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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

TENTAÇÃO - Hirtis Lazarin

 


TENTAÇÃO

Hirtis Lazarin


Duas viaturas, sirenes ligadas, estacionaram em frente à pequena igreja “Nossa Senhora das Dores”, no centro de Curió.  Quatro policiais desceram armados.  O sacristão aguardava-os na calçada, gesticulando feito doido.  Andava de um lado pro outro.  As palavras saiam enroladas, difícil entender o que estava acontecendo.

Honório trabalhava meio período num posto de combustível.  Depois do almoço, dedicava seu tempo a cuidar da igreja.  Trocava as flores murchas dos vasos, brilhava o chão de ladrilhos azul e bege, espanava o pó onde se acumulava.  Deixava tudo em ordem até às dezesseis horas.  Pontualmente, abria a porta de madeira bem pesada. O rangido das dobradiças enferrujadas era tão forte que se tornou referência de hora pra quem não tinha relógio.

O som alto e prolongado das sirenes atraiu gente de todo canto.  Crianças pararam de brincar, donas de casa abandonaram a panela de feijão no fogo, o pintor de parede caiu da escada...  Em minutos o quarteirão estava apinhado de gente.

A vida no vilarejo de Curió parecia presa a sua espantosa monotonia.  Os dias e a vida eram desenhados para seguirem sempre um roteiro definido e sem surpresas.  A quebra da rotina naquele dia e a curiosidade maior que o medo, careciam da presença de público.

Os cinco homens entraram na igreja e fecharam a porta. Tudo revirado...  Imagens de santos em pedaços atirados ao chão, flores pisoteadas, o cofre na sacristia com o dinheiro do dízimo saqueado, o altar revirado, hóstias espalhadas.  O cálice de ouro maciço usado na distribuição da comunhão jamais foi encontrado.

A porta que dava acesso aos aposentos do padre estava arrombada. Cobertas e lençóis no chão, gavetas abertas e vazias. Na parede, apenas o contorno empoeirado do espaço ocupado pelo crucifixo de bronze.   No guarda-roupa, cabides solitários.

A todas as perguntas que se fazia, a resposta era uma só:  “A igreja foi saqueada e o padre sequestrado”.

 

Faziam apenas oito meses que o padre Walter assumira a paróquia.

Homem enérgico e assertivo nos sermões, cobrava, excessivamente, as obrigações dos cristãos e todo dia repetia: “Os tementes e fiéis a Deus devem se confessar semanalmente.   Não estamos livres de cometer pecados entre uma semana e outra.  Ai daquele que morre em pecado”.

Os fiéis, gente humilde e carente de opinião, obedeciam-no religiosamente.  O medo de ir pro inferno atormentava-os desde que aprendiam a ler e estudar o catecismo.

Zezinha era a mais fervorosa de todos.  Sempre de vestido azul, nos mais diferentes tons, véu branco de renda na cabeça, caminhava todos os dias, a passos largos, em direção à igreja. Eram momentos sagrados e dedicados à reza do terço e comunhão.  Nunca esquecia uma flor pra Nossa Senhora.

Todos se conheciam na cidade e logo perceberam que a moça não era mais a mesma.  Antes, de sorriso gratuito e sempre graciosa com os cabelos cacheados e amarrados com fitas de cetim coloridas, encismara-se de vez.  Até se afastou dos poucos amigos que tinha.  A devoção e o tempo que ficava ajoelhada no confessionário contando pecados só aumentavam.

O padre não tinha essa paciência com os demais cristãos.  Cinco minutos bastavam para contar os pecados, rezar o ato de constrição e ouvir a penitência equivalente ao tamanho do pecado.

Após a confissão, Zezinha ajoelhava-se aos pés de Nossa Senhora, terço nas mãos e se punha a rezar.  Só ia embora quando o sacristão apagava as luzes e fechava as portas.

As investigações policiais duraram poucos meses.  Bispos vieram e se foram.  A falta de recursos e nenhuma prova concreta fizeram o delegado encerrar o caso. 

A igreja foi fechada e o povo ansioso aguardava a chegada do novo pároco. 

 Zezinha não saía mais de casa, comia feito um passarinho, falava pouquíssimo e quando falava, mal dava pra entender.  Exames médicos não acusavam doença alguma.  Os pais já não sabiam mais o que fazer.  Só restava orar e orar.

E, lá fora, os boatos corriam soltos: “A pobre moça apaixonou-se pelo padre.  Ela sofre de amor e pra isso não tem remédio.  Pobrezinha!  Só pode ser isso”.

Hoje Curió amanheceu com chuva fina e vento fresco.

Um punhado de gente triste carrega um caixão branco.

Zezinha parou de sofrer.

PADRE MIGUEL - ADELAIDE DITTMERS

 


Padre Miguel

Adelaide Dittmers

 

A pequena igreja da cidadezinha estava lotada. As beatas com véus, que lhes cobriam os cabelos, mas não impediam que a maledicência escorresse por suas línguas, tagarelavam em voz baixa, com olhos argutos, que voavam pelas pessoas como águias em busca da presa.

Acompanhado por dois coroinhas, o sacerdote subiu ao altar.  Era um homem de uns quarenta anos, bem-apessoado e com ar humilde.

As luzes acenderam-se iluminando os anjos e santos barrocos distribuídos por pequenos altares e o altar, onde reinava a padroeira da cidade.

O silêncio apagou as conversas.  A expectativa era sentida em cada rosto.  Naquele domingo, um novo padre assumiria a paróquia.

As pessoas levantaram-se para recebê-lo.  As beatas cochichavam agitadas pela beleza do padre.  A curiosidade varria o lugar.  Como seria o novo padre? O anterior era muito severo.  O que esperar deste?

Com um sorriso simpático e um gesto, ele indicou para todos sentarem e apresentou-se, dizendo que estava muito feliz de ser o condutor espiritual da cidade.

As orações, os hinos e os rituais da missa sucederam-se suavemente.  No momento do sermão, ele subiu ao púlpito e encantou os fiéis com uma prédica envolvente, em que palavras de conforto e exortação ao amor e respeito ao próximo foram derramadas pela igreja.

Terminada a missa, os frequentadores saíram para a praça e formaram pequenos grupos, comentando o que acharam do novo pároco. Os elogios daquela boa gente elevaram-se pelo ar fresco da manhã.

As beatas combinaram que precisavam se confessar para assim se tornarem mais próximas dele.  Elas consideravam os sacerdotes seres quase divinos, mas dentro delas algo mais terreno as sacudia.

O tempo foi passando e o padre Miguel foi conquistando o coração e a confiança de todos. Era amável, compreensivo e tolerante.  Nos sermões sempre exaltava a importância de os fiéis confessarem todas as semanas para aliviarem suas almas dos desgostos, problemas e remorsos, que a vida trazia.

O povo simples e crédulo cumpria esse pedido com devoção.  Abriam o coração, confessando os medos, os males feitos, as desavenças e os desafetos, na esperança de serem perdoados por Deus.

Padre Miguel tornou-se muito respeitado e ninguém mais movia um dedo sem consultá-lo. Muito inteligente, ele absorvia todas as informações.  Assim, o manto tênue do homem perfeito cobriu a cidade com seu poder de convicção.  De maneira sutil, levava os mais poderosos a confessar suas desonestidades, convencendo-os de que o perdão divino viria se fossem generosos com a igreja.  Aos mais pobres dizia que se dessem o dízimo, milagres aconteceriam.

Em uma tarde de outono, de ar fresco e vento suave, que levantava as folhas secas, que caiam mansamente das árvores, um trem apitou na curva da via férrea aproximando-se da velha estação, bufando seu cansaço e fazendo as rodas gemerem ao estacarem nos trilhos.

Vários passageiros desceram e, dentre eles, um casal de cabelos grisalhos, puxando pesadas malas. O homem olhou em volta, como que tentando reconhecer o lugar.  Quase nada mudara desde que ele fora embora, aos dezenove anos, para ir morar na metrópole em busca de maiores oportunidades. 

— Não é simpática esta estação? Você vai gostar daqui.  É um lugar calmo e o povo é pacífico.  Disse com a voz embargada pela emoção.

Estava voltando depois de tantos anos para desfrutar da aposentadoria no lugar tranquilo em que nascera. 

Sairam da estação e Luisa observava tudo com curiosidade.  As ruas estreitas de paralelepípedos, onde as casas desfilavam com pequenos jardins. Outras construídas diretamente junto às calçadas, em que mulheres se debruçavam nas janelas para ver a vida passar.

Arrastando a bagagem, chegaram à uma velha casa com um grande jardim, onde reinavam jabuticabeiras, limoeiros, mamoeiros e outras tantas árvores, que dançavam suavemente ao sabor da aragem.

Entraram, e velhas mobílias os esperavam.  Abriram as janelas para deixar a luz do sol entrar. Cada canto trazia uma lembrança a Tomé.  A casa estava fechada há muito tempo, precisaria de algumas reformas, mas era confortável e ampla. E voltar para ela, era voltar ao antigo ninho.

Aos poucos foram se habituando à nova vida.  Tomé aproximou-se de velhos amigos e Luisa foi fazendo novas amizades.  Católicos fervorosos começaram a frequentar a igreja.  Aos domingos iam à missa, e como todos, foram capturados pela doçura do carismático padre.  Apesar de suas profissões terem exigido muito deles, ele fora um exímio investigador de polícia e ela, professora, sempre gostaram de participar das tarefas paroquiais.  Ensinavam catecismo às crianças, promoviam encontro de casais e ajudavam em outras programações da igreja.

Certo dia, ao entrar na sacristia, encontrou uma mulher de vestes simples, que se dirigiu a ele:

— Sr. Tomé, vim entregar o dízimo, mas o padre não está.  Posso entregar para o senhor?

Dízimo? Ele pensou, não sabia que o dízimo era cobrado.   E, quando viu a quantia, surpreendeu-se ainda mais.  Era muito dinheiro para aquela pobre mulher.

— Não é muito o que a senhora está oferecendo?  Perguntou.

— Preciso de um milagre e o padre disse que se eu desse o dízimo, o Senhor me ajudaria.

Aquilo não lhe saiu da cabeça e seu instinto de investigador acendeu-se como uma labareda dentro de sua cabeça. Começou então a observar com mais atenção o que acontecia na sacristia.  Passava os olhos pela escrivaninha de Miguel e notou também o movimento de beatas, que entravam e saiam, todas arrumadas como se fossem a um encontro.  Uma tarde, viu um cheque meio escondido na escrivaninha e com cautela verificou a quantia e de quem era a assinatura.  Arregalou os olhos: era uma alta soma de dinheiro de um rico fazendeiro da região.

Desses dias em diante, quando o sacerdote estava ausente remexia nos papéis da sacristia e revolvia gavetas à procura de dinheiro.  Descobriu que altas somas eram dadas regularmente à paróquia, que não apareciam na contabilidade e nem eram empregadas para consertos ou obras assistenciais.

Com habilidade começou a investigar os documentos do padre e descobriu que eram falsos.

Como todos tinham sido enganados? Como tudo isso fora possível? Resolveu se comunicar com o bispo da arquidiocese mais próxima e relatar o que estava acontecendo.  A notícia caiu como um raio no bispado, porque informaram a Tomé, que tinham enviado um sacerdote para aquela paróquia.  Padre João tinha partido para o novo ofício há mais de dezoito meses.  A situação era mais grave do que Tomé supusera.  O que poderia ter acontecido com o padre, que não chegara ao seu destino.

