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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

PADRE MIGUEL - ADELAIDE DITTMERS

 


Padre Miguel

Adelaide Dittmers

 

A pequena igreja da cidadezinha estava lotada. As beatas com véus, que lhes cobriam os cabelos, mas não impediam que a maledicência escorresse por suas línguas, tagarelavam em voz baixa, com olhos argutos, que voavam pelas pessoas como águias em busca da presa.

Acompanhado por dois coroinhas, o sacerdote subiu ao altar.  Era um homem de uns quarenta anos, bem-apessoado e com ar humilde.

As luzes acenderam-se iluminando os anjos e santos barrocos distribuídos por pequenos altares e o altar, onde reinava a padroeira da cidade.

O silêncio apagou as conversas.  A expectativa era sentida em cada rosto.  Naquele domingo, um novo padre assumiria a paróquia.

As pessoas levantaram-se para recebê-lo.  As beatas cochichavam agitadas pela beleza do padre.  A curiosidade varria o lugar.  Como seria o novo padre? O anterior era muito severo.  O que esperar deste?

Com um sorriso simpático e um gesto, ele indicou para todos sentarem e apresentou-se, dizendo que estava muito feliz de ser o condutor espiritual da cidade.

As orações, os hinos e os rituais da missa sucederam-se suavemente.  No momento do sermão, ele subiu ao púlpito e encantou os fiéis com uma prédica envolvente, em que palavras de conforto e exortação ao amor e respeito ao próximo foram derramadas pela igreja.

Terminada a missa, os frequentadores saíram para a praça e formaram pequenos grupos, comentando o que acharam do novo pároco. Os elogios daquela boa gente elevaram-se pelo ar fresco da manhã.

As beatas combinaram que precisavam se confessar para assim se tornarem mais próximas dele.  Elas consideravam os sacerdotes seres quase divinos, mas dentro delas algo mais terreno as sacudia.

O tempo foi passando e o padre Miguel foi conquistando o coração e a confiança de todos. Era amável, compreensivo e tolerante.  Nos sermões sempre exaltava a importância de os fiéis confessarem todas as semanas para aliviarem suas almas dos desgostos, problemas e remorsos, que a vida trazia.

O povo simples e crédulo cumpria esse pedido com devoção.  Abriam o coração, confessando os medos, os males feitos, as desavenças e os desafetos, na esperança de serem perdoados por Deus.

Padre Miguel tornou-se muito respeitado e ninguém mais movia um dedo sem consultá-lo. Muito inteligente, ele absorvia todas as informações.  Assim, o manto tênue do homem perfeito cobriu a cidade com seu poder de convicção.  De maneira sutil, levava os mais poderosos a confessar suas desonestidades, convencendo-os de que o perdão divino viria se fossem generosos com a igreja.  Aos mais pobres dizia que se dessem o dízimo, milagres aconteceriam.

Em uma tarde de outono, de ar fresco e vento suave, que levantava as folhas secas, que caiam mansamente das árvores, um trem apitou na curva da via férrea aproximando-se da velha estação, bufando seu cansaço e fazendo as rodas gemerem ao estacarem nos trilhos.

Vários passageiros desceram e, dentre eles, um casal de cabelos grisalhos, puxando pesadas malas. O homem olhou em volta, como que tentando reconhecer o lugar.  Quase nada mudara desde que ele fora embora, aos dezenove anos, para ir morar na metrópole em busca de maiores oportunidades. 

— Não é simpática esta estação? Você vai gostar daqui.  É um lugar calmo e o povo é pacífico.  Disse com a voz embargada pela emoção.

Estava voltando depois de tantos anos para desfrutar da aposentadoria no lugar tranquilo em que nascera. 

Sairam da estação e Luisa observava tudo com curiosidade.  As ruas estreitas de paralelepípedos, onde as casas desfilavam com pequenos jardins. Outras construídas diretamente junto às calçadas, em que mulheres se debruçavam nas janelas para ver a vida passar.

Arrastando a bagagem, chegaram à uma velha casa com um grande jardim, onde reinavam jabuticabeiras, limoeiros, mamoeiros e outras tantas árvores, que dançavam suavemente ao sabor da aragem.

Entraram, e velhas mobílias os esperavam.  Abriram as janelas para deixar a luz do sol entrar. Cada canto trazia uma lembrança a Tomé.  A casa estava fechada há muito tempo, precisaria de algumas reformas, mas era confortável e ampla. E voltar para ela, era voltar ao antigo ninho.

