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terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

COISAS DE CARNAVAL! - Dinah Ribeiro de Amorim

 





COISAS DE CARNAVAL!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Salão cheio, muita conversa, muito tititi... confusão. “Parece que deixam os arranjos para a última hora”, exclama Conceição, a dona, aflita. São cabelos com caracóis, apliques, sem contar unhas, cílios postiços, maquilagens e colocação das fantasias. Prontos para o desfile.

Nervosismo e animação correm soltos, falam ao mesmo tempo. Nada mexe tanto como o Carnaval. Meses preparando roupas, corpos em regime, ginásticas, claras-batidas, só para a apoteose de uma noite ou brincadeiras de três dias.

A cliente mais assídua é Irene, grande carnavalesca. Todo ano é destaque na escola. Quer ficar deslumbrante! Mulher bonita, morena – jambo, olhos verdes, revela a ascendência mista. De corpo escultural, samba como ninguém. Rodinhas nos pés

Irene e Valério conheceram-se numa noite de Carnaval. Ambos empolgados pelas escolas, defendiam com garra suas exibições.

Apaixonaram-se, sambaram muito, casaram-se. O amor ao Carnaval e às escolas, continuou. Chegavam os ensaios, esqueciam-se de tudo: trabalho, filhos, família, cada um pensando em defender a sua. Até serem marido e mulher, deixam de lado.

Com o tempo, Valério muda, o interesse diminui. As preocupações com trabalho, dinheiro, sustento da família, aumento de posição, deixam-no sério, altivo, não se agrada mais com bailes carnavalescos. Acha perda de tempo e dinheiro, grande desgaste e pouco retorno. Começa a sentir vergonha de aparecer em público e exibir a mulher. Que diriam os amigos!

Irene, ao contrário, com o aumento de responsabilidades, aguarda ansiosamente a chegada do Carnaval, para viver uma ilusão, um momento mágico, mesmo por pouco tempo. Começa a achar que Valério já não é o mesmo.

Iniciam-se as brigas do casal. Valério a proíbe de se desnudar no meio do povo e Irene o acusa de ciumento, agora é madrinha de bateria, lugar de honra na escola.

Contraria o marido, que a olha de modo estranho e vai aos ensaios. Prepara linda fantasia cravejada de lantejoulas e cristais, gasta uma fortuna. Plumas de pavão, verdadeiras, enfeitam sua cabeleira e descem até as costas.

Ajudada por Inês, a vizinha, que ama Carnaval, recebe alguns retoques. Inês não pode sair em escolas de samba. Cuida da mãe doente, mas ajuda Irene. Valério desiste de brigar, mas, no íntimo, condena a mulher, repudia cada brilho da roupa e movimento de dança.

Chega a hora do desfile e Irene, emocionada e nervosa, escuta aplausos e vê olhares de admiração. Entrega-se totalmente ao momento de glória, único, para muitos, durante o ano. Nem repara que, enquanto desfila, graciosa e com muito samba no pé, a acompanha um passista, desconhecido, fantasiado de Pierrô, mascarado e irreconhecível.

Chamam atenção, e ela acha ótimo ter alguém ao lado. Seria sua Colombina.

Suados e cansados, trocam olhares e sorrisos. Após o desfile, procuram lugar para beber e descansar.

Irene, ignora o acompanhante que lhe traz lembranças, aceita seus galanteios, entontecida pelo cansaço, emoção e bebida.

Ele se oferece para levá-la em casa. Escolhe um caminho afastado, meio vazio, longe do batuque das baterias. Irene deixa-se conduzir, certa de que seu par estava apenas sendo gentil.

Qual não foi a surpresa quando o Pierrô, segurando-a bruscamente pelo braço, tira a máscara e ela reconhece Valério. Este, carrancudo e magoado, ciumento da esposa que facilmente o trairia, aperta-lhe forte o pescoço e tira-lhe o ar. Irene desmaia.

Inês, a auxiliar de sempre, estando à janela, avista Valério quando sai fantasiado, logo após a amiga. Desconfiada, sabendo que ambos estavam brigados, chama um policial e vão atrás do Pierrô. Acompanham seus passos. Chegam a tempo de pegar Valério, mas não de salvar Irene das mãos que a sufocaram.

Em plena folia, misturado entre passantes bêbados e risonhos, jaz o corpo de Irene, uma eterna amante do Carnaval que, de tanto amar, acabou dando a vida.

         

FANTASMAS DE CARNAVAL! - Dinah Ribeiro de Amorim

 



FANTASMAS DE CARNAVAL!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Era Carnaval! Desci até a entrada do prédio, para esperar umas amigas que viriam me buscar. Iríamos a uma festa à fantasia.

Elas estavam atrasadas e eu muito adiantada! Parei para ajeitar um pouco o chapéu, num espelho da parede, que estava incomodando! Minha fantasia era de vovó mesmo, só que do tempo antigo.

