso lhe falar!

Ele resmunga logo, hum… sei… já vou…

 

Ela continua nervosa, falando rápido:

— Jorge, presta atenção… Suas mãos tremem… Chuta a banqueta em que ele repousa os pés.

— Sim… Tudo bem… Já ouço…

— Jorge, me escute… É sério…

— Hum… sei… Sempre é...

Rosa, sem demora, arranca-lhe o jornal e grita:

— Roubaram o seu carro!

Jorge, nervoso, levanta-se rápido e dá um grito:

— Nossa mulher! E só agora você me diz?

Vida de médico é assim mesmo…

 

 

 

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

A saga do telefone - Alberto Landi

 



A saga do telefone

Alberto Landi

 

Em uma noite fria de um inverno no ano de 1876, na cidade de Boston, o silêncio da noite era quebrado apenas pelo tic-tac de um relógio de parede e pelo som de uma tosse bem seca.

Graham Bell, em seu laboratório improvisado, sentia o peso do mundo em seus ombros.

Meses de tentativas frustradas, de noites sem dormir, de sacrifícios que beijavam o desespero.

Seu assistente Watson estava enfermo e a pressão para apresentar um resultado era esmagadora.

Eles precisavam provar que a invenção que parecia obra de ficção científica era, de fato, uma realidade possível.

— Caro Watson, você consegue me ouvir?

A voz de Bell tremeu carregada de uma esperança bem frágil. Do outro lado da sala, por meio de um fio que parecia mais uma linha tênue de vida, veio a resposta que mudaria o curso da história.

— Sim, Sr. Bell. Ouço alto e claro.

Aquela simples frase carregada de emoção e alívio foi mais do que uma confirmação técnica, foi a explosão de um sonho que parecia impossível.

Bell sentiu um nó na garganta, uma mistura de triunfo e exaustão. Ele havia conseguido, havia vencido o silêncio, a distância, a própria natureza, porém a batalha estava longe de seu término.

A notícia se espalhou como fogo em palha seca.

O mundo acostumado ao ritmo lento das cartas e telegramas ficou perplexo.

Alguns viram a invenção como um milagre, outros como uma ameaça.

Famílias separadas por continentes agora podiam ouvir as vozes de seus entes queridos, negócios que antes levavam semanas para fechar contratos, agora eram resolvidos em minutos.

A comunicação, antes um luxo para poucos, começava a se democratizar.

Com a democratização vieram também conflitos. A invenção de Bell não foi aceita pacificamente por todos.

 Gray, outro inventor, alegou ter concebido uma invenção semelhante. A disputa legal foi acirrada, cabendo à Bell a patente da invenção. Ele sabia que o futuro da comunicação dependia de sua vitória.

Dizia, pensemos em uma mãe ouvindo a voz de seu filho que partiu para a guerra, um alívio inundando seu coração ao saber que estava vivo.

Pensemos em um médico em uma cidade remota recebendo instruções vitais de um especialista em outro local, salvando uma vida que antes estava perdida.

O telefone não era apenas um aparelho, era um elo, um fio invisível que conectava corações, mentes e destinos.

Ele encurtou distâncias, derrubou barreiras e deu voz a quem antes só podia sussurrar.

A emoção de ouvir uma voz familiar do outro lado da linha rompendo o isolamento era um poder transformador.

Apesar dos conflitos e controvérsias, a importância do telefone se consolidou em cada chamada, em cada conversa.

Ele redefiniu o conceito de negócios, de relacionamentos.

A voz que cruzou o mundo, antes um murmúrio de esperança em um laboratório silencioso e simples, tornou-se o som que mudou o século XX e continua a ecoar em nossas vidas, um testemunho de audácia, de paixão de um homem que ousou desafiar o silêncio.

A primeira linha telefônica foi instalada em Boston, conectava os escritórios de Charles Williams Company em Boston ao laboratório de Bell em Cambridge, ambas as cidades em Massachusetts.

A segunda linha comercial foi instalada em 1878, conectando a sede do Western Union Telegraph Company em NYC com a Bolsa de Valores de NYC.

O telefone chegou à Casa Branca em 1890.

Bell dedicou anos à pesquisa e experimentação, enfrentando ceticismo e dificuldades técnicas.

Sua persistência o levou a registrar a patente em 1876, revolucionando a comunicação mundial, cujos efeitos permanecem até hoje.