Uma detalhada investigação os levou ao trajeto do padre João e descobriram que ele desapareceu durante o caminho.  O delegado de uma das cidades por onde ele passara informou que tempos atrás, foi encontrado o corpo de um homem boiando no rio, com uma facada na barriga.  Estava quase nu e até aquele momento não tinham conseguido identificá-lo.  Fotografias do cadáver foram enviadas para os investigadores, que constataram que era o pobre padre João.  Um arrepio passou pelo corpo de todos.  Seria Miguel o assassino? Ao juntar as peças do acontecido, cada vez mais a suposição os levava para o falso padre.

A polícia invadiu a igreja e prendeu Miguel com a acusação de ter usado falsa identidade, tirado grandes quantias de dinheiro dos fiéis e o por ser o principal suspeito do assassinato do verdadeiro padre.

A notícia da prisão do falso padre tumultuou a cidade. O choque paralisou os habitantes e alastrou-se como pólvora.  A revolta foi tão grande, que quiseram invadir a delegacia em que o homem estava preso provisoriamente.  Com muito custo, os policiais conseguiram dominar a situação, dispersando a pequena multidão desvairada.

As beatas foram para a igreja rezar e pedir perdão a Deus pelos pecados e por terem sido enganadas pelo belo padre.  Choravam envergonhadas e abriram a boca e esbulharam os olhos quando uma delas confessou, tremendo dos pés à cabeça, que estava grávida de Miguel. Um ¨Deus nos acuda¨ percorreu o lugar.

Pelos interrogatórios e investigações descobriram a verdadeira identidade de Miguel.  Era procurado há muito tempo por golpes e roubos em que usava armas. A única coisa que não conseguiram, foi arrancar dele a confissão de assassinato do verdadeiro padre. Era esperto e liso como sabão.

Tomé foi homenageado por ter livrado a população daquele bandido e tornou-se a pessoa mais respeitada da cidade.

Em uma manhã de sol e céu azul, sentou-se no terraço da casa em companhia de Luisa, admirando o jardim, com suas flores e árvores carregadas de frutas e onde o silêncio só era quebrado pelo cantar dos pássaros, disse sorrindo:

— E eu que vim para cá gozar minha aposentadoria e a tranquilidade da minha cidade...

O PADRE HILÁRIO E O PATO - Henrique Schnaider

 


O PADRE HILÁRIO E O PATO

Henrique Schnaider

 

Hilário sempre foi o tipo do sujeito vigarista. Desde pequeno o danadinho sempre que tinha chance, surrupiava os brinquedos de seus amiguinhos. No jogo de bolinha de gude, ganhava sempre porque usava de artimanhas, malandragens e por isso já possuía um estoque enorme das bolinhas.

Já garoto com sete anos ele era PHD na matéria de enganar as pessoas. Quando entrou na escola não perdia a oportunidade de roubar material escolar dos colegas e até os lanches, os quais ele tinha a pachorra de escolher o mais apetitoso e passava a mão na guloseima do amiguinho. Acabou sendo expulso da Escola.

Hilário tanto fez, já que dava até nó em pingo d’agua, ao entrar na adolescência foi parar numa Instituição para menores infratores onde se tornou um líder. Impressionou os garotos pela capacidade de passar para trás qualquer um que o enfrentasse. Ficou retido por mais de três anos e quando foi solto, foi morar nas ruas já que seus pais desistiram dele.

A vida desregrada e sem ninguém para lhe dar uma educação decente e nem valores para seguir, Hilário entrou ladeira abaixo e ficou muito mal. O vigarista tanto fez e tanto aprontou que acabou preso e condenado. Acabou puxando cinco anos de cadeia. Quando ficou no presídio ao lado de delinquentes perdidos na vida se perdeu de vez. Acabou se tornando” Dr. Honoris causa” em matéria de aplicar golpes na praça.

Finalmente solto, Hilário resolveu ir embora da Capital Goiânia e partiu de trem para o sertão de Goiás. Mas antes já pensando no próximo golpe que iria dar, comprou roupas de Padre, enquanto viajava. Foi lendo num livreto tipo Wikipédia, olhando qual cidade seria interessante para continuar aquela vida de estelionatário.

Na sua busca acabou achando a cidade de Abadiânia onde outro vigarista tarado contumaz “João de Deus”, tinha sua sede, e recebia os incautos. Hilário chegou naquela cidadezinha acanhada, mas cheia de pessoas crédulas, o local ideal para se estabelecer.

Apeou do trem com suas duas malas uma delas cheia de roupas e apetrechos que um Padre carrega. Ali no corredor da pequena estação parou para puxar um dedo de prosa com um matuto local e sondar a respeito da Igrejinha da cidade. Achou um caipira, um daqueles personagens que só existem nas piadas. Era o João de cima pois ele morava lá em cima do morro. E não é que existia o João de baixo, amigão do de Cima. Hilário tirou tudo o que precisava de informações, inclusive que o Padre Adelino, já avançado na idade havia morrido fazia um mês e a cidade aguardava a vinda de um novo Padre.

Hilário não perdeu tempo e disse ao João de Cima que era o novo Pároco que eles estavam esperando e pediu para ser levado até a Igreja. João ficou abismado com aquela surpresa e prontamente se ofereceu para levar o “falso” Padre Hilário até a Igreja dos necessitados.

A notícia se espalhou que nem rastilho de pólvora e todos os fiéis acorreram até a Igreja para saber das novidades e conhecer o novo Padre. Para celebrar a missa ele não se preocupou pois quando criança apesar de sapeca havia sido coroinha.

A vida seguiu seu caminho e Hilário passado um mês da chegada, e vida entrando na rotina, começou uma campanha de arrecadação de fundos para a reforma da Igreja e aí é que pretendia dar o golpe. Arrecadar o máximo possível e pegar a estrada e dar no pé, pois corria o risco da chegada do novo Padre.

Mas sempre tem um “mas” !!!, o vigarista não contava com o aparecimento do Tonho das Galinhas. Até que um dia a Maria das Galinhas mãe do Tonho pediu para ele ir vender um pato.

Enquanto isso Hilário malandro dos bons se engraçou com a Dona Chiquinha morena das boas, esposa não muito fiel do Coronel Bento. Ele não perdeu tempo e foi fazer uma visita paroquial à ela.

O Tonho com o pato nas mãos viu a porta entreaberta da casa do Coronel Bento. Sem cerimônia entrou, sem sequer bater. Foi olhando em todos os cômodos da casa até que chegou no quarto do casal. Para seu espanto estavam na cama Dona Chiquinha e o “Padre Hilário” fazendo coisas que o Tonho achava que só o Coronel Bento podia fazer.

Hilário sem saber o que fazer, perguntou ao Tonho o que ele estava fazendo ali. O matuto respondeu:

— Quero vender o pato.

Hilário perguntou:

— Quanto você quer pelo pato?

— Quero 100 reais pelo pato.

Hilário reagiu.

— Mas que ladrão!

Hilário não estava em condições de negociar preço e pagou os 100,00 reais pedidos.

Nisso Dona Chiquinha ouve o barulho de um carro chegando e falou desesperada.

— É o meu marido!

E foi um alvoroço. Lá se foram a esposa adúltera o “Padre”, o Tonho das Galinhas e o pato, todos para dentro do guarda-roupa. Um sufoco, todo mundo suando frio, menos o pato. E não é que depois de algum tempo esperando o Bento sair de novo, vira o Tonho e fala para o “Padre”:

— Agora “Padre”, eu quero comprar o pato. - Disse o Tonho falando baixo para o Bento não ouvir. Pensou o Hilário e disse:

— Ah seu ladrão, quanto quer pagar pelo pato?

O Tonho respondeu na maior cara de pau:

— Eu pago 10,00 reais.

Hilário espumou de raiva. Vendeu o pato.

Finalmente o Coronel Bento foi de novo para rua jogar tranca. Todos saíram do guarda-roupa. Hilário e Tonho e o pato saíram voando da casa e partiram em direção da Igreja. E não é que no caminho, lá vem o Tonho de novo.

— “Padre” agora eu quero vender o pato.

O coitado do Hilário saiu correndo e o Tonho atrás gritando.

— Eu quero vender o pato.

O falso “Padre” Hilário comprou e vendeu o pato para o Tonho umas 10 vezes e saiu no maior prejuízo. Perdendo tudo que havia arrecado dos fiéis. Resolveu fazer as malas e dar no pé, antes que o Tonho espalhasse para todo mundo o que havia visto na casa do Coronel Bento e os bons negócios que fez com o “Padre Hilário”. No fim das compras e vendas, o Tonho acabou ficando com o pato, para alegria da Maria das Galinhas.

 

 

 

FÉ DE MAIS OU INGENUIDADE? - Helio Salema

 


FÉ DE MAIS OU INGENUIDADE?

Helio Salema

 

No início dos anos 50 na pequena cidade de Santa Felicidade chegou o novo padre para o lugar do padre Honório, falecido recentemente.

No primeiro contato com os fiéis ele demonstrou ser muito simpático e não tão rigoroso quanto o seu antecessor. Falava com muita naturalidade sobre o seu passado de dificuldades, a sua fé em Deus e no futuro da humanidade.

Além de padre, era também um amigo para todas as horas e situações. Várias vezes foi chamado para resolver briga de vizinhos ou até mesmo de família. Sua calma, voz suave e paciência para ouvir, muito contribuíram para resolver os conflitos. Assim foi conseguindo a confiança total das pessoas que o procuravam, em momentos difíceis ou até mesmo de desespero.

Aquela situação de salvador de todos o fez, aos poucos, mudar sutilmente seu comportamento. Passou a exigir confissões dos fiéis pelo menos uma vez por semana.

Com bastante habilidade conseguiu estimular até confissões íntimas de alguns.

Algumas pessoas não tiveram nenhuma dificuldade em relatar coisas, que até aquele momento, jamais haviam pensado em revelar. Outras com muito custo e graças à insistência do padre se expuseram a tal ponto de mencionar fatos que antes não tinham sequer coragem de pensar.

Para aquelas que não aceitavam tal exigência, por não terem facilidade em se expressar ou por não verem necessidade, ele alegava ser necessário, sim, para o desenvolvimento espiritual de cada um ou ficaria esse sofrendo junto aos maus espíritos.

Severino que era frequentador antigo e contumaz de igreja, principalmente, depois de ficar viúvo, chegou a duvidar da sinceridade das palavras do novo sacerdote. Mais desconfiado ficou, ao passar certa noite e ver uma senhora saindo apressada da porta lateral da igreja. Porta esta que dava acesso aos aposentos do padre. Assim que ela virou a esquina, Severino correu na esperança de alcançá-la. Quando chegou na esquina viu a rua totalmente deserta, todas as casas às escuras.  Ficou por alguns segundos pensando se era uma pessoa, apenas um vulto, assombração ou alma de outro mundo. Desesperançoso e ofegante voltou para casa. Assim que entrou ajoelhou-se e rezou por um longo tempo.

Por vários dias ficou tentando lembrar-se de detalhes. Altura, tipo de roupas, mas nada de especial que pudesse ajudar na identificação.  Até mesmo a sombrinha era semelhante às outras que ele via na rua. Resolveu então caminhar à noite passando várias vezes pelo mesmo local. Cada dia mais desanimado ficava.

