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quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Gente que a gente jamais esquece - Hirtis Lazarin

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Gente  que  a  gente jamais  esquece
Hirtis Lazarin


          Nasci  no primeiro dia de janeiro.  O que deveria ser um presente aos meus pais, tornou-se um pesadelo.

          Jovens demais.  Não fui planejada nem desejada.  Eles não queriam criar raízes.  Queriam o mundo.

          De posse da cidadania italiana, abandonaram-me como se abandona  uma rua ao virar a esquina.  E eu só tinha dois anos de idade.

          Atravessaram o Atlântico e, de mochila nas costas, nunca mais retornaram.  No início, chegaram alguns postais que registravam o paradeiro dos dois.  Foram rareando até que há três anos não mais recebemos notícias.

          Meus "nonos" Virgínia e Antônio acolheram-me de alma e braços abertos.  E foi debaixo dessa árvore verdejante e frondosa que eu cresci.

            Suas flores encantaram-me a vida.  Os frutos deram-me força e robustez. A sombra acolheu-me no calor e na chuva.  No tronco grosso desenhei um coração e dentro dele escrevi o nome da minha primeira paixão.

          "Nona" Virgínia não nasceu no Brasil.  Junto de mais quatro jovens fugiram da Itália escondidos no porão de um navio cargueiro.  Foi ali, misturados ao mau cheiro, ao calor sufocante e à multidão de baratas, que ela conheceu meu "nono" Antônio.   E nunca mais se  separaram.

          Foram aproveitados numa fazenda cafeeira, no interior  de São Paulo.  Do trabalho pesado na roça,  de seis, sete e até oito horas por dia, "nona" herdou um desajuste na coluna e mãos calejadas.  Mãos abençoadas que nunca deixaram de se estender a quem delas precisasse.

          Ao mesmo tempo em que ela tinha voz enérgica, segura e atitudes determinadas, era fofa e doce feito pão-de-ló saído quentinho do forno.

          Seu coração...Ah!  Seu coração foi feito de tecido "stretch".  Estica de cá pra lá...Pra direita...Pra esquerda...E  sempre cabia mais um.

          Eles tiveram cinco filhos.  Os dois mais velhos morreram ainda crianças.  Ficaram minha tia Anita, meu tio Guilherme  e mamãe, a mais nova e a mais desmiolada da família.

          Aos domingos, todos reuniam-se lá em casa.  "Nona" Virgínia era dona absoluta da cozinha.  Não permitia a entrada de ninguém.  O cardápio só era conhecido servido à mesa.  Sem pressa alguma mexia os caldeirões de ferro fundido e, lá de dentro, um cheirinho perfumado, convidativo corria a casa e tomava o rumo do mundo.

          Nós, seis netos, sentíamos prazer em espiá-la pela fresta da janela de madeira desbotada pelo sol.  Se nossa risada nos denunciava, ela saía do sério.  Abria a janela, falava  rápido, esquecendo o português e, da língua toda enrolada, saíam palavrões italianíssimos.  Gesticulava tanto e com tanta rapidez  que parecia ter não só dois,  mas três... quatro ...cinco braços.  E nós sentíamos enorme orgulho por sermos os únicos a ter uma "nona-polvo".

          Os meus "nonos",  simples e verdadeiros criaram-me para a vida, para o mundo.

          Aprendi que nunca teremos tudo que almejamos.  Nem por isso deixaremos de sonhar.  Sem sonho, a vida torna-se vazia, monótona, sem cor.

          O sonho exige-nos esforço.  O esforço conduz-nos ao prêmio.  O prêmio será do tamanho da nossa persistência.

          Na caminhada, haverá momentos em que o sentimento é de esfarrapo.  Haverá outros em que sentiremos ovacionados por súditos imaginários.

          Equilíbrio é saber lidar com a alternância da dor e do  prazer.  Valorizar demais a dor pode provocar inércia e nos abater.  Valorizar demais o prazer pode gerar orgulho e opressão aos que nos cercam.

          Autocontrole, maturidade sabedoria são os ingredientes que não podem faltar à nossa culinária diária.

          Aprendi também que a felicidade não mora em Paris, nem numa Ferrari vermelha do ano, nem numa casa de frente pro mar em Saint Tropez.

          Faz sete meses que a "nona" Virgínia mudou-se pro outro lado do mundo.  A dor do luto...Não sei descrever.  Só sei que começa no coração, sobe ao cérebro, invade a corrente sanguínea e chega à alma.  É isso...  A ausência faz-nos doer a alma.

          O arco-íris que pintava meu céu depois das tempestades se foi...É difícil?  É muito difícil...

          Hoje acordei e passei o dia todo só pensando nela.  Não consegui comer nada.    Tô trancada no meu quarto.  Tremendo de frio,  enrolada no cobertorzinho de berço bordado por ela.  Sinto o seu perfume de dama-da- noite. 

           Vou tentar dormir abraçada ao ursinho de pano que ela costurou.  Surrado,  velho, debotado pela persistência e sem um dos olhos de vidro.

          Sei que vou sonhar com algodão doce e maçã do amor.

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