 

 

 

 

 

AS DÚVIDAS DE PETER - DINAH RIBEIRO DE AMORIM

 



AS DÚVIDAS DE PETER

DINAH RIBEIRO DE AMORIM

 

 

Peter, um rapaz estrangeiro, não muito jovem, descendente de húngaros, ficou sem pai muito cedo, devido às dificuldades do pós-guerra na Europa. Veio como imigrante, bebê, junto à mãe, ao Brasil, estabelecendo-se numa região campestre. Dedicaram-se à confecção do queijo, uma prática exclusiva da família materna.

Após alguns anos difíceis, tiveram progresso. Ele tornou-se um belo rapaz, abastado, de grande sucesso entre as raparigas da região.

Incentivado pela mãe, assume compromisso sério com Fernanda, jovem radiante e culta, da cidade mais próxima.

Hum… Quem diz que o rapaz estava feliz? Pensativo… passa horas caminhando pelos arredores da fazenda, preocupado com a situação.

Mil pensamentos lhe vêm à cabeça: “Não tive pai… fui criado só pela mãe… acho que não serei bom marido, sou apaixonado por ela, mas… Fernanda quer filhos… muitos… não tenho muita paciência… ou será que terei… filho é filho… o amor aparece, talvez…

Quanto mais caminha, mais pensa, quanto mais pensa, mais se atormenta e perde a vontade de casar.

Embrenha-se tanto na floresta que, quando percebe, está meio perdido, longe da fazenda.

Procurando orientar-se, acaba avistando um casebre, com fumaça pela chaminé.

Curioso, vai lá e encontra como morador um velho, muito idoso mesmo, cabelos e barbas compridas e brancas. Rosto um pouco assustador, desdentado, nariz pontudo, com uma grande verruga na ponta. Pareciam os feiticeiros de suas histórias infantis.

Dirige-se a ele, meio amedrontado, será que ele fala? Tem aparência meio de louco… Também, sozinho nesse matagal… difícil…

— Por favor, onde estamos? Mora aqui há muito tempo? Estou meio perdido de casa.

O velho, um conhecido feiticeiro, morador daquelas bandas, dá um sorriso e lhe diz:

— Esperava-o. Sabia que ia ser procurado por um jovem claro, perdido não no caminho, mas nas suas dúvidas, nos seus pensamentos…

Peter, assustado e espantado, adivinha que ele deve possuir algum dom, ou mágico, ou feiticeiro mesmo. Como o conhece? Nunca se viram.

O feiticeiro, que afirma chamar-se Raomi, manda-o sentar-se numa banqueta estreita e velha, já gasta por tantos usos. É muito procurado pelas pessoas da região, na solução de problemas.

— Anda muito preocupado com o casamento próximo, não é, rapaz? Por quê?

Está bem de vida, a moça é jovem, saudável, educada, ama-o muito.

Peter, cada vez mais assombrado, resolve abrir-se com o velho.

— Sinto medo. Muito medo de me casar. Não conheci, na verdade, meu pai. Fui criado pela minha mãe e sempre vivemos juntos, só eu e ela. Vim da Europa logo que nasci e o pai morreu no estrangeiro. Nem chegou ao Brasil. Lutamos muito, os dois, fabricando e vendendo queijos. Só os dois. Mas fui muito mimado… muito cuidado… nem brinquei com outras crianças… acho que nem gosto muito delas… e minha noiva quer muitos filhos… nem sei quantos… é louca por crianças e diz que sou lindo… terei filhos maravilhosos… isso me apavora…

O velho feiticeiro fecha os olhos e pensa um pouco antes de falar. Levanta-se, logo após, e abre uma caixa, cheia de quinquilharias, com algumas fotos. Escolhe algumas e se dirige a Peter.

Joga algumas fotos no seu colo e, antes que ele as veja, pergunta-lhe:

— Como morreu seu pai?

Peter responde que nunca soube direito, sua mãe queria poupá-lo de sofrimento, mas parece que foi vítima da última guerra havida na Europa.

Raomi, com um pequeno sorriso, manda-o examinar as fotos deixadas no seu colo.

O rapaz, curioso e sem muito interesse, percorre-as com os olhos. Algumas lhe chamam logo a atenção. Percebe várias crianças em pequenos grupos, sozinhas, percorrendo estradas ou subindo em trens.