 

Com a chegada da Semana Santa várias famílias retornaram a Santa Felicidade, aproveitando o feriado para rever os familiares e amigos. Foram dias de muita alegria para os moradores daquela pequena e sossegada cidade. Severino pôde rever amigos, saber das novidades da capital e também sentir a falta de outros que desta vez não vieram.

Mas teve a satisfação da presença de Agostinho, sobrinho de sua falecida esposa. Embora estivesse ausente de sua cidade natal por quase duas décadas, o encontro dos dois foi muito festivo. Severino lembrou-se da companhia do Agostinho nas pescarias e este, das aulas do tio nos jogos de dama. A cada momento que eles se recordavam de algum momento especial, riram como duas crianças em dia de Natal. Agostinho, porém, interrompeu a euforia quando perguntou sobre o padre:

— Tio quem é esse padre novato que está querendo “bagunçar” com a fé e a cabeça das pessoas?

— Ehh! Também a minha cabeça anda “sacolejando”. Não sei onde isso vai parar.

— Ainda bem que eu não frequento igreja, mas acho que as pessoas precisam ser respeitadas.

Subitamente, chegam até eles outros amigos do Agostinho. Após um pouco de prosa, eles se despedem de Severino e seguem para se reunirem com outros amigos de infância.

Mesmo a contragosto, Severino decidiu fazer uma comunhão semanal. Aproveitava também para uma longa conversa com o padre, tentar assim ganhar a confiança dele e quem sabe em algum momento ter uma revelação.

Ao contrário, foi Severino quem acabou desabafando. Num momento de fraqueza revelou um segredo antigo. Uma tentativa de estrupo. Não concretizado por interferência de familiares da vítima. Para evitar ser agredido teve que sair, imediatamente, daquela localidade e nunca mais voltar.

Na semana seguinte, durante um sermão, o padre falou do terrível pecado do estrupo. Mesmo quando impedido. O fato de haver a insana intenção já era objeto de condenação sumária.

Afirmou que alguém ali presente havia sido autor, em outros tempos, o que não a exime da culpa.

Severino sentiu a punhalada, forte e certeira, no seu coração. Minutos depois saia arrasado e se arrastando, moralmente.

No dia seguinte pela manhã, várias viaturas da polícia da capital entravam em Santa Felicidade.

Alvoroço na praça, no armazém, nos botecos. Toda a cidade assustada com aquela cena jamais vista. Maior surpresa quando estacionaram em frente à igreja.

Os policiais aguardavam a abertura da porta. Minutos passaram e as especulações iam aumentando. Quando vários policiais saíram correndo para o lado da igreja onde o padre vestido como um cidadão comum tentava escapar em direção à mata. Parecia cena de filme.

Não conseguiu ir muito longe. Apanhado, não resistiu. Entrou na viatura de cabeça baixa, sem olhar para os lados.

Com a chegada do Sr. Prefeito, o oficial de justiça o comunicou que alguém na capital havia pedido investigação sobre o padre. Com um retrato tirado quando o padre fazia um batizado foi possível reconhecê-lo. Já foi preso, duas vezes, por aplicar golpes em comerciantes e tentativa frustrada de estrupo.

 

 

Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. - Ana Catarina Sant’Anna Maués

 


Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

Ana Catarina Sant’Anna Maués

 

Ao pé de uma serra inóspita, existia uma vila humilde, sem progresso, sem expressão e atrativos turísticos e com pessoas sem ambição, aí mesmo é que o local estagnou. Tinha como único comércio apenas um barracão, onde se podia encontrar poucas mercadorias para venda, além disso, uma praça sem monumentos, desprovida de jardim, bancos ou quiosques, ali próximo uma capela e um único prédio, bem desgastado, que servia à prefeitura.

     Foi neste lugar que certo dia apareceu, vindo tomar posse da igrejinha, um certo padre Estevão. Homem alto, robusto, barriga que lhe escondia o ventre, de feição áspera e ar sisudo, muito por conta da longa barba que exibia e tomava conta de toda a face.

     As celebrações litúrgicas realizadas pelo padre eram inusitadas, bem diferentes das usuais e as missas em nada se assemelhavam às tradicionais.  Padre Estevão era reservado, de poucas falas, difícil vê-lo circulando em frente ao que todos chamavam santuário, mas podia ser encontrado todas as tardes na sala improvisada como sacristia, esperando os fiéis para o sacramento da confissão.   Esta obrigatoriedade foi imposta por ele como primeiro ato de sua gestão.  Instituiu que os habitantes viessem confessar-se pelo menos uma vez por semana e como não eram muitos o controle ficava fácil, deixando todos sempre em estado de graça, dizia repetidamente o padre, que não deixava escapar nenhum paroquiano. Possuía uma lista com o nome de todos, lista que fez logo no primeiro dia que chegou e controlava com rigor. Quando alguém deixava de vir confessar ele logo aparecia na casa do fiel e lá mesmo o escutava dando penitência.

     Isso, com o tempo, passou a incomodar, por demais, o prefeito que tinha lá as suas mazelas com superfaturamento das nenhuma obras, quando recebia as verbas do Estado e gastava bem longe dali em suas mansões no exterior. Foi então o primeiro a se rebelar, não aceitando mais a confissão como cabresto.

     O padre passou então a ser alvo da inquietação do prefeito que não queria ser descoberto em falcatruas, pois sua imagem de homem ilibado era mantida a todo custo e vai que o padre, após uma confissão por parte dessa autoridade, dá com a língua nos dentes. Foi então que resolveu pesquisar, mesmo que a distância e sem recursos de internet, pois a vila não tinha, usando cartas, a vida do tal padre, tentando encontrar algo nefasto para tê-lo nas mãos, caso se visse obrigado a confessar algo que expressasse a face encardida que disfarçava com ações assistencialistas aos nascidos na vila.  

     Seu intento alcançou êxito quando recebeu uma correspondência da Ordem religiosa, à qual padre Estevão dizia pertencer. Foi uma carta esclarecedora, nela dizia que um outro padre Estevão, jovem, recém ordenado, havia sido transferido a outro local, ficando ainda por tempo indeterminado, alguém para administrar a capela da vila.

     O prefeito ficou por demais encafifado com o impostor. Quem seria aquele falso padre que se fazia passar pelo verdadeiro Estevão? Qual a verdadeira razão dele impor confissão semanal à população?   O que realmente estaria por trás desta ação do falso sacerdote? Algo muito suspeito pairava naquela situação. Foi aí que ele teve a ideia de entrar no alojamento que servia de quarto para o padre e vasculhar os pertences enquanto ele estava ocupado, trabalhando a cabeça das pessoas em confissão lá na capelinha.

     Iniciou-se no alojamento um verdadeiro vendaval, o prefeito não era nada cuidadoso e com pressa remetia as poucas coisas que encontrava, deixando tudo fora do lugar. Nesta busca não encontrou nada que desabonasse o até então ilibado padre. Resolveu confessar-se nesta mesma hora e pôr em pratos limpos toda aquela situação. Foi até a capela e esperou impaciente o momento de falar.

     Chegando perto do padre, revelou que sabia da falsidade ideológica que estava vivendo. Estevão empalideceu, sua face carrancuda se fez transparecer em face juvenil, igual criança pega em travessura e gelado como mármore, sem rodeios, revelou que estava ali por causa da jazida de ouro da qual era dono por herança e haviam sido roubadas as pepitas que conseguiu, em muitas garimpadas com esforço sobre-humano, num trabalho árduo e solitário. Tinha como plano fazer o próprio larápio confessar e fazê-lo devolver as pedras, daí inventou esse disfarce quando soube por parentes distantes que o novo padre não viria mais ocupar a capelinha.

     O prefeito, diante dessa confissão, arregalou os olhos e lembrou que tempos atrás, quando saiu a caçar pela mata, encontrou um saco com cinco pepitas de ouro junto a um córrego, parecendo que alguém havia ido banhar-se e ali esqueceu. Avarento que era, percebeu logo um caminho para mais rico ficar. Ofereceu parceria na exploração da jazida em troca de não revelar a verdadeira identidade de Estevão. O falso sacerdote não teve como driblar a proposta e aceitou de pronto ou isso ou a prisão.

     Logo no outro dia, o prefeito foi com Estevão, que se chamava na verdade Adamastor e chegaram cedo na mina. Observou o local e viu que ela era pequena e rapidinho poderia explorá-la com baixo investimento, o que lhe fez de pronto ter outra ideia. Muito egoísta, ofereceu comprar a parte de Adamastor e não revelar a falsidade ideológica do mesmo. Adamastor foi chantageado e aceitou a oferta, tentou convencer-se de não ter mesmo grandes ambições.

     Adamastor pediu que, até que o pagamento da compra da mina fosse concluído, ele pudesse ficar morando no barracão perto dela, uma vez que não poderia mais frequentar o vilarejo. Neste ínterim raspou a barba e passado um tempo já estava bem magro, em nada se parecendo com o personagem que representou.

     Na vila, todos sentiram falta do padre, mas não sabendo o porquê do sumiço, conformaram -se, e a vila ficou novamente sem sacerdote.

     Assim que Adamastor obteve seu novo visual, providenciou na vila um quartinho para alugar, e sem ser reconhecido, todas as manhãs ia garimpar na mina escondido do prefeito, metendo a mão na massa ficando com todas as pepitas que encontrava.

     Enfim, chegou o dia do pagamento total da parte de Adamastor pelo prefeito.

     Adamastor nada tolo, estava bem mais rico do que o prefeito supunha. Rapidinho virou homem rico e agora sim deixou a vila e foi para a cidade grande.

     O prefeito, ficou com sua ganância lá no vilarejo e até hoje se mantém no poder da prefeitura, fazendo o que se acostumou a fazer pelo lugar, nada.

 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

VIDAS INTERROMPIDAS (romance - primeiro colocado) - ADELAIDE DITTMERS

 


O melhor romancinho 2021
Um patrocínio da DE TOMMASO
Prêmio: Uma bela mala de viagem para os vencedores




VIDAS INTERROMPIDAS

ADELAIDE DITTMERS



A chuva tamborilava no telhado do frio alojamento.  Aos poucos as gotas foram engrossando e flocos de neve caíram suavemente do céu escuro.   Dentro do grande barracão, um grupo de mulheres cercava uma jovem, que gemia e se debatia com as dores do parto.  Entre os dentes, tinham lhe colocado um pedaço de pano para que seus gritos não fossem ouvidos do lado de fora.

A madrugada gélida espantara os guardas daquele lugar de dor e extermínio para o calor dos seus aposentos.  Havensbrück era um campo de concentração só para mulheres, onde eram obrigadas a executar trabalhos escravos e exaustivos, que lhes minavam a saúde e a energia.

Durante sua existência, milhares de mulheres, judias, ciganas e prostitutas eram executadas ou morriam de exaustão.  Somente as mais fortes conseguiam sobreviver.

Naquela noite, Sara contorcia-se, enquanto as outras prisioneiras ajudavam-na.  Por sorte, uma delas formara-se em enfermagem e era parteira e fazia as manobras do parto.

De repente, o choro do recém-nascido irrompeu pelo lugar e as mulheres pegaram a criança e a embrulharam em pedaços de pano.  Sara, exausta, pelo esforço, deu um grande suspiro e lágrimas inundaram-lhe o rosto triste.

— Querida amiga, o que você quer que façamos com a criança? Perguntou Esther, a parteira.

A moça olhou para o filho.  Seus olhos contraíram-se e ela apertou os lábios num esgar de desespero.

