A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

terça-feira, 10 de novembro de 2020

O VIGÁRIO E O VIGARISTA - Leon Vagliengo

 




O VIGÁRIO E O VIGARISTA

Leon Vagliengo

 

O Padre Anselmo era o vigário da única igreja existente na encantadora e plácida cidade de Lindo Vale, situada numa região privilegiada pela Natureza, com topografia generosa para a existência daquela vegetação verdejante, viçosa e variada, alimentada pelas águas de um riacho que corria por entre belos e poéticos cenários, tudo compondo o quadro que justificava o nome da cidade.

Essas virtudes naturais haviam contribuído em muito para atrair uma significativa população de pessoas de muito boa condição financeira, que convivia com a comunidade formada pelos primeiros habitantes, geralmente bem menos favorecidos nesse aspecto.

Homem tranquilo e bonachão, de cabelos já grisalhos, sempre ostentando um sorriso amigo no rosto redondo, o Padre Anselmo Calamari tinha fé inabalável em suas convicções religiosas e assim conquistara, ao longo do tempo, a total confiança dos fiéis de sua igreja, que aprendiam com os seus sábios sermões boas regras para a vida e os caminhos para o Céu.

De hábitos rotineiros, após cumprir todas as suas obrigações diárias, à tardinha sentava-se na praça ao lado da igreja para ler as orações do breviário e deixar-se um pouco ao descanso antes do jantar.

Foi numa tarde de segunda-feira, quando já havia guardado o breviário após as orações do dia, que aquele moço se aproximou para conversar. Foi recebido com um largo sorriso de satisfação pelo Padre Anselmo, que de pronto o reconheceu.

Como vai, Belmiro? Há quanto tempo não o vejo! Por onde você anda?

A bênção, Padre Anselmo, respondeu Belmiro, também muito feliz em rever o amigo.

Eu consegui um bom emprego na Capital. Nestas férias voltei para ver os meus pais e a minha terrinha, depois de quase seis anos. Estava com muitas saudades daqui e de todos.

Enquanto conversavam, Padre Anselmo recordava-se do menino Belmiro, sempre muito comunicativo e muito esperto, que fora coroinha em sua paróquia, ajudando-o na celebração das missas. Agora ali estava ao seu lado um homem feito, embora ainda muito jovem aos seus vinte e poucos anos, que continuava bem falante a lhe contar, com entusiasmo, das boas experiências que vivenciara na Capital.

E assim foi aquele encontro, que se repetiu nas tardes seguintes, em que Belmiro contou ao Padre Anselmo que trabalhava no setor de compras de uma pequena indústria, e era responsável pelo suprimento dos materiais utilizados pelo setor de produção da empresa.

O que Belmiro não revelou ao seu amigo Padre Anselmo é que, aproveitando-se de sua função de comprador, já se acostumara a beneficiar-se de comissões irregulares que exigia dos fornecedores para realizar as compras. Evidentemente, essas comissões eram geradas por uma desonesta aceitação de acréscimo nos preços dos fornecedores, onerando os custos de seu empregador, o que não caberia nas conversas com uma pessoa tão correta como o Padre Anselmo. Se lhe contasse seria como uma confissão em que a própria decepção do amigo seria certamente uma insuportável penitência.

Por sua vez, nessas animadas conversas o Padre Anselmo foi contando a Belmiro, entre as historietas da vida da cidade nos últimos tempos, também as novidades da Paróquia, mostrando especialmente o seu entusiasmo com a campanha de arrecadação de recursos para as obras de caridade, que estava tendo bastante sucesso, especialmente em razão da colaboração generosa dos fiéis mais abastados.

Esses comentários do Padre Anselmo sobre a Campanha e alguns detalhes sobre a sua gestão, discretamente obtidos no transcorrer da conversa por Belmiro, acostumado a arquitetar artimanhas para conseguir dinheiro fácil, despertaram nele uma grande tentação, que já nasceu prejudicada pela barreira moral muito forte a transpor, representada pela figura bondosa e correta do Padre Anselmo, seu amigo.

Mas esse bloqueio não parou por aí.

O dilema que se instalou em sua cabeça fez desencadear a lembrança de tudo o que Belmiro aprendera com seus pais, que sempre o orientaram sobre o que era certo e errado.

Todas aquelas recomendações vinham agora à sua mente, provocando um grande conflito de consciência, especialmente quando voltava para casa e se defrontava com eles.

O carinho e a austeridade de seus pais, gente simples, mas muito correta, se transformavam em verdadeira admiração que demonstravam por sua realização profissional. Isso contribuía para martelar a sua consciência, fazendo com que se lembrasse de sua conduta irregular no desempenho de seu trabalho.

As conversas na praça como o padre Anselmo, no entanto, continuavam, e na quinta-feira já estavam bem animadas quando aquela belíssima moça dirigiu-se com seu melhor sorriso ao padre Anselmo, beijando-lhe a mão:

- A bênção, tio Anselmo.

- Deus a abençoe, querida.

Apresentada pelo padre Anselmo, aquela moça mestiça de olhos amendoados e cabelos negros era Ana Maria Calamari Yasuda, filha da única irmã do padre, que era casada com um japonês.

Nada além do nome dela foi registrado por Belmiro naquele momento, quase imobilizado pelo encantamento que sentiu ao ver Ana Maria, pela beleza de seu rosto moreno e de seu corpo delicado, envolto num vestido jovial, recatado, e pela graciosidade dos modos daquela moça. Ela também não ficou indiferente ao ver aquele jovem e atlético rapaz, de rosto másculo e lindos olhos que pareciam paralisados sobre ela.

Ao perceber o que não declaradamente acontecia, o padre Anselmo ficou muito feliz em seu íntimo, pois sempre tivera especial carinho pelos dois. Mas nada disse, deixou à vontade divina do Criador, embora não sem torcer pelo bom desfecho.

Em pouco tempo aquele primeiro encontro entre Belmiro e Ana Maria transformou-se em namoro apaixonado, que permaneceria intenso mesmo após o enlace matrimonial.

Esta nova situação, ainda naqueles primeiros dias do namoro, foi decisiva para Belmiro. Apaixonado pela moça e novamente entre pessoas honestas, a quem não queria decepcionar, sentiu-se muito forte para resistir às ocasiões que faziam dele um vigarista. Procurou um novo emprego e nunca mais pensou em praticar desonestidades.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.

A ÚLTIMA CARTA - Helio Fernando Salema

  A ÚLTIMA CARTA Helio Fernando Salema     Ainda sentada em frente ao gerente do Banco, Adélia viu, no seu celular, a mensagem de D. Mercede...