Pergunta, pelas roupas, quem são? De que época? As fotos são muito antigas! Parecem estar em pijamas, roupas de dormir…

Raomi responde-lhe:

— São mesmo, filho. Crianças tiradas de suas camas, afastadas dos pais, levadas presas, deixadas para morrer, na mesma guerra em que seu pai morreu. Quando a guerra acabou, poucas restaram, conseguiram sobreviver. Assim é o mundo… triste mesmo… e as guerras continuam acontecendo… muitas crianças hoje morrem de fome… ou de armamentos inimigos… são as maiores vítimas das brigas entre os homens, que se dizem inteligentes… querem resolver tudo… se acham donos do mundo…


O RELÓGIO - Alberto Landi

 




O RELÓGIO

Alberto Landi

 

Na sala havia um relógio antigo e orgulhoso que parou de bater ao meio dia em ponto.

Não por falta de pilhas, mas por pura revolta.

Durante anos reinou absoluto marcando o tempo com precisão e elegância.

Seu tic-tac era o charme da casa, até que um dia apareceu algo inesperado, um relógio digital, silencioso e moderno, cheio de luzinhas azuis piscando sem parar. Orgulhoso, mostrava as horas com números perfeitos e sempre precisos, como se dominasse o tempo inteiro.

Ao lado, na parede pendurado, estava um relógio de madeira antigo, com ponteiros elegantes, mas parado há tempos. Sua caixa de ébano carregava marcas sutis do tempo, cada veia, cada fenda, guardavam um segredo antigo. O vidro amarelado filtrava a luz com suavidade, e o som pausado guardava histórias de outros tempos, como um coração silencioso que ainda pulsava dentro daquela madeira nobre.

O relógio digital zombava do velho.

— Para que serve você, parado aí? Eu tenho todas as funções, sou rápido, eficiente e iluminado!

Mas o relógio antigo não se abalava, até que de repente, foi ativado. Seu mecanismo enferrujado começou a mover lentamente os ponteiros, marcando cada segundo com um som compassado, quase mágico.

O tempo voltou a pulsar naquele velho companheiro. Ele não era apenas um mostrador de horas, era um guardião de memórias, de histórias, de momentos guardados no coração escuro elegante do ébano.

E assim dois tempos passaram a coexistir na mesma parede: o ritmo frenético e luminoso do novo, e a calma e  a firmeza do antigo.


Os seios das plantas - Pedro Henrique

 




Os seios das plantas

Pedro Henrique

 


“Foi com esse barro que me dei um deus, feito à minha imagem e semelhança, e que tudo viu. Cada coração, cada fígado, cada genitália. Todos os céus e infernos e silêncios.”

 

- Carla Madeira




“Foi com esse barro que me dei um deus, feito à minha imagem e semelhança, e que tudo viu. Cada coração, cada fígado, cada genitália. Todos os céus e infernos e silêncios.”