— É meu filho! Não tem culpa de nada.  E estendeu os braços para aninhá-lo junto ao peito.

As mulheres entreolharam-se.  Os olhos refletiram a compaixão que sentiam pela pobre moça. E uma delas disse:

— Vamos ter que escondê-lo para não ser morto por esses monstros.  Temos que pensar em um plano. 

Sara apenas balançou a cabeça concordando.  Seus pensamentos foram para o dia em que um oficial a arrastou para um aposento e a violentou brutalmente. Sacudiu a cabeça, tentando esquecer essa terrível lembrança e um cansaço físico e emocional a tomou por inteiro.  Adormeceu e durante toda a noite pesadelos sacudiram-lhe o corpo debilitado.

A manhã fria acordou-as para outro dia de trabalhos intensos.  A neve cobria tudo com seu manto branco.  As mulheres tinham decidido que iram enganar os oficiais, respondendo por Sara na hora da inspeção.  As roupas pesadas e as toucas iriam ajudá-las no disfarce e assim a companheira poderia descansar pelo menos por um dia.

 Com muito medo, mas com firmeza conseguiram passar pela inspeção.

No dia seguinte, no entanto, Sara mesmo enfraquecida enfrentou o trabalho duro.   Por uma semana Sara fora convocada a fazer um trabalho dentro do campo, o que lhe possibilitou uma maneira de alimentar o bebê. Com a desculpa de ir ao banheiro corria para o alojamento e o amamentava por uns minutos.  Nesses momentos, o medo misturava-se a uma forte determinação e satisfação de enganar aqueles impiedosos algozes.

Enquanto isso, na sala dos oficiais, uma reunião de urgência ocorria e o nervosismo e a agitação ferviam no coração daqueles homens arrogantes e frios.  O exército russo aproximava-se daquela área e eles não queriam que eles se deparassem com o grande número de prisioneiras e percebessem os atos criminosos que lá praticavam. 

Discutiam o que fazer com aquelas mulheres.  Gritavam uns com os outros.  Não havia mais tempo para exterminá-las, mas podiam diminuir a população, então resolveram que abririam os portões para que a maioria delas saísse do campo. O frio e a debilidade física iriam acabar com quase todas, deduziram friamente.

No dia seguinte, uma multidão de mulheres foi reunida no pátio e a ordem foi dada e os portões abriram-se.

Sara desesperou-se e se descobrissem a criança, mas ajudada pelas companheiras de infortúnio, cobriu o filho com o largo casaco e se enfiou no meio do enorme grupo de mulheres.  Auxiliada por Esther e Ruth, as grandes amigas naquele infernal lugar, colocou um pedaço do pano do vestido na boquinha do bebê para abafar o choro e saíram pelo grande portão.

A estrada à frente perdia-se de vista.  Caminhavam muito juntas para tentar aquecerem-se mutuamente e suportarem o frio intenso.  Muitas choravam baixinho.  Andavam devagar e os rostos refletiam o sofrimento e a desesperança de alcançarem a salvação.  Sabiam que a morte as espreitava a cada passo.

Sara apoiava-se em Esther e Ruth e assim andaram alguns quilômetros.  Muitas delas exaustas e combalidas caíram pelo caminho. Era um cenário de horror, que expunha de uma maneira ímpar aonde a maldade e a loucura humana podem chegar.

— Não aguento mais!  Vou ficar por aqui!  Murmurou Sara.

— De jeito nenhum! Vamos parar um pouco.  Respondeu Esther com firmeza.

Pararam e trocaram o bebê de colo para aliviar a extenuada companheira.  Depois de descansarem, Ruth disse:

— Vamos continuar!  E amparou Sara.  Quase se arrastando as três seguiram pela estrada.

De repente, a uns poucos metros, uma casa de campo surgiu ao lado do caminho. Tinha um jardim, onde arbustos se curvavam pelo peso da neve, que caíra. Com passos já cambaleantes tentavam continuar a caminhada, mas nesse momento, Sara caiu desfalecida.  As amigas desesperadas tentavam reanimá-la.  Uma senhora de cabelos prateados e grandes olhos azuis surgiu diante delas.

— O que está acontecendo?  Para onde vocês vão? E olhando para o pequeno grupo, que ainda resistia ao cansaço e ao frio.

— Para onde vão por essa estrada gelada?

Os olhos de Esther e Ruth fixaram a mulher e neles havia uma súplica silenciosa por ajuda.


— Meu Deus, essa moça desmaiou!  Vamos levá-la para dentro.  Ruth e a senhora arrastaram Sara para o interior da casa.  Nesse momento, a criança que estava em baixo do casaco de Esther chorou.

— Vocês têm uma criança escondida aí?  Exclamou, surpresa.

As duas mulheres concordaram, apenas balançando a cabeça.          

Dentro da casa, o calor abraçou-as como um afago há muito esquecido.

— Deitem a jovem aqui.  Vou buscar uns sais para acordá-la.  E indicando um sofá saiu com passos rápidos. Voltou em seguida e aproximou os sais para reanimá-la.

Minutos depois, Sara abriu os olhos.  Um grande espanto espalhava-se pelo seu rosto pálido.  O que acontecera? Onde estava? A mulher olhava-a com piedade.

— Que bom! Você voltou a si!  E dirigindo o olhar para as três mulheres, disse num estalo de compreensão:

— Vocês vieram de Ravensbrück, não é? Como saíram de lá?

— Sim, responderam com voz fraca.  Abriram o portão para muitas de nós! Não sabemos por que, mas achamos que queriam que morrêssemos pelo caminho.

A indignação cobriu o rosto da senhora, mas não foi percebida pelas mulheres esgotadas pelo esforço de se manterem vivas.

—Sentem-se!  Vou fazer um chá para aquecê-las, mas antes vou cuidar dessa criança.  Pegou o bebê e o levou com ela.

As mulheres entreolharam-se. Pareciam não acreditar no que estava acontecendo.  Com dificuldade, Sara sentou-se no sofá e de mãos dadas agradeceram a Deus por ter posto aquele bom ser humano em seus caminhos.

Esther, subitamente, disse em voz baixa:

— Ela é alemã. Será que não nos vai trair.  Estou com medo.

E as três abraçaram-se para que a força as unissem.

Depois de um tempo, a senhora voltou com o pequenino nos braços.

— Dei um banho quentinho nele.  O coitadinho estava quase morto.

O bebê estava vestido, o que espantou ainda mais as três.

— Não se espantem! As roupinhas eram do meu neto, que guardei de recordação.  Disse com um sorriso simpático. E acrescentou:

— Quem é a mãe deste bebê?  É bom amamentá-lo.  Deve estar com muita fome.

Sara respondeu com um fio de voz:

— Sou eu! E, com dificuldade, estendeu os braços para o filho, perguntando:

— Por que a senhora está nos ajudando? Somos judias e os alemães nos odeiam.

— Não sou nazista, querida!  Desprezo esse regime.  Muitos alemães, como eu, nunca concordaram com o louco, que nos levou a essa guerra insana.

As três suspiraram aliviadas.

— Esperem um pouco.  Vou buscar o chá.  E saiu apressada.

A criança aconchegada à mãe, sugava com força o leite materno.

Poucos minutos depois, o chá foi servido pela boa mulher, que as acolhera. Um prato com pão caseiro e gordura de porco completava a pequena refeição.

— Depois de se alimentarem, vocês devem tomar um banho e trocar essas roupas horríveis e úmidas.  Temos muito que conversar.

As três companheiras devoraram o lanche.  Não comiam desde a noite anterior. A senhora observou como elas engoliam com avidez o alimento.  Estavam famintas e pensou com tristeza quanto sofrimento essa guerra maldita vinha causando.

Mais tarde, já aquecidas pelo banho e agasalhadas com roupas secas, sentaram-se na sala e a boa mulher juntou-se a elas e começou a falar:

Meu nome é Herta.  Vivo sozinha aqui.  Consegui sobreviver porque crio galinhas, patos e porcos. Tenho também uma horta no quintal, de onde colho legumes e algumas verduras, que transformo em conservas para o inverno.  Com a guerra, os produtos básicos começaram a faltar. Uma vez por semana, temos que enfrentar enormes filas para nos abastecer com um mínimo de artigos de necessidade.

 Meu marido morreu há muitos anos.  Meu filho, Joachim, foi convocado logo no início da guerra e sucumbiu em combate. Eu já odiava o homem causador de tudo isso, cujo nome não gosto de pronunciar e o odiei ainda mais, porque roubou meu Joachim.  Ele era casado e tinha um filho.  Minha nora, Anne, morava comigo e juntas cuidávamos do menino.  Quando Anne recebeu a notícia da morte do marido, não quis mais ficar na Alemanha.  Os pais dela tinham emigrado para o Brasil e ela quis ir para lá.  Queria me levar, mas eu me senti sem coragem de começar uma nova vida em um país tão distante.

Ela conseguiu sair da Alemanha, por Berlim, onde voou para Portugal e de lá partiu de navio para o Brasil. Com a guerra é difícil ter notícias deles, mas sei onde moram e que estão bem. Nas poucas cartas, que recebi, eles escreveram que estão adorando morar no novo país, o que me deixa mais conformada com a distância que nos separa.

E é por esse motivo, que tenho roupas dela e do menino guardadas até hoje. Às vezes olho para elas e choro de saudades.

Sara, Esther e Ruth estavam caladas.  Apesar da fraqueza e do cansaço, uma ternura e um respeito inesperados as invadiram por aquela boa mulher.

No decorrer do dia, as três relataram os horrores por que tinham passado. O trabalho pesado por doze horas, as parcas refeições, as torturas emocionais, os estupros e o medo de serem enviadas para as câmaras de gás.  O clima pesado dos tristes relatos era interrompido pelo choro da criança.  Sara então descobria o peito e o alimentava.

Ao cair da tarde, Herta levantou-se e disse-lhes para se deitarem um pouco, enquanto ela iria preparar uma sopa para o jantar. Elas insistiram em ajudá-la, mas ela recusou, por que achava que tinham que descansar para se recompor do que tinham passado naquele dia.

Ao se deitarem nas camas macias, agradeceram mais uma vez a Deus por aquela mulher que as acolhera. Mais tarde a sopa as revigorou mais um pouco, mas foram dormir cedo para estarem completamente restabelecidas no próximo dia.

Na manhã seguinte, a neve voltou a cobrir os campos ao redor.  A bela região cercada de florestas acomodou-se embaixo do cobertor branco e espesso daquela primavera fria.  Os ramos das árvores, ainda despidos de folhas, foram vestidos pela camada de gelo. 

Herta, como de costume, acordou cedo e começou o trabalho diário.  Alimentou os animais, resguardados em um galpão, onde ficavam quando o frio era intenso.

Entrou e fez a primeira refeição da manhã.  Estava feliz por ter a companhia daquelas infelizes mulheres, cujas vidas tinham sido interrompidas bruscamente pela loucura de um homem.

Aos poucos, Esther, Ruth e Lara foram aparecendo na cozinha aconchegante. O aroma do pão no forno era um presente para elas. Estavam mais dispostas, apesar do ar abatido dos seus rostos.   Cumprimentaram Herta com um abraço e ofereceram-se para ajudar nos serviços domésticos.

Sentaram-se à mesa e as histórias fluíram como a chuva que cai para limpar o céu cinzento.