Escuto, de repente, uma voz baixinha, falando qualquer coisa como:

— Gostaria de ir junto!  Posso sair com você?  Fui passista de escola de samba!

Olho, assustada, pelo espelho e vejo uma moça, quase menina, sentada no sofá. Não havia percebido sua entrada nem notara sua presença quando desci ao hall! E é um lugar pequeno!

Olhei para ela, um tanto surpresa, não respondi nada e ela me olhou, sacudiu os ombros e se espantou com a minha indiferença...

As amigas chegaram, saímos, brincamos muito, esqueci-me do acontecido!

No dia seguinte, avistei o zelador e entre uma conversa e outra, perguntei quem era a mocinha, morena, com jeito de cabocla, fala macia e baixa, sentada à noite, na entrada do prédio, querendo sair comigo?

Ele, de início, não soube responder, mas olharia no controle automático, para ver quem seria? Qual o andar?

Quando o encontrei, novamente, perguntei:

— E aí? Conseguiu ver quem era, no sábado, à noite, sentada no sofá?

 — Não havia ninguém! Aparece somente a Sra., ajeitando um chapéu, diante do espelho.

Realmente, fiquei muito preocupada com aquela resposta, mas lembrei-me de tantos fatos estranhos que acontecem nessa vida, reais ou imaginários, que achei melhor pedir proteção a Deus e esquecer o caso!

Cada vez que entro ou saio do prédio, sem querer, dou uma olhadinha no sofá! Um certo medo? Talvez!


Decepção - Adelaide Dittmers

 




Decepção

Adelaide Dittmers

 

Jussara pegou a bolsa com força.  Piscava para disfarçar as lágrimas que teimavam em desabar pelo rosto contraído.

Saiu abruptamente do escritório.  Com passos rápidos chegou até o carro.  Abriu a porta e se jogou no banco. A bolsa voou para o assento lateral. A cabeça latejava.

Como puderam fazer aquela palhaçada e dar a promoção à Mariana.  Ela é que merecia aquela posição.  Trabalhara como uma louca, dedicara-se totalmente, esquecendo sua vida particular.  Atravessara madrugadas, montando aquele importante projeto. E agora, só porque Mariana era sobrinha do diretor, fora escolhida para tocá-lo. O trabalho dela era mal-elaborado, cheio de falhas, o que prejudicaria a empresa.  Estava inconformada. Era uma grande injustiça.

Ligou o carro. O pé apertou o acelerador. Os pneus guincharam com a arrancada violenta.  Percorreu as ruas automaticamente. Fechou outro carro, cujo motorista buzinou, gritando um xingamento. Passou por um sinal vermelho.

Com sorte, chegou ilesa ao prédio em que morava. Afundou com força o botão do elevador, rezando para estar vazio.  Não queria ver ninguém e ter que fingir que estava tudo bem. Soltou um suspiro profundo ao chegar ao seu andar.

Abriu a porta e se jogou no sofá. “Não vou suportar essa sacanagem.  Amanhã peço minha demissão.”

O celular tocou.  Era Lúcia, sua grande amiga.  Hesitou em atender, mas precisava desabafar com alguém.

Uma voz preocupada soou do outro lado da linha.

— Ju, querida amiga, nem vi você sair.  Já sei o que aconteceu. A notícia está correndo solta por aqui.  Você não merece isso. 

— Vou sair da firma.  Estou decidida. Sei que tenho capacidade para trabalhar em outro lugar, onde reconheçam meu valor.

— Acalme-se!  Não se precipite!

— Estou tentando digerir minha decepção, mas não fico nem mais um dia nessa empresa. Perdi o Fred pela loucura do meu trabalho.  Adiei férias.  Passei fins de semana no computador. Perdi o chão.

— Estou indo aí para tomarmos algo e você espairecer. Ah! O Jorginho está ao meu lado e também quer ir.

Jussara ficou por uns segundos em silêncio e respondeu com uma voz entrecortada pela emoção.

— Venham sim! Estou precisando de boa companhia.

Um pálido sorriso aflorou em seus lábios. Pelo menos tinha amigos.


O Sequestro - Adelaide Dittmers

 



O Sequestro

Adelaide Dittmers

 

Aprisionado em um cubículo, cujas paredes, sem reboque, mostravam tijolos mal assentados, um homem estava sentado em um velho colchão. O rosto entre as mãos e os braços nos joelhos.

Seus pensamentos se atropelavam e tentavam reconstituir o que tinha acontecido.

O encontro com amigos. A saída do restaurante. O caminhar até o carro. O cano do revólver em suas costas. A voz do assaltante, áspera e incisiva.

— Me dá a chave!

