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quarta-feira, 15 de junho de 2022

A JANELA ABERTA - Leon Vagliengo

 


A JANELA ABERTA

Leon Vagliengo

 

Uma historinha sobre circunstâncias da bravura doméstica. ___________________________________________

 

         Tarde da noite, hora de dormir, Maria foi fechar a janela do quarto. De repente, deu um grito selvagem de pavor, saltou para trás e pediu socorro, com a voz trêmula, alterada:

         — João, me ajuda aqui! Uma barata enorme! Entrou voando pela janela, foi para trás do armário! AAAI, MEU DEUS!

         João estava saindo do banho. Ouvindo o apelo de sua esposa, secou apenas os pés, prendeu rapidamente uma toalha na cintura, calçou as havaianas e correu, com o corpo ainda molhado, para acudi-la. Sabia como ela tinha medo de baratas, um medo absurdo, incontrolável, verdadeiro pânico, coisa de mulheres.

Nem pensou, mas sentiu; seria um bom momento para demonstrar a ela o seu destemor e valentia ao resolver essas situações caseiras, fortalecendo assim, de maneira subliminar, o respeito e a admiração que ela lhe dedicava, apenas matando uma barata.

         Chegando ao quarto encontrou Maria espremida num canto, em seu rosto a expressão do medo; dirigiu-se corajosamente ao pesado armário, conseguindo, com muito esforço, arrastá-lo um pouco, até poder espiar no vão formado entre ele e a parede, pensando com seus botões “eita armário pesado, sô! Quase passei vergonha”.

         Iluminou o local com uma lanterna, com muito cuidado para não ser surpreendido por uma possível investida da barata voadora que procurava; inconscientemente, temia que a atrevida avançasse sobre ele e o assustasse, comprometendo o seu ato de bravura; assim, examinou aquele espaço cautelosamente, nada encontrando. Depois, mais confiante, conseguiu puxar o armário um pouco mais, examinou melhor todo o espaço, centímetro a centímetro; verificou também embaixo e no outro lado do móvel, também nada encontrando.

Finalmente, com muito orgulho pronunciou o seu veredicto:

—Aqui ela não está. Venha ver.

         — EU NÃO! — Bradou Maria, sem superar o medo, como seria de se esperar.

         Mesmo porque o problema não estava resolvido. Onde estaria a temível barata voadora? João, então, afastou-se um pouco para melhorar a perspectiva e poder prescrutar mais completamente todo o cenário, tentando entender o caminho que poderia ter sido percorrido pelo repugnante inseto.

         Sua força e valentia já haviam sido demonstradas para Maria ao deslocar o pesado armário e assumir o risco de enfrentar o perigoso animal. Mas uma barata de paradeiro incerto e não sabido, esgueirando-se pelos cantos mais escondidos, é sempre uma ameaça muito grande. Poderia aparecer de repente no chão, subir-lhe pelas pernas por baixo da toalha sabe-se lá até onde, enfim, provocar nele alguma atitude menos viril, algum gritinho comprometedor irrefreável, daqueles em que a voz até sai fininha.

 Esse pensamento passou pela cabeça de João, que logo o afastou. Resoluto, agora já dominava a situação e era chegado o momento em que poderia mostrar para Maria a sua inteligência, se conseguisse desvendar o mistério da barata desaparecida. “Onde se enfiou essa miserável? ”, pensou. Observando detalhadamente todo o cenário por alguns longos minutos, finalmente, com muita perspicácia, decifrou o enigma. Aliás, não apenas o decifrou como, também, caiu na risada.

— Do que você está rindo? – Perguntou ela, surpresa, ao que lhe respondeu João, detalhadamente:

— Veja, meu bem. A janela aberta deixa passar uma brisa, fazendo balançar um pouco o lustre, projetando-se assim uma sombra, uma pequena sombra em movimento, em direção ao armário. Engana, sim, parece mesmo uma barata — completou, mostrando-se compreensivo com o medo de sua mulher.

Maria, então, ficou um pouco mais tranquila. Só um pouco. E curiosa. De longe, ainda temerosa, observou aquela pequena sombra que se movia tal qual uma barata voadora. Então, depois de confirmar a brilhante descoberta de seu marido, agora sim, aliviada, abraçou João, numa romântica atitude de agradecimento.