 

ESTHER

 

Na pequena cidade às margens do Reno, bonita e antiga, com ruelas estreitas, calçadas por grandes pedras e de onde se avistava um imponente castelo do outro lado do largo rio, maior via fluvial da Alemanha até os dias de hoje, a vida deslizava calma e a convivência entre os habitantes era tranquila.  As pessoas se conheciam, mas o respeito pela vida particular dos outros sempre foi uma característica do povo alemão.

Uma pequena parcela de judeus mantinha algumas lojas, de onde tiravam o sustento de cada dia.  Os pais de Esther vendiam roupas, principalmente de inverno.  Ela fez um curso de enfermagem e tornou-se parteira.  Ajudou muitas crianças a virem ao mundo. Ela amava sua profissão, que abraçou bem jovem.  

Com o começo da guerra e a perseguição aos judeus, a vida da família foi virada do avesso.  Tudo se desenrolou de maneira muito rápida e inesperada.  Forças do exército nazista invadiram a cidade e depredaram as lojas da colônia judaica. Os pais de Esther foram arrancados de casa e levados pelos soldados.

No meio da confusão, a moça conseguiu refugiar-se na casa de uns amigos alemães, onde permaneceu escondida por um ano.  Porém a Gestapo começou a perceber que muitas pessoas tentavam ajudar os judeus, abrigando-os ou ajudando-os a fugir. E novamente o exército tomou conta de várias cidades, invadindo as residências à procura de judeus.

As notícias sobre essas invasões chegaram à pacata cidade do Reno e Esther, não querendo colocar a vida dos amigos em risco, avisou-os que iria fugir e em uma noite saiu sorrateiramente protegida pela escuridão.

Para onde ela iria? Com uma pequena sacola com alimentos e poucas roupas dirigiu-se a uma estreita estrada, para talvez encontrar abrigo em algum lugar mais seguro.  O caminho subia pelas encostas íngremes cobertas de vinhedos daquela bela e romântica região histórica, onde a riqueza de velhos tempos era representada pelos suntuosos castelos, que margeavam o rio, engastados como pedras preciosas nas altas montanhas.  Os vastos parreirais também contribuíam para a beleza e a fama daquele vale, fornecendo as uvas, que se transformavam no delicioso vinho daquelas plagas.

Esther caminhava devagar.  Ao alcançar um patamar, em que havia algumas árvores, já morta de cansaço, sentou-se e encostada a uma delas adormeceu. As primeiras luzes da aurora a acordaram, ela pegou um pedaço de pão com queijo e água e se alimentou.  Depois levantou-se e como estivesse carregando um peso enorme, continuou sua caminhada.  Mais além encontrou um agricultor, que cuidava de sua plantação.  Parou e perguntou-lhe se precisava de alguém para ajudá-lo.  O homem a examinou dos pés à cabeça e perguntou o que ela estava fazendo sozinha por aquele lugar.  Um frio correu-lhe pela espinha, mas não quis mentir e disse que estava fugindo por que era judia.  Ele franziu a testa e negou-lhe ajuda.

Decepcionada, seguiu o caminho.  Perambulou sem rumo pelo dia inteiro.  Onde poderia se esconder e se abrigar.  Ao anoitecer, exausta, deitou-se em uma relva, escondida por uns arbustos, perto de um extenso vinhedo e adormeceu.

Horas depois, quando o dia já começava a despertar, foi sacudida violentamente e abrindo os olhos assustada, viu-se agarrada por um soldado.  Tentou com todas as suas forças desvencilhar-se dele, mas a mão pesada segurou seu pulso, o que fez com que soltasse um grito de dor.

— Quem é você? Perguntou o soldado com brutalidade.  O que está fazendo? Fugindo?

— Estou procurando trabalho! Gaguejou com olhos arregalados de terror.  A guerra me tirou o que eu tinha.

— E aqui, neste lugar, você pretende arrumar trabalho? Como é seu nome?

— Esther.  Respondeu com uma voz quase inaudível.

— Nome judeu! Grunhiu o soldado.

— Há muitas alemãs com esse nome. É um nome bíblico.

— Você não é alemã.  Seus traços não mentem.  E apertou o pescoço da moça. Confesse ou eu te mato aqui mesmo. Os olhos do homem faiscavam de ódio.

Cheia de medo e cada vez mais assustada, ela confessou com uma raiva incontida.

— Sim, pertenço a uma família judaica, cujos bens foram arrancados por vocês e meus pais levados para não sei aonde.

O soldado desferiu-lhe uma forte bofetada, que a fez cair para trás e levou-a arrastada.  Ela tentava se soltar dele, ao que ele reagia, sacudindo-a com violência.

Foi levada a uma estação, onde a colocaram em um trem lotado, que a levou a Havensbrück.  Nunca mais soube do paradeiro da família. Os pais, tios, primos e um irmão desapareceram naquele dia fatídico em que os nazistas invadiram a pequena cidade.

Um pesado silêncio abateu-se na cozinha, quando ela terminou sua história. Durante algum tempo as mulheres ficaram estáticas como estátuas de pedra.

Herta levantou-se de repente e tentando animá-las, disse:

— Vamos meninas! Vamos nos mexer. O trabalho distrai nossas almas e espanta a tristeza.

As moças também se levantaram e as quatro dividiram os trabalhos rotineiros.  Sara e Herta cuidavam do bebê, ao mesmo tempo em que auxiliavam as outras.  Herta via o neto, que partira para sempre, naquela criança.

Depois do almoço, sentaram-se na sala, perto da lareira, que estalava e enchia o aposento de calor.  As chamas pareciam hipnotizar as mulheres e dessa vez, Ruth contou sua história.

 

RUTH

 

O verão tão esperado chegou com sol e céu azul na grande cidade, espantando o cinza escuro do resto do ano.  As pessoas passeavam animadas pelo parque e muitas se sentavam no gramado para aproveitar ao máximo o belo dia da estação mais quente do ano.  A temperatura estava amena, característica dos verões na Alemanha. 

Com um vestido florido e chapéu, Ruth sentou-se na relva para saborear o belo dia e aquele sol tão esperado.  Estava feliz.  Tinha começado um namoro há pouco tempo com um colega do trabalho e tinham marcado um encontro no belo parque.  Levantou o rosto para o céu, fechando os olhos com ar sonhador, pensando no porvir, que parecia auspicioso.  Quais surpresas que a vida lhe traria, tudo estava correndo tão bem. O trabalho como técnica de farmácia em uma grande empresa. A chegada do amor, que a estava enchendo de mil projetos...

De repente, o chapéu foi puxado para trás, descobrindo os cabelos dourados da moça. E lá estava ele, com um sorriso nos lábios.  Ruth devolveu o sorriso e Peter sentou-se ao seu lado.

— Bom dia, bela princesa!

— Bom dia! Onde está seu cavalo branco, querido príncipe.  Ela disse, devolvendo a brincadeira.

Riram alegres, provocando-se um ao outro em divertidas disputas.  Gostavam das mesmas coisas e tinham os mesmos objetivos e ambições.

Depois de algum tempo, levantaram-se e um demorado beijo os uniu. De mãos dadas, passearam pelo parque.  Jogaram pequenas pedras no riacho de águas verdes, que, entre altas e frondosas árvores, atravessava o extenso parque.

O dia foi se deitando mansamente, enlevado pelos raios avermelhados do pôr-do-sol.  A noite chegou sem pressa, estendendo o manto estrelado pela cidade.

Os dois jovens despediram-se, depois de um dia em que compartilharam o amor, que estava nascendo com força dentro deles.

Na manhã seguinte, Ruth foi trabalhar.  A felicidade espalhava-se pelo seu rosto.  Quando chegou ao laboratório, Peter veio ao seu encontro com um rosto sério e preocupado.

— O que aconteceu? Por que você está com essa cara?

— As notícias não são boas. O homem lá de cima está com umas ideias loucas. Uma delas é de nos perseguir por sermos judeus. Anda dizendo que somos donos da riqueza do país. E parece que quer conquistar outros países e difundir suas ideias.

— Li sobre isso, mas não acreditei que tais ideias fossem adiante.

— Mas pelas notícias estão se tornando realidade. 

Um frio intenso a invadiu.  Seu povo sempre sofreu perseguições ao longo dos séculos.  Mas por que isso agora?  Eram outros tempos. Trabalhavam e estudavam muito para progredir na vida com seu esforço e seguiam a religião secular dos antepassados com discrição.  Não podia entender.

— Ruth, vou sair da Alemanha.  Não confio nesse governo.  Tenho tios nos Estados Unidos.  Quero ir para lá.

A moça quase desabou com a notícia.

— E nós? Perguntou angustiada.

— Venha comigo.  Amo você.  Podemos nos casar lá.  Aqui está ficando muito perigoso.

— Não posso deixar minha família.

— Convença-os de ir também.

Arrasada, a jovem dirigiu-se à bancada, em que trabalhava.

Pense bem, querida! Peter disse, elevando a voz e foi para seus afazeres.

À noite, em casa, Ruth contou aos pais e irmãs, o que Peter lhe dissera.

O alvoroço tomou conta de todos. Não podiam ir.  As notícias eram exageradas.  O pai era engenheiro em uma fábrica de automóveis e era muito respeitado por seus pares e subordinados. Não, não podiam deixar para trás tudo o que tinham construído.  Ruth foi dormir como o coração amargurado, dividida entre a família e o homem de sua vida.

Os dias foram passando e Peter estava cada vez mais decidido em partir.  Convencera a família em ir com ele.

Ruth estava confusa. O medo crescia dentro dela, mas os pais e irmãs queriam esperar mais para ver o que iria acontecer.

Chegou o dia da grande decisão, Peter perguntou-lhe pela última vez, se iria com eles.  As passagens estavam compradas e eles iriam partir logo, antes que fosse tarde demais. Ainda dava tempo de ela comprar a passagem.

Ruth abraçou-se a ele e as lágrimas molharam o rosto do namorado.

— Não posso ir.  Não vou deixar meus pais.

Segurou o rosto do rapaz e deu-lhe um beijo demorado de despedida.  A dor da perda e o fim de seus sonhos estavam estampados no seu rosto triste.  Virou-se e saiu correndo sem olhar para trás.

Uma semana depois, o pai de Ruth chegou em casa com um semblante carregado.  Tinha sido demitido.  As perseguições e depredações nas casas dos judeus começaram cada vez mais fortes.  Eram marcados com a cruz de Davi para serem identificados.

Ruth e a família fugiram para o campo, porque as fronteiras já estavam fechadas para eles, porém ao sair do trem foram presos e separados.

Começou aí o calvário, que a levou para Havensbrück e os pais com certeza para um triste fim. O trem lotado e imundo, transportando pessoas para um incerto e infeliz destino, sem a mínima chance de se defender era uma de suas memórias mais terríveis.

Quando acabou o relato, baixou a cabeça, quase murmurando;

— Essa é a minha história.

Sara, que estava a seu lado, apertou a mão da amiga. Herta levantou-se.

— Vamos meninas! Vamos preparar o jantar! E com um sorriso escondeu o que lhe ia por dentro.

Levantando-se lentamente, as três a seguiram.

Quando acordaram no outro dia, tiveram uma agradável surpresa: um sol pálido esforçava-se em romper as nuvens. Ora aparecia, ora desaparecia.  Aos poucos, venceu a barreira que o escondia e timidamente firmou-se no céu.  A neve iluminada pelo astro rei refletia com intensidade a alvura do gelo, quase cegando quem olhasse para ela.