O aparecimento de mais um homem, que o empurrou até a porta do passageiro. A surpresa e a impotência que tomou conta dele. A arrancada do veículo. O revólver encostado em sua nuca, na mão do segundo homem, sentado no banco traseiro.

O suor, que escorria pelo seu rosto. A sensação de irrealidade do que estava lhe sucedendo.

— O que vocês querem? Perguntou tentando mostrar uma falsa calma.

— Seu dinheiro! 

— Não consigo sacar dinheiro do banco a esta hora!

— Banco? Você acha que queremos seus trocados? Sabemos quem você é.  Queremos muita grana, ou você já era!

Um arrepio sacudiu o corpo do homem. Apesar do suor, que empapava suas roupas, as mãos estavam geladas.

O longo trajeto, que percorreram até a periferia do sul da cidade. A tapera, onde o colocaram, coberta pela escuridão da noite.  Os empurrões. As ameaças. Os telefonemas para a família. A tristeza pelo sofrimento da esposa e filhos. A incerteza de que mesmo que lhes fosse dado o resgate, ele sairia vivo dessa enrascada. 

A sensação de sufoco o tomou e ele sacudiu a cabeça para espantar a vulnerabilidade de sua situação.

A porta aberta com violência e a entrada dos dois sequestradores tiraram-no de seus pensamentos. O coração disparou.  Lá vinham com mais exigências.  Um deles tinha um celular e disse ameaçadoramente:

— Diga aí pro seu filho que, ou dão dez milhões, ou você vai para as cucuias!

As mãos trêmulas do refém quase não conseguiram segurar o telefone.

— Jorge, você ouviu o que ele disse. O celular estava com a viva voz ligada. 

— Dê um jeito de providenciar o dinheiro.  Aquele dos investimentos no sul.  Fale com Jarbas.  Ele dará o dinheiro a você.

O jovem do outro lado da linha franziu a testa.  Sul...Jarbas... O que o pai estava querendo dizer? Subitamente uma luz acendeu em sua mente.  Era um código.  Jarbas era o procurador da justiça, amigo de seu pai.  Colocaria toda a polícia à sua procura. E sul, sul?  Lógico, o pai deveria estar em algum lugar da zona sul da cidade.

O filho disfarçando respondeu:

— Como podemos saber que vão trocar você pelo dinheiro?

— Deem o dinheiro e seu pai sai com vida. Vamos dar as instruções, onde deixar a grana. E nada de surpresas, senão seu pai morre.

Passaram-se vários dias até o acerto do lugar e do dia em que a quantia seria entregue.

Enquanto isso, um grande esquema policial foi montado.  Na entrega do resgate, policiais à paisana estariam escondidos.  Seriam usados sinais eletrônicos para seguir os bandidos.

No dia e hora combinados, os criminosos foram até o lugar, uma estrada de terra, cercada por um matagal.  Saltaram do veículo, com olhos atentos, que espreitavam os arredores. A mala com o dinheiro estava lá.  Eles a abriram e se abraçaram, dando gargalhadas.

— Quanta grana, meu irmão!

— E agora, que vamos fazer com o homem? Damos conta dele assim mesmo? Perguntou o outro.

— Ele não viu nossas caras. A máscara nos escondeu.  Só que temos que ter atenção, porque podemos sofrer uma emboscada.  Não confio nessa gente.

Entraram no carro e aceleraram, apesar dos buracos da estrada, que os faziam sacudir.  Porém, ao lado do caminho, policiais escondidos acompanhavam o trajeto deles.

Uma hora se passou até alcançarem o casebre.  Entraram e logo apareceu o homem com os olhos vendados. Iriam deixá-lo longe dali.

Entraram no carro e desceram a estrada íngreme. O refém perguntou, forçando uma voz firme, embora seu corpo estivesse gelado:

— Onde estão me levando? O que vão fazer comigo?

— Cala a boca!  Sem perguntas!

O pobre homem se encolheu no banco.

Após rodarem por quilômetros e iam pegar a estrada principal, foram cercados por um forte contingente policial. Não podiam escapar e se matassem o refém, poderiam ser mortos também.

Desceram do veículo com os braços levantados. O homem foi retirado do carro. O corpo inteiro era sacudido por tremores e um choro convulsivo explodiu de seu peito.  Baixou a venda e fitou com ódio os malfeitores. Vencera.  Tinha conseguido escapar.

Conduzido pelos policiais, foi até uma das viaturas com passos trôpegos.  Estava muito fraco e abatido.  Saíra ileso e jamais se esqueceria daqueles dias terríveis em que a morte o espreitou em cada minuto, em cada segundo.

