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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

TENTAÇÃO - Hirtis Lazarin

 


TENTAÇÃO

Hirtis Lazarin


Duas viaturas, sirenes ligadas, estacionaram em frente à pequena igreja “Nossa Senhora das Dores”, no centro de Curió.  Quatro policiais desceram armados.  O sacristão aguardava-os na calçada, gesticulando feito doido.  Andava de um lado pro outro.  As palavras saiam enroladas, difícil entender o que estava acontecendo.

Honório trabalhava meio período num posto de combustível.  Depois do almoço, dedicava seu tempo a cuidar da igreja.  Trocava as flores murchas dos vasos, brilhava o chão de ladrilhos azul e bege, espanava o pó onde se acumulava.  Deixava tudo em ordem até às dezesseis horas.  Pontualmente, abria a porta de madeira bem pesada. O rangido das dobradiças enferrujadas era tão forte que se tornou referência de hora pra quem não tinha relógio.

O som alto e prolongado das sirenes atraiu gente de todo canto.  Crianças pararam de brincar, donas de casa abandonaram a panela de feijão no fogo, o pintor de parede caiu da escada...  Em minutos o quarteirão estava apinhado de gente.

A vida no vilarejo de Curió parecia presa a sua espantosa monotonia.  Os dias e a vida eram desenhados para seguirem sempre um roteiro definido e sem surpresas.  A quebra da rotina naquele dia e a curiosidade maior que o medo, careciam da presença de público.

Os cinco homens entraram na igreja e fecharam a porta. Tudo revirado...  Imagens de santos em pedaços atirados ao chão, flores pisoteadas, o cofre na sacristia com o dinheiro do dízimo saqueado, o altar revirado, hóstias espalhadas.  O cálice de ouro maciço usado na distribuição da comunhão jamais foi encontrado.

A porta que dava acesso aos aposentos do padre estava arrombada. Cobertas e lençóis no chão, gavetas abertas e vazias. Na parede, apenas o contorno empoeirado do espaço ocupado pelo crucifixo de bronze.   No guarda-roupa, cabides solitários.

A todas as perguntas que se fazia, a resposta era uma só:  “A igreja foi saqueada e o padre sequestrado”.

 

Faziam apenas oito meses que o padre Walter assumira a paróquia.

Homem enérgico e assertivo nos sermões, cobrava, excessivamente, as obrigações dos cristãos e todo dia repetia: “Os tementes e fiéis a Deus devem se confessar semanalmente.   Não estamos livres de cometer pecados entre uma semana e outra.  Ai daquele que morre em pecado”.

Os fiéis, gente humilde e carente de opinião, obedeciam-no religiosamente.  O medo de ir pro inferno atormentava-os desde que aprendiam a ler e estudar o catecismo.

Zezinha era a mais fervorosa de todos.  Sempre de vestido azul, nos mais diferentes tons, véu branco de renda na cabeça, caminhava todos os dias, a passos largos, em direção à igreja. Eram momentos sagrados e dedicados à reza do terço e comunhão.  Nunca esquecia uma flor pra Nossa Senhora.

Todos se conheciam na cidade e logo perceberam que a moça não era mais a mesma.  Antes, de sorriso gratuito e sempre graciosa com os cabelos cacheados e amarrados com fitas de cetim coloridas, encismara-se de vez.  Até se afastou dos poucos amigos que tinha.  A devoção e o tempo que ficava ajoelhada no confessionário contando pecados só aumentavam.

O padre não tinha essa paciência com os demais cristãos.  Cinco minutos bastavam para contar os pecados, rezar o ato de constrição e ouvir a penitência equivalente ao tamanho do pecado.

Após a confissão, Zezinha ajoelhava-se aos pés de Nossa Senhora, terço nas mãos e se punha a rezar.  Só ia embora quando o sacristão apagava as luzes e fechava as portas.

As investigações policiais duraram poucos meses.  Bispos vieram e se foram.  A falta de recursos e nenhuma prova concreta fizeram o delegado encerrar o caso. 

A igreja foi fechada e o povo ansioso aguardava a chegada do novo pároco. 

 Zezinha não saía mais de casa, comia feito um passarinho, falava pouquíssimo e quando falava, mal dava pra entender.  Exames médicos não acusavam doença alguma.  Os pais já não sabiam mais o que fazer.  Só restava orar e orar.

E, lá fora, os boatos corriam soltos: “A pobre moça apaixonou-se pelo padre.  Ela sofre de amor e pra isso não tem remédio.  Pobrezinha!  Só pode ser isso”.

Hoje Curió amanheceu com chuva fina e vento fresco.

Um punhado de gente triste carrega um caixão branco.

Zezinha parou de sofrer.

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