Herta abriu a porta da cozinha e sorveu o ar puro com prazer.  Depois de tantos dias escuros, a alegria de um dia ensolarado tomou conta dela.  Logo o verde e as flores viriam enfeitar os campos.  Ouviu passos atrás dela e virou-se.  Sara sorriu e ela quase se desmanchou ao ver aquele sorriso, apesar de perceber que a tristeza ainda morava nos olhos da moça.

— Venha querida! Hoje temos sol e céu azul.  E estendeu as mãos, tentando passar um pouco de força àquela nova mãe.

Em silêncio, as duas apreciaram o dia claro, que estava nascendo.  Depois entraram para fazer o café da manhã.  Logo depois, as quatro mulheres estavam sentadas à volta da mesa, os olhos voltados para a janela, perdidas em seus pensamentos.

Herta interrompeu o silêncio:

Vejam meninas, hoje está um bonito dia.  Podemos dar uma volta!

As três estremeceram, voltando a realidade e a conversa pela primeira vez foi entremeada de boas lembranças, o que desanuviou o ambiente.  O pequenino dormia placidamente ao lado delas no carrinho, que fora do neto de Herta.

Naquele momento, Sara olhou para o filho e começou a contar a sua história.

 

SARA

 

A pequena fazenda dos pais de Sara na Baviera, na região dos Alpes, ficava perto de um lago azul, rodeado de uma relva macia, onde, na primavera flores de diversas cores bordavam o verde.  Os pinheiros e os picos nevados ao longe completavam a beleza da paisagem.

Criadores de vacas leiteiras, o trabalho da família era intenso, apesar de contarem com alguns empregados, que ajudavam na lide diária.

Eram cinco irmãos.  Dois rapazes e três moças. Um irmão cursava engenharia em Munique, o outro ajudava o pai na administração da fazenda, onde também fabricavam deliciosos queijos.  Uma das irmãs era secretária em uma grande empresa de Munique.  A mais nova ainda estudava na escola local.

Sara era professora e lecionava em uma escola rural.  Adorava crianças e dar aulas era algo mágico para ela. Muitas vezes levava a turma para as florestas próximas para mostrar os pequenos animais e ensinar-lhes sobre a vegetação nativa.  Criativa, era muito admirada pela dedicação de transmitir conhecimentos de uma maneira lúdica e divertida.

Os sábados da família eram reservados para as práticas religiosas.  Nos domingos, depois da ordenha e da alimentação dos animais, reuniam-se à mesa, em que a conversa sobre a rotina de cada um corria alegre e solta.  Unida, a família, colaborava uns com os outros.

À tarde, Samuel aparecia para buscar Sara para longos passeios por aquele lugar paradisíaco.  Conheciam-se desde a infância. Eram inseparáveis. Corriam pelos campos.  Deliciavam-se com os frutos silvestres e no inverno deslizavam pela montanha em um trenó de madeira, feito pelo pai de Samuel, que era marceneiro.  Aos poucos, aquela amizade foi se transformando em um profundo amor.

Estudioso e inteligente entrou na faculdade de direito de Munique.  A jovem ficou feliz por ele, mas ao mesmo tempo receosa que a distância os afastasse.  Na estação, ele colocou um anel de compromisso no delicado dedo de Sara, que ficou surpreendida e emocionada.  Forte, decidida e de opiniões firmes, ela tinha também um lado muito sensível, que procurava esconder e só transparecia quando lidava com os pequenos alunos, que tanto amava.

Os anos de estudos de Samuel passaram entremeados de encontros, que aliviaram a separação. Ao voltar, depois da formatura, a data do casamento foi marcada.

Em uma manhã de fim de agosto, de temperatura amena e ensolarada, o movimento na casada da fazenda era frenético.  Na cozinha, muitas mulheres tagarelavam e riam enquanto preparavam o almoço. Uma grande mesa foi armada no jardim, coberta por uma toalha branca e enfeitada por vasos com flores coloridas. Os compridos bancos de madeira, que a cercavam davam o toque rústico à decoração.

Em um dos quartos, as duas irmãs ajudavam Sara a se vestir. O vestido simples e uma coroa de flores do campo enfeitavam o belo rosto da noiva. Os cabelos castanhos e os olhos de um profundo azul acentuavam ainda mais a beleza da jovem.

 A excitação e a alegria espalhavam-se pela casa inteira.  Afinal, chegara o grande dia para Sara e Samuel.

Quando Sara saiu para a realização da cerimônia, todos ficaram emocionados.  Ela estava linda.  A tranquilidade e felicidade iluminavam seu rosto.

Um noivo muito ansioso e também emocionado a recebeu em um altar improvisado no jardim, onde o rabino, amigo de muitos anos da família iria realizar os rituais do casamento.

O almoço farto e a alegria dos convidados prolongaram a festa até o entardecer.

Durante dois meses, o novo casal desfrutou do grande amor que os unira. Felizes passeavam pelos campos, fazendo planos para o futuro.  Decidiram que nos primeiros tempos morariam na fazenda e depois talvez mudassem para uma cidade maior.

Certa tarde, porém, Samuel chegou à casa, muito assustado.  Ouvira na pequena cidade, que o exército nazista se aproximava da região e que judeus eram mortos ou levados para trabalhos forçados.

O pai de Sara ligou o velho rádio.  As notícias eram assustadoras.  O povo era incitado a revelar o paradeiro dos judeus, ciganos e pessoas consideradas não arianas.  A guerra começara com invasões aos países vizinhos.

 

— Precisamos ir embora!  Temos que fugir o mais rápido possível! Exclamou Samuel.

— Não.  Vou esperar mais um pouco.  Talvez as coisas melhorem.  Não quero me precipitar.

Como em muitas outras famílias de judeus, as pessoas não queriam acreditar que as suas vidas estavam em perigo.

— Por favor, Sr. Kaufman, temos que sair da Alemanha. As coisas vão só piorar!

Mas o velho sogro não queria deixar tudo o que tinha: a amada fazenda, os animais, o lugar que vivera a vida toda e ir para um destino incerto.  Queria esperar um pouco para ver o desenrolar dos fatos.

O clima ficou tenso.  Sara concordou com o marido e tentava convencer o pai de fugirem.

Três dias depois, Samuel foi à cidade para conversar com os pais e mais uma vez convencê-los de fugir o mais depressa possível.  Todos estavam aturdidos.  Não queriam acreditar que tinham que deixar o que construíram por anos.

Na fazenda, os trabalhos diários começaram, mas uma nuvem escura envolvia o coração de todos.  Sara não foi à escola.  Sentiu que a energia e disposição, que sempre tivera, foram sugadas por um rodamoinho de emoções contraditórias.  Medo e revolta travavam-lhe a razão. Tentou concentrar-se nos trabalhos caseiros.

Às dez horas da manhã, um barulho estranho, como um tropel aproximou-se da fazenda.  Todos pararam o que faziam para ver o que estava acontecendo.  Consternados, depararam-se com uma tropa de oficiais, que entrou pela fazenda como feras, que correm para apanhar suas presas. O terror estampou-se no rosto de cada um. O pai de Sara adiantou-se e gritou com raiva:

— O que vocês querem aqui?

— Quem você pensa que é? O comandante gritou.

E apontando a arma, disparou, matando o pobre homem. Vários tiros ecoaram pelo lugar e um a um, os homens foram caindo.

A mãe de Sara apareceu à porta da cozinha.  Desesperada, chamava pelo marido.  Correu até o corpo, meio encolhido no meio do pátio e debruçou-se.  Um choro convulso sacudia-lhe toda. Um oficial aproximou-se e sem piedade atirou.

Sara assistiu a tudo de uma das janelas da casa e quase desfaleceu ao ver aquela cena de horror, mas juntando as forças, que sempre tivera, correu para dentro, chamou a irmã mais nova e subiram as escadas, que levava ao sótão e lá se esconderam embaixo de uma cama de casal.

Os nazistas invadiram a casa e vasculharam cada cômodo, destruindo tudo que encontravam pela frente.  Dois deles subiram até o sótão e abriram as portas de um armário, procurando por alguém escondido.  Já iam descer, quando a irmã começou a soluçar.  Sara tapou-lhe a boca, mas era tarde demais.  Foram descobertas.  Puxaram-nas com violência e um deles apontou a arma. O outro, porém, o deteve.

— Não, não atire.  Essas são jovens e fortes. Podem ser úteis nos campos de trabalho.

E as arrastaram pela casa.  Sara tentava desvencilhar-se dos algozes. Já lá fora, Sara ao passar pelos corpos dos pais, do irmão e dos outros sentiu um ódio tão profundo, que apertou seu coração e escureceu seus olhos.  Levantou a cabeça, como a desafiar os homens e seguiu pela estrada.  Queria se manter viva.  Essa seria a vitória sobre eles.

Mais tarde, foram enviadas em um trem de carga, onde as pessoas se apinhavam de forma desumana.  O cheiro do medo espalhava-se pelo vagão.  Sara abraçou a irmã e procurava dar-lhe coragem.

O trem parou em três estações, onde muitos eram despejados como uma mercadoria para destinos imprevistos. Em uma dessas paragens arrancaram a irmã de Sara, que se agarrava a ela com desespero e a levaram.  Os gritos lancinantes da jovem eram ouvidos ao longe.  Sara quis ir com ela, mas a empurraram para dentro e ela caiu sentada no chão duro.  Com as mãos cobriu o rosto e os soluços a sacudiram. Nenhuma lágrima brotou em seus olhos.  Era como se ela houvesse secado por dentro e a alma tivesse sido deixada para trás.  Esquecendo a promessa que fez a si mesma, naquele momento desejou morrer.

Depois de horas, chegaram a Berlim e ela foi levada ao campo de concentração de Havensbrück.  Cortaram-lhe os longos cabelos e ela vestiu as roupas largas das prisioneiras.  Nas primeiras semanas, ela agia como um autômato.  Com o rosto sem expressão, executava o pesado trabalho, que impunham e se escondia atrás de uma revoltada mudez.  A morte seria um alívio, pensava constantemente.

As companheiras, compreendendo o sofrimento da moça, começaram a incentivá-la a reagir e não se deixar levar pela crueldade da situação. Tinham que sobreviver a qualquer custo, diziam a ela.  Aos poucos, a força que sempre tivera voltou devagar e ela começou a lutar pela vida, como se tinha prometido ao ser presa.

Os anos foram passando.  Sara trabalhava doze horas por dia como operária em uma grande empresa.  O trabalho era extenuante, mas as refeições compensavam. Várias companheiras tornaram-se amigas dela, mas duas eram as mais próximas, Esther e Ruth, que trabalhavam ao lado dela na fábrica.

Muitas mulheres, porém, não resistiam aos trabalhos pesados e aos maus tratos no campo.  A brutalidade dos oficiais estava sempre presente.  Depois de algum tempo, câmaras de gás foram instaladas e as mulheres debilitadas, que já não conseguiam trabalhar ou que estavam grávidas eram levadas para lá. O medo era uma emoção que pairava sobre elas.

Magra e pálida, apenas os olhos de intenso azul de Sara ainda marcavam sua beleza. Certo dia, um dos oficiais, que fazia a chamada diária notou os belos olhos da prisioneira e a delicadeza do rosto dela.  Aproximou-se dela e disse de maneira grosseira:

— Hoje você não vai com as outras. Vai ficar comigo.