Carla Madeira



      Seus místicos poderes varriam para a rua das almas insaciadas o antídoto da cura de suas interrogações.
     A vidente, com seu sábio mapa, gabava-se de, por intermédio dele, fazer avidamente emergir os mais viscerais mistérios dos abismos que eram as mentes daqueles insetos histéricos que clamavam por seu auxílio.
     Atendia em uma ínfima tenda em uma segregada vila medieval. Lá, onde o sol não boceja, ela subjugava com maestria o abençoado dom que lhe fora transpassado pela matriarca de sua pobre família.
     Era, com recorrência, objeto das senhoras sem amparo que procuravam em seus atributos a costura das lacunas em relação a seus amados cônjuges.
     Dizia: ah, minha cara, veja, veja como ri nos seios das outras, veja como se submerge ao afago alheio, olhe, o mapa revela tudo, mostra tudo…
     Com isso, foi ganhando projeção e seu nome, levado pelos ventos longínquos, chegou a Aurélia.
     Moça edênica, que detinha sob a sola de seus pés a estima dos deuses. Fora, indubitavelmente, forjada a mel e porcelana, porém, não se engane, tal era a beleza, tal era a altivez.
     A menina, ao entrar na tenda da velha, observou parcimoniosamente o local, concedendo-lhe os seus mais hostis julgamentos e desdém. Fato é que não se tratava de um ambiente receptivo aos olhos, todavia seu conteúdo era o que acorrentava o estrangeiro à resiliência da estadia.
     Sendo assim, Aurélia sentou-se no local reservado à clientela e minutos depois ouviu seu nome soar de uma voz depenada pelo tempo e temerosa.
     Fico assustada? Sim, defrontou-se com tal sentimento de olhos vivos e sombrios, porém levantou-se de queixo erguido e seguiu o caminho que inferiu ser o da sala de atendimento.
     Ao chegar, deteve-se com uma senhora de baixa estatura e cujos cabelos grisalhos pareciam não ser penteados há séculos.
     Sentou-se, demonstrando indiferença àquilo tudo. A senhora trancou a porta e se posicionou, paulatinamente, defronte à garota. Essa demora toda incomodou Aurélia que, dadas as oposições do altruísmo e empatia pela idade da vidente, explanou:
     “Quanta demora, devo assegurar-lhe que meu tempo é precioso, portanto quanto mais breve for esta conferência, melhor me sentirei.”
     A vidente, então, encarou-a com um olhar que denunciava uma cuidadosa análise dos átomos que constituíam aquele organismo petulante que se sentava à sua frente.
     “Perdoe-me, senhora, entretanto, devo adverti-la que a espiritualidade solicita veementemente de nós calma. Nada se faz com ânsia de breve conclusão. As coisas, se forem bem feitas, exigem o exercício do tempo. Veja: o próprio criador precisou de sete dias para fazer desabrochar do mais absoluto nada tudo o que vemos ao nosso redor, quem sou eu, uma pobre vidente, para querer me opor aos ensinamentos do sagrado?”
     A moça bufou e colocou-se alheia aquela afirmação, apenas disse:
  “Vamos logo com isso.”
  “Como quiser.”
     Dito essas palavras, abriu o mapa. Ao olhá-lo, Aurélia mergulhou inerme na perplexidade.
     “Não há nada neste mapa.”
     “Aos teus olhos não, mesmo, todavia o nada, se observado com zelo e calma, pode revelar o tudo.”
     As palavras primeiro pairaram sobre a moça, em seguida, de forma gradual, adentraram silenciosas as salas, fechadas por cortinas ásperas e grossas, de sua alma e, com esforço, abriram uma fresta.
     “Ah, ah, sim, olhe, olhe como toda engrenagem se movimenta com esmero e o oculto ganha músculo, corpo e vida. Vejo, vejo. Há bailes e há seu rosto formoso neles, és disputada pelos cavalheiros da sociedade e se deleita com tal devoção a ti concedida. É a Cleópatra das ruas, mãe dos corações humildes e simplórios.
     Corta-os com faca amolada em sombras. Escarnece-os e os subjuga conforme tua vontade. Observo e até admiro o teu poder.
     Também, ah, sim, também noto família, pessoas bem aceitas e encaixadas nos motores sociais, és querida, és Aurélia.
     Ah… cheguei onde queria, no verdadeiro imbróglio que a trouxe aqui: o amor.
     Hum… hum… HUM…, sim, sim, sim… beijos e mais beijos, amiga, fogo, carne e fervor. Dor, amiga e mágoa. Traição, paixão e amiga. Cavalheiro, amiga e roubo...

A vidente encara Aurélia, que pasma com as flechadas diretas e furiosas atiradas contra si, vê seu lindo rosto ser tomado por solitárias lágrimas que há muito aprisionara no porão do esquecimento com correntes resistentes, que perduram os séculos e milênios.
“Ele ressurgiu em sua vida, minha cara?”
     Aurélia fica imóvel, sabia que veio até aqui com sede de saber o óbvio: quer ceder ao seu amor, porém ele merece?
     Essa resposta ela teme mais do que tudo ouvir neste momento. É brutal, não tem recursos necessários em si para sustentar, com mãos de ferro, a ponte que cai matando todos que nela há. É um fluxo muito veemente para seu frágil corpo feito de carne e osso.
     Portanto, como não há mais nada a ser dito, entrego com prazer o fenômeno à poesia, para que, neste pequeno fragmento do instante, ela descortine, com suas sedosas mãos, o funesto fato.
     Assim versa: dos seios das flores, que ao redor da tenda construíram sua morada, verte o líquido do real, que para a moça é objeto de espanto e do qual se recusa a degustar, porque a verdade é um ramo de espinhos venenosos cujo toque pode levar ao jazer eterno na terra fúnebre da vida.

 

      

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...