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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. - Ana Catarina Sant’Anna Maués

 


Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

Ana Catarina Sant’Anna Maués

 

Ao pé de uma serra inóspita, existia uma vila humilde, sem progresso, sem expressão e atrativos turísticos e com pessoas sem ambição, aí mesmo é que o local estagnou. Tinha como único comércio apenas um barracão, onde se podia encontrar poucas mercadorias para venda, além disso, uma praça sem monumentos, desprovida de jardim, bancos ou quiosques, ali próximo uma capela e um único prédio, bem desgastado, que servia à prefeitura.

     Foi neste lugar que certo dia apareceu, vindo tomar posse da igrejinha, um certo padre Estevão. Homem alto, robusto, barriga que lhe escondia o ventre, de feição áspera e ar sisudo, muito por conta da longa barba que exibia e tomava conta de toda a face.

     As celebrações litúrgicas realizadas pelo padre eram inusitadas, bem diferentes das usuais e as missas em nada se assemelhavam às tradicionais.  Padre Estevão era reservado, de poucas falas, difícil vê-lo circulando em frente ao que todos chamavam santuário, mas podia ser encontrado todas as tardes na sala improvisada como sacristia, esperando os fiéis para o sacramento da confissão.   Esta obrigatoriedade foi imposta por ele como primeiro ato de sua gestão.  Instituiu que os habitantes viessem confessar-se pelo menos uma vez por semana e como não eram muitos o controle ficava fácil, deixando todos sempre em estado de graça, dizia repetidamente o padre, que não deixava escapar nenhum paroquiano. Possuía uma lista com o nome de todos, lista que fez logo no primeiro dia que chegou e controlava com rigor. Quando alguém deixava de vir confessar ele logo aparecia na casa do fiel e lá mesmo o escutava dando penitência.

     Isso, com o tempo, passou a incomodar, por demais, o prefeito que tinha lá as suas mazelas com superfaturamento das nenhuma obras, quando recebia as verbas do Estado e gastava bem longe dali em suas mansões no exterior. Foi então o primeiro a se rebelar, não aceitando mais a confissão como cabresto.

     O padre passou então a ser alvo da inquietação do prefeito que não queria ser descoberto em falcatruas, pois sua imagem de homem ilibado era mantida a todo custo e vai que o padre, após uma confissão por parte dessa autoridade, dá com a língua nos dentes. Foi então que resolveu pesquisar, mesmo que a distância e sem recursos de internet, pois a vila não tinha, usando cartas, a vida do tal padre, tentando encontrar algo nefasto para tê-lo nas mãos, caso se visse obrigado a confessar algo que expressasse a face encardida que disfarçava com ações assistencialistas aos nascidos na vila.  

     Seu intento alcançou êxito quando recebeu uma correspondência da Ordem religiosa, à qual padre Estevão dizia pertencer. Foi uma carta esclarecedora, nela dizia que um outro padre Estevão, jovem, recém ordenado, havia sido transferido a outro local, ficando ainda por tempo indeterminado, alguém para administrar a capela da vila.

     O prefeito ficou por demais encafifado com o impostor. Quem seria aquele falso padre que se fazia passar pelo verdadeiro Estevão? Qual a verdadeira razão dele impor confissão semanal à população?   O que realmente estaria por trás desta ação do falso sacerdote? Algo muito suspeito pairava naquela situação. Foi aí que ele teve a ideia de entrar no alojamento que servia de quarto para o padre e vasculhar os pertences enquanto ele estava ocupado, trabalhando a cabeça das pessoas em confissão lá na capelinha.

     Iniciou-se no alojamento um verdadeiro vendaval, o prefeito não era nada cuidadoso e com pressa remetia as poucas coisas que encontrava, deixando tudo fora do lugar. Nesta busca não encontrou nada que desabonasse o até então ilibado padre. Resolveu confessar-se nesta mesma hora e pôr em pratos limpos toda aquela situação. Foi até a capela e esperou impaciente o momento de falar.

     Chegando perto do padre, revelou que sabia da falsidade ideológica que estava vivendo. Estevão empalideceu, sua face carrancuda se fez transparecer em face juvenil, igual criança pega em travessura e gelado como mármore, sem rodeios, revelou que estava ali por causa da jazida de ouro da qual era dono por herança e haviam sido roubadas as pepitas que conseguiu, em muitas garimpadas com esforço sobre-humano, num trabalho árduo e solitário. Tinha como plano fazer o próprio larápio confessar e fazê-lo devolver as pedras, daí inventou esse disfarce quando soube por parentes distantes que o novo padre não viria mais ocupar a capelinha.

     O prefeito, diante dessa confissão, arregalou os olhos e lembrou que tempos atrás, quando saiu a caçar pela mata, encontrou um saco com cinco pepitas de ouro junto a um córrego, parecendo que alguém havia ido banhar-se e ali esqueceu. Avarento que era, percebeu logo um caminho para mais rico ficar. Ofereceu parceria na exploração da jazida em troca de não revelar a verdadeira identidade de Estevão. O falso sacerdote não teve como driblar a proposta e aceitou de pronto ou isso ou a prisão.

     Logo no outro dia, o prefeito foi com Estevão, que se chamava na verdade Adamastor e chegaram cedo na mina. Observou o local e viu que ela era pequena e rapidinho poderia explorá-la com baixo investimento, o que lhe fez de pronto ter outra ideia. Muito egoísta, ofereceu comprar a parte de Adamastor e não revelar a falsidade ideológica do mesmo. Adamastor foi chantageado e aceitou a oferta, tentou convencer-se de não ter mesmo grandes ambições.

     Adamastor pediu que, até que o pagamento da compra da mina fosse concluído, ele pudesse ficar morando no barracão perto dela, uma vez que não poderia mais frequentar o vilarejo. Neste ínterim raspou a barba e passado um tempo já estava bem magro, em nada se parecendo com o personagem que representou.

     Na vila, todos sentiram falta do padre, mas não sabendo o porquê do sumiço, conformaram -se, e a vila ficou novamente sem sacerdote.

     Assim que Adamastor obteve seu novo visual, providenciou na vila um quartinho para alugar, e sem ser reconhecido, todas as manhãs ia garimpar na mina escondido do prefeito, metendo a mão na massa ficando com todas as pepitas que encontrava.

     Enfim, chegou o dia do pagamento total da parte de Adamastor pelo prefeito.

     Adamastor nada tolo, estava bem mais rico do que o prefeito supunha. Rapidinho virou homem rico e agora sim deixou a vila e foi para a cidade grande.

     O prefeito, ficou com sua ganância lá no vilarejo e até hoje se mantém no poder da prefeitura, fazendo o que se acostumou a fazer pelo lugar, nada.

 

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