A pobre moça arregalou os olhos. Sabia perfeitamente o que isso significava.  O estupro era uma das torturas, que as mulheres sofriam ali.  Ela ficou estática, como se fosse feita de pedra.  O oficial a puxou e a levou para uma sala, onde extravasou os instintos mais primitivos.  Quando Sara voltou ao alojamento, lavou o corpo todo e era como também quisesse limpar a alma.

Durante vários dias, o homem a levava para a sala.  Ela estava devastada pela violência, que sofria.  Um dia ele não apareceu e as mulheres supuseram que fora transferido.

Dois meses passaram e Sara percebeu, que o corpo estava mudando.  Estava grávida.  Como iria enfrentar mais esse desafio.  Nos primeiros meses, à noite, no catre duro, em que dormia, batia na barriga, com raiva, tentando provocar um aborto.  Os guardas não podiam desconfiar, que estava grávida, senão iria para a câmara de gás.  O tempo foi passando e ao sentir os movimentos da criança dentro de si, um sentimento contraditório a invadiu.  Aquele ser era também parte dela e não tinha culpa de ter sido gerado, mas ao mesmo tempo era fruto da violência de um homem, por quem sentia asco e odiava.  A dúvida foi vencida pelo forte instinto materno, que sempre tivera e que a tornou uma professora tão querida.

Durante os nove meses de gravidez, teve o apoio e a proteção das companheiras, principalmente das duas grandes amigas, Esther e Ruth.

Quando terminou de contar sua história, estava exausta, pelo turbilhão de emoções, que essas lembranças causaram, mas ao mesmo tempo, aliviada de pôr aquilo tudo para fora.  As lágrimas das companheiras molhavam a mesa.  O silêncio foi quebrado pelo choro do bebê.  Todas o olharam com compaixão e ternura.  A mãe vencedora de difíceis batalhas o pegou no colo e o amamentou, enquanto, com carinho, passava a mão pelo rostinho daquele filho inesperado.

 

 

Dias depois, uma onda de notícias desencontradas invadiu os jornais e rádio locais.  A Alemanha estava sendo tomada pelos aliados.  As pessoas ansiosas procuravam saber se isso realmente era verdadeiro.  Logo de manhã, Herta ligou o velho rádio e com surpresa, ouviu a notícia da rendição da Alemanha. Era oito de maio de 1945.  A alegria e a esperança tomaram conta daquelas intrépidas e sofridas mulheres.  As quatro abraçaram-se e a bondosa senhora fez um bolo e tirou do fundo do armário uma velha garrafa de champanhe para comemorar o fim da guerra.

Esther, Ruth e Sara conversaram com Herta, dizendo que tinham que seguir suas vidas.  Herta, porém, se opôs.  Naqueles poucos dias, tinha se apegado às hospedes, que trouxeram movimento a alegria a sua solidão, apesar dos anos negros por que tinham passado.

— Entendo que queiram continuar as vidas que interromperam, mas acho que devem fazer isso com calma.  Para onde vocês pretendem ir? Já sabem?

Ruth foi a primeira a responder:

— Um primo muito amigo de meu pai mora nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York e trocavam tantas cartas, que eu gostava de ler, que guardei o endereço dele na memória. Tenho certeza que me receberia bem até eu arrumar minha vida.

—Ótimo, Ruth! Precisamos descobrir como você pode chegar até lá.

— É verdade! Respondeu ela pensativa.

— Infelizmente não tenho ninguém fora da Alemanha a não ser um parente distante, que emigrou para a Austrália e nunca mais tivemos notícias dele.  Exclamou Esther.

— Também não tenho ninguém fora da Alemanha.  Disse pesarosa Sara.

— Então temos que resolver para onde vocês irão, com muita calma.  Tenho certeza que vamos conseguir. Disse Herta.

Na Alemanha arrasada, o povo tentava se reerguer.  Uns partiam de lá com medo de novas guerras, outros tentavam reorganizar as vidas.

Herta e Ruth souberam que havia um escritório americano em Berlim para tratar da divisão da cidade entre os aliados.  Arriscaram ir até lá, onde contaram a história de Ruth e mostraram o endereço da família em Nova York.  Depois de diversas idas e vindas, o primo de Ruth foi contatado e ela recebeu autorização para deixar a Alemanha.

O mês de junho veio com temperaturas agradáveis e dias ensolarados.  As flores cobriam os campos e o verde voltou a cobrir a vegetação.  As quatro mulheres aproveitaram para passear pela bela região, para se despedir de Ruth, que ia partir no começo da noite.  Herta queria que ela levasse aquele bonito lugar na memória.  A moça detinha o olhar em cada aspecto da paisagem do país em que nasceu e onde perdeu tudo.

Ao anoitecer, as quatro estavam no aeroporto e entre lágrimas e abraços disseram adeus à amiga.  Sara, apesar de muito emocionada não conseguiu chorar.  O avião que a levaria para uma nova vida decolou com suavidade e elas o seguiram com o olhar, desejando no íntimo que tivesse boa sorte.

Voltaram para casa tristes e felizes ao mesmo tempo.  Tristes pela partida da amiga e felizes por que trilharia um novo caminho.

No café da manhã seguinte, a situação de Sara e Esther foi discutida.  Não queriam permanecer na Alemanha, mas para onde iriam?

Herta lhes disse que poderiam ficar com ela, quanto tempo que quisessem, porque levaram um novo alento para ela.

— A senhora é uma pessoa incrível, mas Esther e eu não queremos ficar neste país, que nos roubou tudo!  Esther assentiu com a cabeça.

— Concordo.  Temos que ir para outro lugar para tentar esquecer o que nos aconteceu aqui.

— Entendo vocês! Se fosse mais jovem talvez também iria embora.  Acho que posso ajudá-las.  Minha nora mora com os pais no Brasil, como vocês sabem.  Vou escrever para eles.  Acho que não se recusarão em ajudá-las.

— Obrigada! Disseram juntas. E Sara acrescentou:

—Nunca seremos capazes de agradecer-lhe pelo bem que nos está fazendo.  A senhora estará sempre em nossos corações e em nossas memórias até o fim de nossas vidas.

— Assino embaixo dessas palavras!  Acrescentou Esther.

Herta, comovida, olhou para as duas com ternura.

— Vou escrever para minha nora!

Mais de um mês depois, veio a resposta e elas não couberam em si de alegria.  Os pais e Anne receberiam as duas e as ajudariam a se estabelecer no país.

Vários foram os trâmites para elas conseguirem sair da Alemanha.  Iriam de avião a Lisboa e de lá partiriam de navio para o Brasil.

Em uma tarde, as três sentaram-se no gramado. O bebê foi colocado em cima de um lençol para tomar sol. Sacudindo as perninhas e os bracinhos, ele sorria, querendo chamar a atenção delas, que se derretiam e lhe mostravam um ursinho de pelúcia.

Sara e Esther tiveram, então, uma longa conversa com a benfeitora.  Queriam que ela fosse com elas para o Brasil. Mostraram todas as vantagens dessa mudança: a proximidade com o neto e a nora, com elas e a distância do país, em que perdeu o único filho.  Mas ela resistiu.

— Não, minhas queridas! Já não tenho mais disposição de sair daqui para um país distante. Não tenho mais idade para recomeçar.  Não sei onde meu filho foi enterrado, mas para mim, parece que aqui estou mais perto dele. Tenho também velhos amigos, que me apoiaram nos anos difíceis da guerra.

Sara e Esther olharam para ela com tristeza. Ela foi como uma mãe naqueles meses.

— Vamos sempre nos comunicar.  Queremos enviar e receber muitas cartas. E gostaria de lhe dizer outra decisão minha.  Meu filho vai se chamar Joachim. Quero que ele tenha o nome de seu filho.

Herta abraçou Sara, comovida.

— Obrigada, por essa homenagem ao Joachim.

Uma semana depois, elas e a criança partiram. A despedida foi repleta de emoções.  Herta abanou um lenço até elas entrarem no avião.

Chegaram a Lisboa e foram abrigadas pelo governo português por três dias, depois dos quais embarcaram em um navio de bandeira portuguesa para Santos.

A viagem marítima costumava demorar cerca de quinze dias. O céu e o mar eram a única paisagem.  O tédio e a expectativa desencadearam ansiedade nas duas mulheres.  Após dias sem ver terra, a costa brasileira foi avistada e a beleza verdejante do litoral encantou-as.  Que belo país era esse, que seria o novo lar delas.

Chegaram a Santos em um dia claro.  Nuvens brancas encobriam um pouco o sol.  Curiosas admiravam a praia ao longe, debruada por grandes casarões. O navio foi se aproximando do porto e atracou mansamente.  No cais uma pequena multidão esperava por entes queridos. As duas perguntaram-se como encontrariam Anne e a família, que tinha escrito que iriam esperá-las.  Herta tinha lhes dado uma fotografia da nora e dos pais, mas de anos atrás.

  Nervosas desceram devagar do navio e ficaram paradas na plataforma. Joachim ia de um colo para outro, excitado com o movimento.  O cais foi esvaziando e elas viram um casal acompanhado de uma moça e um menino.  Ao mesmo tempo, eles viram as duas moças paradas com o bebê, que pareciam perdidas à procura de alguém.  Aproximaram-se e a recepção calorosa apaziguou-as.  A dúvida de que seriam um peso para aquela família desvaneceu-se.

Os Schmidt moravam na zona sul de São Paulo, região que abrigava uma grande parte da colônia alemã da cidade.  A casa era grande e confortável com um grande jardim e um quintal, onde jabuticabeiras e abacateiros cercados por um gramado e uma pequena horta cresciam vigorosos. No fundo, havia uma construção com um amplo quarto, banheiro e uma pequena cozinha.

Lá as hóspedes foram instaladas para terem mais liberdade e se sentirem à vontade. Antes da chegada delas, o Sr. Schmidt já tinha pesquisado lugares em que elas pudessem trabalhar. Por ter muitos conhecimentos, soube que havia uma vaga de enfermeira no hospital alemão da cidade.  Esther teria que ir a uma entrevista para conseguir o lugar.  Descobriu também que uma escola judaica no Brás estava precisando de professores.

Sara e Esther ficaram entusiasmadas por essas possibilidades, que estavam surgindo tão rapidamente.

A família de Anne as tratava com muito carinho e respeito, ajudando-as a se adaptar à nova vida.  Anne começou a ensinar-lhes português.

Uma manhã, Anne levou Esther para a entrevista. Quando saiu, a jovem tinha um sorriso satisfeito.  Tinha sido aceita.  Na conversa mostrou que tinha sólidos conhecimentos de enfermagem.

Dois dias depois, foi a vez de Sara ser entrevistada na escola.  A descrição de como trabalhava conquistou o diretor, que ficou admirado com a capacidade dela em envolver os alunos.

As duas estavam felizes.  Tinham conseguido trabalho.

A família, que as acolheu, acalmou-as.  Elas poderiam ficar morando com eles.  Eles cuidariam do bebê de Sara, enquanto estivesse fora.  As duas não podiam acreditar na sorte, que estavam tendo. Pareceu-lhes que Deus as estava compensando dos terríveis anos, que haviam vivido.

Sara e Esther ingressaram nos novos trabalhos, que absorviam a atenção e desviavam os pensamentos das tristes memórias, que lhes assaltavam de vez em quando.

Passo a passo, foram dominando a nova língua.  A única dificuldade era o sotaque alemão, que era difícil de desaparecer.

