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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Fala, fala espelho meu... - HIRTIS LAZARIN

 

 


Fala, fala espelho meu...

HIRTIS LAZARIN

 

Dona Luíza entrou apressada no quarto da Elisabeth. Tinha pouco tempo para colocar ordem. Estava atrasada com os serviços do dia; as crianças e o marido logo mais chegariam para o almoço. Às quintas-feiras, Rui tinha que sair voando. As audiências no fórum não esperavam.

Como sempre, encontrou tudo como ela não queria: gavetas abertas, tênis jogados, roupas espalhadas por todo canto. Já tentou muitas vezes, com jeitinho e outras vezes, aos gritos, conscientizar a filha. Já estava na hora dela cooperar com a mãe.

Assim que abriu a janela e a claridade entrou, percebeu que alguma coisa estava diferente.  A bagunça era a mesma, mas...

Bem, não tinha tempo para ficar pensando. Ouviu o ronco do carro da família entrando na garagem e correu para terminar o almoço.

Elisabeth não é mais a menina que coleciona bonecas. Não foi de uma hora pra outra que seus pensamentos mudaram.  Tudo aconteceu aos pouquinhos, em doses homeopáticas.  E ela foi guardando para si. Não era extrovertida o suficiente para contar à mãe.

Não demorou muito e o primeiro sintoma extravasou: sentiu vergonha da coleção de bonecas que enchia a prateleira do quarto. Num ímpeto, escondeu todas.

E o espelho, o malvado espelho da penteadeira apareceu e tirou-lhe o sossego e a espontaneidade da infância.

Ele contou-lhe um segredo: ”a menininha manhosa foi embora”.

Elisabeth sentou-se à sua frente e ali ficou parada alheia à vida, como se nunca tivesse reparado que esse espelho existia.  

Teve tempo para conferir todos os detalhes do próprio corpo, dos cabelos e até das unhas mal lixadas. Examinou suas roupas e não gostou do que viu.   As expressões faciais, ora bem-humoradas, ora contrariadas, contavam seus sentimentos.

Dali em diante sua vida mudou. Passou a ser monitorada pelo espelho, o personagem que apareceu forte e autoritário em sua vida.

 E, assim, a vaidade brotou em flores e espinhos.

Ir à escola, até então, momento de alegria, passou a ser um tormento aos pais. Elisabeth colocava o relógio para despertar, levantava-se bem mais cedo que todos e perdia-se no tempo. O tênis não podia ser o mesmo usado no dia anterior, o moletom estava velho, a presilha tinha que combinar com o humor do dia. E o cabelo, coitado, era puxado pra cá, pra lá e perdeu a liberdade de seguir o caminho do vento. Chegar atrasada à aula virou rotina.

Descer à portaria para pegar uma pizza “delivery”, caso a mãe estivesse ocupada, era um inferno. Elisabeth consultava o espelho e ele, sem dó,  sempre torcia o nariz e apontava um item errado. Ela obedecia fielmente.

Já ocorreram vezes em que o motoboy, responsável pela entrega, perdeu a paciência e voltou com a mercadoria.

Os pais estavam preocupados, mas acreditavam que a crise, comum entre os adolescentes, era passageira.

Elisabeth foi convidada, com bastante antecedência, para ser dama de honra, no casamento da prima mais velha. Durante um mês, mãe e filha rodaram lojas e lojas de grife, em busca do vestido mais bonito e apropriado para a ocasião. Depois de desentendimentos, malcriações, mudanças nos detalhes e muito choro, a roupa foi escolhida.

Não era o que a mãe queria, mas o espelho orgulhoso venceu a parada mais uma vez.

O dia do casamento chegou. Estava bem frio, mas nada demais para o esperado no mês de julho.

A daminha de honra passou a manhã toda no salão de beleza. Deu trabalho, mas chegou em casa satisfeita. Horrorizadas ficaram as profissionais que atenderam a cliente.  “Nunca mais”, cochichavam entre elas.

Dona Luísa nunca passou tanta vergonha na vida e nunca desembolsou tanto dinheiro para pagar uma conta de cabelo. Foi esfolada viva.

O casamento estava marcado para as vinte horas. Já eram dezenove e Elisabeth ainda não estava pronta. Ao colocar o vestido, reclamou que alguma coisa, no avesso, cutucava-a.  A mãe procurava... Procurava... E não achava nada. Esse processo se repetiu, acho que por três vezes. Nessa confusão, o cabelo, preso no do alto da cabeça, despencou.

Fim de festa. Fim da tolerância.

“As regras, nesta casa, a partir de AGORA, serão outras. Aguarde, Elisabeth”.

2 comentários:

  1. Um bom relato do problema de uma adolescente que ainda não sabe se satisfazer e, da mãe que não consegue compreender.
    Abraços Helio

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  2. Bem lembrado e caracterizado esse tema, retratando a insegurança da adolescente na formatação de sua imagem.

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