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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

FÉ E DESCONFIANÇA - Helio Salema

 


FÉ E DESCONFIANÇA

FÉ em DEUS, desconfiança das pessoas

Helio F. Salema                   

 

   CAPÍTULO UM

 

No início do outono, às tardes, a temperatura era mais agradável. Senhoras colocavam cadeiras nas estreitas calçadas, para “pegar uma fresca”. As pessoas eram forçadas a passar bem devagar e assim não deixavam de cumprimentar as moradoras. Algumas até paravam e entrosavam uma prosa. Aquelas que não queriam conversa passavam pelo meio da rua, apressadas. Era assim a vida naquela pequena cidade.

Como um trovão que chega sem o menor sinal de chuva, carros da polícia passavam pelas ruas da tranquila cidade de Santa Felicidade assustando os moradores. Ninguém conseguia imaginar a razão de tantas viaturas.

Nem as mais afinadas fofoqueiras suspeitavam do motivo. Alguns mais afoitos seguiram na mesma direção para serem os primeiros a saberem das últimas.

O comboio parou em frente à igreja. Os policiais desceram e se posicionaram junto à porta, como se esperassem alguém lá de dentro sair. Minutos passaram e mais pessoas foram se concentrando na praça em frente à igreja.

Vários policiais se dirigiram apressadamente para o lado da igreja, onde o padre, por uma porta, saía vestido com roupas de cidadão comum. Ao ver os policiais correu em direção à mata. Foi capturado minutos depois. Sem demonstrar qualquer sinal de reação, caminhou lentamente de cabeça baixa e entrou na viatura.

Nesse momento chegou ao local o Sr. Prefeito. O oficial de justiça comunicou-lhe que o falso padre era um prisioneiro. Também lhe foi dito que uma pessoa, na capital, havia pedido investigação sobre o padre. Ao apresentar a foto de um batizado, imediatamente, foi reconhecido o fugitivo. Condenado como golpista e por tentativa frustrada de estupro.

 

                      CAPÍTULO DOIS

 

O falso padre chegou à cidade poucos dias após o falecimento do padre Hilário. Foi direto à igreja e se apresentou como o substituto. Por ter estudado em colégio religioso, não teve dificuldades de adaptação. Bom de conversa foi logo conquistando a confiança das pessoas mais ligadas à igreja.

Falava de sua infância de menino pobre, sem presentes, sem roupas novas, só as usadas quando alguém de bom coração doava. Não passou fome, mas muitas vezes um pequeno pão era dividido para quatro.

Tinha imensa e inabalável fé em Deus, e até confessou ser devoto de São Sebastião, padroeiro da cidade. O que o teria deixado muito feliz ao saber que viria, justamente para esta paróquia. Preocupado com o futuro da humanidade defendia a família e os bons costumes.

Sendo um bom ouvinte e atento a todos que o procuravam, não teve dificuldades em obter a confiança dos fiéis. Além de padre, também era um amigo para todas as horas e situações. Várias vezes foi chamado para resolver briga de vizinhos ou até mesmo de família.

Sua calma, voz suave e paciência para ouvir, muito contribuíram para resolver os conflitos. Assim foi conseguindo a confiança total das pessoas que o procuravam, em momentos difíceis ou de desespero.

Aquela situação de salvador de todos o fez, aos poucos, mudar sutilmente seu comportamento.

Ao perceber que era respeitado e admirado, passou a se interessar em saber tudo sobre todos. Mas percebeu que eram poucos os que se confessavam com frequência. Então passou a exigir de cada frequentador a confissão pelo menos uma vez por semana.

Conseguiu aumentar bastante a participação dos fiéis na confissão semanal. Algumas pessoas não tiveram dificuldades em relatar coisas que até aquele momento, jamais haviam pensado em revelar. Outras com muito custo, e graças à insistência do padre, se expuseram a tal ponto de mencionar fatos que antes não tinham sequer coragem de pensar. E assim com bastante habilidade conseguiu estimular até confissões íntimas.

Para aquelas que não aceitavam tal exigência, por não terem facilidade em se expressar ou por não verem necessidade, ele alegava ser necessário, sim, para o desenvolvimento espiritual de cada um ou ficaria esse sofrendo junto aos maus espíritos.

 

                CAPÍTULO TRÊS


No entanto, havia um grupo que resistia a cumprir esta exigência.

Entre eles estava Severino, que sempre participou das atividades desde sua adolescência. Depois de casado, junto com a esposa, que também era católica fervorosa. Após o falecimento da esposa, ele encontrou na igreja e nos fiéis, um apoio que lhe valeu muito.