Aos poucos foram se habituando à nova vida.  Tomé aproximou-se de velhos amigos e Luisa foi fazendo novas amizades.  Católicos fervorosos começaram a frequentar a igreja.  Aos domingos iam à missa, e como todos, foram capturados pela doçura do carismático padre.  Apesar de suas profissões terem exigido muito deles, ele fora um exímio investigador de polícia e ela, professora, sempre gostaram de participar das tarefas paroquiais.  Ensinavam catecismo às crianças, promoviam encontro de casais e ajudavam em outras programações da igreja.

Certo dia, ao entrar na sacristia, encontrou uma mulher de vestes simples, que se dirigiu a ele:

— Sr. Tomé, vim entregar o dízimo, mas o padre não está.  Posso entregar para o senhor?

Dízimo? Ele pensou, não sabia que o dízimo era cobrado.   E, quando viu a quantia, surpreendeu-se ainda mais.  Era muito dinheiro para aquela pobre mulher.

— Não é muito o que a senhora está oferecendo?  Perguntou.

— Preciso de um milagre e o padre disse que se eu desse o dízimo, o Senhor me ajudaria.

Aquilo não lhe saiu da cabeça e seu instinto de investigador acendeu-se como uma labareda dentro de sua cabeça. Começou então a observar com mais atenção o que acontecia na sacristia.  Passava os olhos pela escrivaninha de Miguel e notou também o movimento de beatas, que entravam e saiam, todas arrumadas como se fossem a um encontro.  Uma tarde, viu um cheque meio escondido na escrivaninha e com cautela verificou a quantia e de quem era a assinatura.  Arregalou os olhos: era uma alta soma de dinheiro de um rico fazendeiro da região.

Desses dias em diante, quando o sacerdote estava ausente remexia nos papéis da sacristia e revolvia gavetas à procura de dinheiro.  Descobriu que altas somas eram dadas regularmente à paróquia, que não apareciam na contabilidade e nem eram empregadas para consertos ou obras assistenciais.

Com habilidade começou a investigar os documentos do padre e descobriu que eram falsos.

Como todos tinham sido enganados? Como tudo isso fora possível? Resolveu se comunicar com o bispo da arquidiocese mais próxima e relatar o que estava acontecendo.  A notícia caiu como um raio no bispado, porque informaram a Tomé, que tinham enviado um sacerdote para aquela paróquia.  Padre João tinha partido para o novo ofício há mais de dezoito meses.  A situação era mais grave do que Tomé supusera.  O que poderia ter acontecido com o padre, que não chegara ao seu destino.

Uma detalhada investigação os levou ao trajeto do padre João e descobriram que ele desapareceu durante o caminho.  O delegado de uma das cidades por onde ele passara informou que tempos atrás, foi encontrado o corpo de um homem boiando no rio, com uma facada na barriga.  Estava quase nu e até aquele momento não tinham conseguido identificá-lo.  Fotografias do cadáver foram enviadas para os investigadores, que constataram que era o pobre padre João.  Um arrepio passou pelo corpo de todos.  Seria Miguel o assassino? Ao juntar as peças do acontecido, cada vez mais a suposição os levava para o falso padre.

A polícia invadiu a igreja e prendeu Miguel com a acusação de ter usado falsa identidade, tirado grandes quantias de dinheiro dos fiéis e o por ser o principal suspeito do assassinato do verdadeiro padre.

A notícia da prisão do falso padre tumultuou a cidade. O choque paralisou os habitantes e alastrou-se como pólvora.  A revolta foi tão grande, que quiseram invadir a delegacia em que o homem estava preso provisoriamente.  Com muito custo, os policiais conseguiram dominar a situação, dispersando a pequena multidão desvairada.

As beatas foram para a igreja rezar e pedir perdão a Deus pelos pecados e por terem sido enganadas pelo belo padre.  Choravam envergonhadas e abriram a boca e esbulharam os olhos quando uma delas confessou, tremendo dos pés à cabeça, que estava grávida de Miguel. Um ¨Deus nos acuda¨ percorreu o lugar.

Pelos interrogatórios e investigações descobriram a verdadeira identidade de Miguel.  Era procurado há muito tempo por golpes e roubos em que usava armas. A única coisa que não conseguiram, foi arrancar dele a confissão de assassinato do verdadeiro padre. Era esperto e liso como sabão.

Tomé foi homenageado por ter livrado a população daquele bandido e tornou-se a pessoa mais respeitada da cidade.

Em uma manhã de sol e céu azul, sentou-se no terraço da casa em companhia de Luisa, admirando o jardim, com suas flores e árvores carregadas de frutas e onde o silêncio só era quebrado pelo cantar dos pássaros, disse sorrindo:

— E eu que vim para cá gozar minha aposentadoria e a tranquilidade da minha cidade...

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