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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

FÉ DE MAIS OU INGENUIDADE? - Helio Salema

 


FÉ DE MAIS OU INGENUIDADE?

Helio Salema

 

No início dos anos 50 na pequena cidade de Santa Felicidade chegou o novo padre para o lugar do padre Honório, falecido recentemente.

No primeiro contato com os fiéis ele demonstrou ser muito simpático e não tão rigoroso quanto o seu antecessor. Falava com muita naturalidade sobre o seu passado de dificuldades, a sua fé em Deus e no futuro da humanidade.

Além de padre, era também um amigo para todas as horas e situações. Várias vezes foi chamado para resolver briga de vizinhos ou até mesmo de família. Sua calma, voz suave e paciência para ouvir, muito contribuíram para resolver os conflitos. Assim foi conseguindo a confiança total das pessoas que o procuravam, em momentos difíceis ou até mesmo de desespero.

Aquela situação de salvador de todos o fez, aos poucos, mudar sutilmente seu comportamento. Passou a exigir confissões dos fiéis pelo menos uma vez por semana.

Com bastante habilidade conseguiu estimular até confissões íntimas de alguns.

Algumas pessoas não tiveram nenhuma dificuldade em relatar coisas, que até aquele momento, jamais haviam pensado em revelar. Outras com muito custo e graças à insistência do padre se expuseram a tal ponto de mencionar fatos que antes não tinham sequer coragem de pensar.

Para aquelas que não aceitavam tal exigência, por não terem facilidade em se expressar ou por não verem necessidade, ele alegava ser necessário, sim, para o desenvolvimento espiritual de cada um ou ficaria esse sofrendo junto aos maus espíritos.

Severino que era frequentador antigo e contumaz de igreja, principalmente, depois de ficar viúvo, chegou a duvidar da sinceridade das palavras do novo sacerdote. Mais desconfiado ficou, ao passar certa noite e ver uma senhora saindo apressada da porta lateral da igreja. Porta esta que dava acesso aos aposentos do padre. Assim que ela virou a esquina, Severino correu na esperança de alcançá-la. Quando chegou na esquina viu a rua totalmente deserta, todas as casas às escuras.  Ficou por alguns segundos pensando se era uma pessoa, apenas um vulto, assombração ou alma de outro mundo. Desesperançoso e ofegante voltou para casa. Assim que entrou ajoelhou-se e rezou por um longo tempo.

Por vários dias ficou tentando lembrar-se de detalhes. Altura, tipo de roupas, mas nada de especial que pudesse ajudar na identificação.  Até mesmo a sombrinha era semelhante às outras que ele via na rua. Resolveu então caminhar à noite passando várias vezes pelo mesmo local. Cada dia mais desanimado ficava.

 

Com a chegada da Semana Santa várias famílias retornaram a Santa Felicidade, aproveitando o feriado para rever os familiares e amigos. Foram dias de muita alegria para os moradores daquela pequena e sossegada cidade. Severino pôde rever amigos, saber das novidades da capital e também sentir a falta de outros que desta vez não vieram.

Mas teve a satisfação da presença de Agostinho, sobrinho de sua falecida esposa. Embora estivesse ausente de sua cidade natal por quase duas décadas, o encontro dos dois foi muito festivo. Severino lembrou-se da companhia do Agostinho nas pescarias e este, das aulas do tio nos jogos de dama. A cada momento que eles se recordavam de algum momento especial, riram como duas crianças em dia de Natal. Agostinho, porém, interrompeu a euforia quando perguntou sobre o padre:

— Tio quem é esse padre novato que está querendo “bagunçar” com a fé e a cabeça das pessoas?

— Ehh! Também a minha cabeça anda “sacolejando”. Não sei onde isso vai parar.

— Ainda bem que eu não frequento igreja, mas acho que as pessoas precisam ser respeitadas.

Subitamente, chegam até eles outros amigos do Agostinho. Após um pouco de prosa, eles se despedem de Severino e seguem para se reunirem com outros amigos de infância.

Mesmo a contragosto, Severino decidiu fazer uma comunhão semanal. Aproveitava também para uma longa conversa com o padre, tentar assim ganhar a confiança dele e quem sabe em algum momento ter uma revelação.

Ao contrário, foi Severino quem acabou desabafando. Num momento de fraqueza revelou um segredo antigo. Uma tentativa de estrupo. Não concretizado por interferência de familiares da vítima. Para evitar ser agredido teve que sair, imediatamente, daquela localidade e nunca mais voltar.

Na semana seguinte, durante um sermão, o padre falou do terrível pecado do estrupo. Mesmo quando impedido. O fato de haver a insana intenção já era objeto de condenação sumária.

Afirmou que alguém ali presente havia sido autor, em outros tempos, o que não a exime da culpa.

Severino sentiu a punhalada, forte e certeira, no seu coração. Minutos depois saia arrasado e se arrastando, moralmente.

No dia seguinte pela manhã, várias viaturas da polícia da capital entravam em Santa Felicidade.

Alvoroço na praça, no armazém, nos botecos. Toda a cidade assustada com aquela cena jamais vista. Maior surpresa quando estacionaram em frente à igreja.

Os policiais aguardavam a abertura da porta. Minutos passaram e as especulações iam aumentando. Quando vários policiais saíram correndo para o lado da igreja onde o padre vestido como um cidadão comum tentava escapar em direção à mata. Parecia cena de filme.

Não conseguiu ir muito longe. Apanhado, não resistiu. Entrou na viatura de cabeça baixa, sem olhar para os lados.

Com a chegada do Sr. Prefeito, o oficial de justiça o comunicou que alguém na capital havia pedido investigação sobre o padre. Com um retrato tirado quando o padre fazia um batizado foi possível reconhecê-lo. Já foi preso, duas vezes, por aplicar golpes em comerciantes e tentativa frustrada de estrupo.

 

 

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