Desde a chegada do novo padre ele sempre manteve certa distância, pois o mesmo não lhe parecia confiável.

Mais preocupado ficou quando numa noite ao passar próximo à igreja viu uma senhora saindo apressada da porta lateral da igreja, justamente a que dava acesso aos aposentos do padre. Assim que ela virou a esquina, Severino correu para tentar alcançá-la. Mas ao chegar à esquina viu a rua totalmente deserta. Caminhou até o final e constatou que todas as casas estavam às escuras reinando absoluto silêncio. Ficou por alguns segundos pensando se era uma pessoa, apenas um vulto, assombração ou alma de outro mundo.

Desesperançoso e ofegante voltou para casa. Assim que entrou, ajoelhou-se e rezou por um longo tempo. Aquela cena não saía da sua cabeça, cada dia que passava, mais intrigado ficava. Por vários dias ficou tentando lembrar-se de detalhes. Altura, tipo de roupa, mas nada de especial que pudesse ajudar na identificação. Até mesmo a sombrinha era semelhante às outras que ele via na rua.

Resolveu então caminhar à noite passando várias vezes pelo mesmo local e em horários diferentes. Os dias foram passando e o desânimo aumentando.


           CAPÍTULO QUATRO

 

Com a chegada da Semana Santa várias famílias vieram à Santa Felicidade aproveitando o feriado para rever os familiares e amigos. Foram dias de muita alegria para os moradores daquela pequena e sossegada cidade.

Severino pôde rever amigos, saber das novidades da capital e também sentir a falta de outros que desta vez não vieram.

Foi grande a satisfação em rever Agostinho, sobrinho de sua falecida esposa, há muito tempo residindo na capital. Lembranças do tempo que este era seu companheiro nas pescarias, época que pescar era a principal distração de ambos.

Também Agostinho disse que sentia saudades de quando Severino lhe ensinava técnicas importantes para o jogo de damas, geralmente após o jantar. A cada momento que eles se recordavam de algum momento especial, riram como duas crianças no dia de Natal.

Agostinho, porém, interrompeu a euforia quando perguntou sobre o padre:

— Tio quem é esse padre novato que está querendo “bagunçar” com a fé e a cabeça das pessoas?

— Ehh!  Também a minha cabeça anda “sacolejando”. Não sei onde isso vai parar.

— Ainda bem que eu não frequento igreja, mas acho que as pessoas precisam ser respeitadas.

Subitamente, chegam até eles outros amigos do Agostinho.

Após um pouco de prosa, eles se despediram de Severino e seguiram para se reunirem com outros amigos de infância.

 

    CAPÍTULO CINCO

 

Passadas algumas semanas, Severino resolveu voltar a frequentar a igreja. Mesmo a contragosto decidiu fazer a comunhão semanal. Aproveitava também para numa longa conversa com o padre, talvez ganhar a confiança dele, e quem sabe, em algum momento, ter uma revelação. Eram assuntos dos mais diversos. Assim eles foram trocando informações pessoais.

Foi numa dessas confabulações, que Severino distraidamente relatou um fato guardado em segredo por muitos anos. Uma tentativa de estupro não concretizado. Impedido por familiares da vítima. Para evitar ser agredido teve que sair, imediatamente, daquela localidade, às pressas, e nunca mais voltar.

Na primeira missa, após a confissão de Severino, com a igreja lotada de fieis, durante o sermão, o padre falou do terrível pecado do estupro. Mesmo sendo impedido. O fato de haver a insana intenção já era objeto de condenação sumária. Prosseguiu dizendo que alguém ali presente havia sido autor, em outros tempos, o que não o eximia da culpa.

Severino sentiu a punhalada, forte e certeira, no seu coração. Minutos depois saía arrasado e se arrastando, moralmente.

 

             CAPÍTULO SEIS

 

Após a saída dos policiais, os curiosos se aproximaram do Sr. Prefeito para ouvir o que ele relatava aos seus amigos mais chegados. Severino que a tudo observava de longe, também se aproximou.

Ouviu atentamente as perguntas dos mais afoitos e toda a explicação do Sr. Prefeito, principalmente quando disse que o falso padre fugiu da cadeia e que havia sido condenado por práticas de golpes e tentativa de estupro.

Severino ergue a cabeça, fixa os olhos na torre da igreja e quase sussurrando:

— A JUSTIÇA DIVINA tarda, mas não falha.

 

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