— Como eu sou medrosa, meu bem. Ainda bem que tenho você aqui para me proteger.

Com esse gesto de Maria, abriu-se o espaço para um compreensivo João, em tom superior e professoral, mais uma vez demonstrar carinhosamente a sua sabedoria, explicando algumas coisas para ela, feliz e envaidecido com a sua própria performance:

— Isso que acaba de acontecer com você, meu amor, chama-se pareidolia. Pode acontecer com qualquer um. E acontece quando uma pessoa vê alguma coisa que parece outra, mas não é, mas porque parece, a interpreta como se fosse. Ficou claro? Portanto, não se amofine. Neste caso, envolvendo a imagem de uma barata, você não está sozinha. É natural para qualquer mulher cometer esse equívoco, pois as mulheres mantêm em seu subconsciente um medo atávico, doentio e permanente desse inseto, que aflora incontrolavelmente nesses momentos. Foi o que aconteceu com você: viu a sombra em movimento, e já foi achando que era mesmo uma barata. É muito divertida, e até graciosa, a maneira como se manifesta a fragilidade feminina nessas situações. É por isso que é importante que as mulheres sempre tenham por perto um homem que as socorra nessas horas...

A toalha que o cobria soltou-se e caiu ao chão com o salto repentino de João para trás, uma das havaianas voou longe, ao mesmo tempo em que seu grito alto, agudo, fininho e desonroso, nada viril, interrompeu a sua pregação de herói, quando a barata de verdade, finalmente, resolveu voar do lustre onde se alojara, diretamente para a sua careca. Num reflexo desesperado João se abaixou, procurando proteção, e assim ficou: mãos nas orelhas, encolhido, de cócoras, pelado, um pé descalço, imobilizado pelo pavor.

Ao ver a cena Maria fugiu incontinenti, manifestando toda a sua fragilidade feminina ao correr desesperada para fora do quarto, confirmando aquela maneira divertida e graciosa que seu marido lhe dissera. Mas recobrou-se num instante e, num repente, extraiu de seu âmago toda a coragem necessária para voltar ao quarto, armada de um poderoso aerossol de inseticida que pegou de passagem no armário do banheiro, com o qual encharcou a cabeça de João, que ainda permanecia com as mãos nas orelhas, agachado, pelado, um pé descalço, com a barata na careca.

A enorme barata reagiu no mesmo instante, e ainda voou um pouco, até cair ao chão, debatendo-se. Maria deu-lhe mais uma longa, nervosa e vingativa borrifada de aerossol, e ela finalmente se rendeu, estirada com as pernas para o ar. Superado com sucesso aquele momento de ação e bravura, Maria respirou fundo, encheu-se de mais valentia e correu para fechar a janela, que ainda estava aberta.

Finalmente sentia-se segura.

Mais calma, olhou para o marido e, mesmo com muita vontade de rir, sabiamente Maria se conteve; ajudou João a levantar-se, encontrar e calçar a havaiana, cobrir o corpo novamente com a toalha, e procurou restabelecer a sua combalida dignidade, dizendo, bem séria, com muito cuidado para não parecer irônica:

— Nossa, João! Que bicho enorme! Até você se assustou! Mas manteve corajosamente a barata na cabeça, quietinho, para eu poder acertá-la com o aerossol! Isso é o que eu chamo de sangue frio! Ainda bem que você estava aqui para me proteger. Agora vá tomar outro banho e lavar essa cabeça ensopada de mata-baratas; depois a gente vai para a cama e comemora o sucesso dessa caçada. Com um bom sono, claro, porque já é tarde.

A tentativa foi boa, mas as palavras enaltecedoras de Maria não tiveram nenhum efeito para elevar o moral de João. Jururu e calado, ele limitou-se a obedecer. Tomou um novo banho e foi mesmo para a cama, sempre bem quietinho, juntar-se a Maria, para dormir.

Atualmente, a casa de João e Maria é dedetizada a cada seis meses e há telas contra insetos em todas as janelas.

 

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