Depois de três meses de trabalho fizeram questão de pagar um aluguel à família.  Sara ofereceu uma pequena quantia por tomarem conta de Joachim. Eles protestaram. Não precisavam daquelas dependências e cuidar da criança os alegrava.  O menino estava se desenvolvendo bem e se tornou muito apegado a eles. Por isso, não queriam aceitar, mas elas insistiram tanto que, para não as constranger e as deixar à vontade, concordaram.

Herta não foi esquecida.  Trocavam cartas com ela, contando sobre os trabalhos e o menino, que crescia.  Correspondiam-se também com Ruth, que tinha um bom emprego e ganhava bem.  Souberam que depois de dois anos deixou a casa do primo e alugou um pequeno apartamento.  Tinha algumas aventuras amorosas, mas não queria se prender a ninguém.  Depois de tanto tempo presa, queria liberdade de fazer o que quisesse. Adorava ir a exposições e a concertos. E perambular pela cidade, sentindo a vida vibrante da cidade a inebriava.  Estava completamente adaptada ao estilo de vida americano.

Os anos foram passando.  Aos quatro anos, Joachim ingressou na escola em que Sara dava aulas.  Saia cedo com a mãe e voltava por volta do meio do dia.  Era um caminho longo.  Pegavam o bonde, que ia até a Praça João Mendes e caminhavam até a Praça Clóvis Bevilaqua para pegar o ônibus até o Brás. Na maioria das vezes, o pequeno adormecia no colo da mãe ao voltar para casa.

Passaram-se seis anos.  Joachim e Thomas, filho de Anne, eram a alegria da casa.  Apesar da diferença de idade eram grandes amigos e juntos aprontavam algumas traquinagens. Ajudado por Thomas. Joachim aprendeu a subir nas árvores do quintal, o que deixava Sara em pânico, com receio que ele caísse, mas ele era muito esperto e sabia se segurar nos galhos como Thomas.

Aos domingos almoçavam todos juntos.  As mulheres preparavam o almoço e conversavam sobre os acontecimentos da semana.  À tarde, muitas vezes, Anne, Sara e Esther e os meninos iam ao cinema ou passeavam pela cidade.  A amizade entre as três cresceu ao longo do tempo.  Em um domingo, em que se deliciavam com um sorvete no centro da cidade, Anne contou que estava interessada em um rapaz.  Ambos trabalhavam na mesma empresa.  Iam almoçar todos os dias juntos e ele era muito atencioso, sempre procurando agradá-la.  Sara e Esther divertiram-se em brincar com ela e em incentivá-la a construir um novo relacionamento, depois de tantos anos de viuvez.

Na sua rotina diária, Esther conheceu um médico e o amor brotou entre eles.  O namoro enlevou a enfermeira e um brilho de felicidade surgiu nos olhos da moça.

As duas começaram a sair aos domingos com os namorados e Sara se sentiu mais só. Dedicava-se cada vez mais a Joachim, o que preenchia o vazio, que sentia dentro dela.

Em uma tarde, Sara voltou da escola com o menino e a mãe de Anne veio ao seu encontro com um aspecto sério e triste.

 — O que aconteceu? Perguntou assustada.

Frieda segurou as mãos dela e apertou.

— Chegou uma carta da Alemanha. Herta morreu de um ataque de coração.

— Não, não pode ser! Ela era tão forte.  Ainda na semana passada, recebemos uma carta dela. E encostou a cabeça no ombro na sua boa amiga.

— Por que você está assim, mamãe? Perguntou assustado Joachin.

— A sua vovó da Alemanha foi para o céu.  Disse, recompondo-se.

— Ela morreu! Agora eu não tenho mais a minha avó alemã! Resmungou ele lamurioso.

Sara olhou para Frieda e disse:

— E esta avó bem aqui na sua frente.   

O menino agarrou-se às pernas da outra avó, que ganhara ao chegar ao Brasil e ela pegou-o no colo.

Certo dia, Joachim acordou com febre e dor de garganta.  Sara foi para a escola sozinha.  Era dia de folga de Esther, que ficou cuidando dele.  Estava preocupada, mas sabia-o em boas mãos.

Na volta para casa, no horário costumeiro, Sara esperava pelo bonde na Praça João Mendes.  Estava ansiosa para chegar em casa e ver o filho.

De repente, um aperto no coração a imobilizou.  A poucos metros dela, estava um rapaz, elegantemente vestido de terno e gravata. ¨Não pode ser¨, pensou.  ¨Devo estar sonhando. Estava mais velho.  Alguns frios brancos enfeitavam lhe as têmporas.  Mas era ele. Andou em sua direção e gritou:

— Samuel?

Ele olhou para ela e o espanto invadiu seu rosto.

— Sara? É você? Como pode ser?

Os dois abraçaram-se confusos.  Depois olharam-se como se reconhecendo.

— Você está viva! Pensei que tinha morrido naquele dia fatídico.

— Não, não morri com eles.  É uma longa história.

Puxando-a pela mão, ele a levou até um bar próximo e sentaram-se em um banco alto, junto ao balcão. Depois de pedir uma bebida, contou-lhe que estivera na fazenda depois da chacina. Os corpos não estavam mais lá, mas havia muito sangue espalhado pelo chão.  Urrando de dor e ódio voltou para a cidade. Os pais também tinham desaparecido e a marcenaria depredada.

Pegou o diploma, os documentos e uma troca de roupa e subiu na velha caminhonete do pai.  Saiu como um louco pela velha estrada, conhecida apenas pelos habitantes locais.  Estava fora de si.  Até hoje não sabe como conseguiu dirigir.  Depois de algumas horas, atordoado pelo acontecido e os solavancos da estrada chegou perto da fronteira da Suíça e com muita cautela conseguiu passar para o outro lado em uma área desabitada.  A Suíça era um país neutro e lá estaria mais seguro.  Chegou a Berna depois de muitas horas e pediu asilo.  Foi informado que era melhor ir para um país longe dali e lhe indicaram o consulado brasileiro.  Depois de muito insistir, informaram, que na França, um cônsul português, estava concedendo vistos aos judeus. Implorou para que lhe dessem uma passagem até a França.  Conseguido o bilhete, partiu para a França, onde obteve o tão desejado visto, que o levou a Portugal.  Chegando lá, descobriu que Salazar não via com bons olhos o ingresso de judeus no país e por essa razão o governo quis logo despachá-lo para o Brasil, o que para ele foi um motivo de muita satisfação.

Chegando aqui, procurou uma sinagoga para contar sua história. O rabino entrou em contato com alguns membros da colônia judaica e arranjou-lhe abrigo na casa de um comerciante, com a condição de trabalhar em sua loja.  Durante dois anos trabalhou no pequeno estabelecimento do anfitrião. À noite dedicava-se com afinco em conhecer as leis brasileiras.  No fim desses anos, soube que precisava prestar exame na OAB para exercer a advocacia no Brasil. Estudou muito durante algum tempo e confiante prestou o exame.  Passou e conseguiu trabalho em um escritório de advogados. Especializou-se em direito internacional e galgou vários degraus na profissão.

Terminou o relato com um profundo suspiro.

— E aqui estou eu, desde então, levando minha vida.  Tive várias candidatas ao meu coração, mas não consegui me ligar a nenhuma.  Sua lembrança esteve sempre presente em mim.

— E você, o que lhe aconteceu?

Sara contou a sua história. A voz pausada era interrompida por segundos de silêncio, em que respirava fundo, procurando o ar que lhe fugia.

Samuel ouvia com o peito apertado pela descrição do sofrimento que ela passara. Ela desviava o rosto para não ver a reação do rapaz. O relato do estupro fez com que ele fechasse o punho e desse um soco no balcão, balançando a cabeça transtornado.  O nascimento do filho de Sara, a decisão de aceitá-lo e o amor que ela tinha por ele nublou o rosto de Samuel.  Baixando os olhos, contou-lhe como fora salva por uma bondosa mulher, junto com as amigas e como era sua vida no país que a acolheu. 

Quando terminou, pousou o olhar no rosto do marido e estranhou a expressão dele.  O rosto contraído do rapaz destilava ódio e um esgar de desprezo apertou-lhe os lábios.

— Como você fez isso? Ficar com o filho de um desgraçado desse?

Ela encolheu-se.

— Ele é parte de mim. Não podia deixá-lo morrer.  Foi parte do meu corpo durante nove meses. Adoro meu filho. É uma criança meiga e linda, que me dá forças para lutar.  Hoje não está comigo porque está doente.  Se não estaria aqui agora.  Frequenta a escola, em que dou aulas no Brás.  Não sei se você conhece. É uma escola judaica.

— Já ouvi falar. Respondeu secamente.

Sua atitude tinha mudado. Estava com uma expressão dura e fria.

Sara estendeu a mão para segurar a dele, mas Samuel a retirou de maneira brusca.

— Por que você está agindo assim?

— Não posso te aceitar de volta, por mais que você foi a mulher de minha vida.  Não quero ter perto de mim o filho de um torturador de judeus.  E levantou-se e foi embora sem olhar para trás, ela levantou-se do banco devagar, como que hipnotizada.

Mais tarde contou para Esther e Anne o acontecido.  A palidez pintava o rosto bonito. A amargura transparecia na sua voz. Elas a consolaram, dizendo que se Samuel agiu assim, não merecia a grande mulher, que ela era.

À noite, mediu a temperatura de Joachim e ficou aliviada ao ver que estava sem febre. Era um menino forte.  Colocou-o com um beijo na cama e deitou-se ao lado dele.  Pela segunda vez tinha perdido o grande amor de sua vida, mas não se arrependeu da escolha que fez naquela noite fria em que o menino veio ao mundo.  Ele era sua força e o que a movia para um futuro melhor.

Passaram-se semanas.  Sara cumpriu as horas de aulas e foi buscar Joachim na outra sala.  Conversou com a professora, que sempre elogiava o comportamento e a inteligência do menino.  Os dois saíram de mãos dadas. O menino tagarelava sem parar, contando tudo o que tinha feito na classe e com os coleguinhas. Ela sorria pelo entusiasmo que ele sempre tinha ao sair da escola.

Ao levantar os olhos, estacou de repente surpreendida.  Perto da porta da escola, estava Samuel parado.  Um arrepio percorreu seu corpo.

— Por que você parou, mamãe?

 Ela não respondeu.  Samuel veio em sua direção. O rosto estava sério, mas o olhar era de um homem apaixonado.

 — Desculpe, Sara. Fui bruto. O ódio cegou-me.  Precisei digerir tudo o que lhe aconteceu. Nunca deixei de te amar. E dizendo isso, abraçou-a. Ela correspondeu ao abraço e pela primeira vez em muitos anos, lágrimas rolaram pelo seu rosto.

— Mamãe, quem é esse homem?

Samuel virou-se para ele e pegou-o ao colo e respondeu emocionado:

 — Sou seu pai.

O menino gritou de alegria:

—Eu tenho um pai!  Eu tenho um pai!

Ele olhou para o menino e percebeu que ele era a cara da mãe.  Um lindo menino, de cabelos castanhos e profundos olhos azuis.

Colocou-o com delicadeza no chão e os três de mãos dadas foram pela rua.  O nascimento de uma nova vida principiou naquele momento.

 







DE TOMMASO, sempre muito interessada em acompanhar as atividades do ICAL, patrocinou a premiação para este romance vencedor, uma mala de viagem para a Adelaide viajar, aproveitar a vida.





O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...