MADAME POMPADOUR - Hirtis Lazarin

 



MADAME POMPADOUR

Hirtis Lazarin

                                             

“Até que enfim a sexta-feira se foi”. Elisa desligou o computador, sem antes pôr ordem na papelada esparramada sobre sua mesa; alguns documentos foram arquivados e outros, apenas rascunhos, descartados. A lixeira tanto quanto Elisa estavam “cheias”. Ela nem se reconheceu no espelho. Nem percebeu que o cabelo revoltado já se soltara da presilha e a maquiagem desbotada escorria pelo rosto. “Um banho demorado, perfumado mais uma cama confortável darão um jeito nisso, não é Elisa”?

O sábado também seria agitado, mas de um jeito prazeroso. Era o casamento da melhor amiga de Elisa. Amiguinhas desde os cinco anos. Da mesma rua, da mesma escola, das mesmas alegrias e tristezas. Irmãs por escolha.

E, ela, a madrinha mais querida, tinha o compromisso de corresponder ao lugar de destaque que ocuparia na cerimônia. Assim como as noivas têm um tratamento especial nesse dia, Elisa reservou também um horário comprido num salão especializado, capaz de transformá-la numa princesa vestida de azul, da cor dos seus olhos.

Elisa desmaiou na cama, sem tempo pra pensar em mais nada. Acordou e no escuro tateou o celular. Tinha plena certeza de que ainda sobrava bastante tempo pra dormir. Levou um susto quando olhou as horas e viu que estava atrasada em uma hora e meia. Deu um pulo desajeitado da cama, escorregou no tapete redondo e só não caiu porque uma almofada exagerada a amparou.  Soltou um palavrão e mais um. Toda atrapalhada e já seminua, ligou à profissional que a atenderia. Recebeu uma pequena bronca. Elisa não gostou, mas trancou a língua antes que tivesse o horário cancelado. O cancelamento era inimaginável. “Prefiro morrer”.

Jogou-se debaixo do chuveiro e tomou um banho de “gato”. Já dentro do carro, não encontrou a chave que deveria estar dentro da bolsa, mas, inexplicavelmente, não estava. Na correria derrubou-a no chão da sala. Mais minutos de atraso e mais palavrões. O dia, que deveria ser só de alegria, começou bem mal. Suas mãos e joelhos tremiam. A vista anuviou e todo esse desconforto atrapalhou-a na direção do carro. Distraída, quase atropelou alguém na faixa de pedestres e ao entrar à esquerda, esqueceu-se da seta e levou um buzinaço. Estacionou na primeira oportunidade, desligou o carro e chorou. Um choro inconsolável e raivoso.  Não se conformava com aquilo, pois tudo foi bem-planejado e com antecedência.   

Debruçou-se sobre a direção, respirou profundamente várias vezes e bebeu, pausadamente, vários goles de água. Ligou o rádio numa música suave enquanto secava o suor que escorria do rosto. Pensou mais de uma vez até tomar coragem e ligar novamente ao salão de beleza. Antes que a profissional que estava do outro lado da linha esbravejasse e talvez, até cancelasse o atendimento, Elisa ensaiou as palavras e propôs cancelamento de alguns procedimentos que nem fariam tanta falta assim na composição do belo. O pacote encomendado seria pago em sua totalidade pra que não houvesse prejuízo algum. Ela ouviu uma resposta positiva e emitiu um suspiro aliviado e comprido.

Eram exatamente dezessete horas, quando uma princesa azul da cor do céu deixou o salão “Madame Pompadour”.

 


domingo, 11 de fevereiro de 2024

O pulo do leão - Hirtis Lazarin

 



O pulo do leão

Hirtis Lazarin

O caminhão cambaleava na estradinha de terra escorregadia e esburacada por conta das chuvas que chegaram exageradas após metros e mais metros de orações.  Tião partiu de última hora e não teve tempo de escolher o melhor caminho. Abandonou o prato quase cheio na mesa do almoço, arrancou uma camiseta do varal e quase esmagou o gato que atrapalhou sua passagem. Só após estar dentro do caminhão, percebeu que faltava a chave. O atraso provocou-lhe meia dúzia de palavrões cheios de ódio.  

Arrancou o veículo da garagem descoberta, arrastou a bicicleta do sobrinho e derrubou um balde cheio de água ensaboada. O piso cobriu-se de espumas e ficou escorregadio. Em meia hora, estava longe da cidade.   

Até agora, eu não vi no caminho nenhuma placa de trânsito e, realmente, não sabia se o motorista sabia pra onde estava indo.

Parecia que confrontava a sorte e quem confronta a sorte é muito corajoso ou já desistiu da vida.

Os pneus carecas e a carroceria que já foi envernizada e polida estava carcomida. Das letras garrafais que compunham o nome da família, desenhadas na madeira, só sobravam o “S” e o “A”. O caminhão era tão idoso quanto o pai de Tião, a única herança que o velho lhe deixou.

À medida que anoitecia, a mata que acompanhava a estrada foi ficando cada vez mais densa e fechada. O ruído feliz dos pássaros e o andar cauteloso dos animais acomodaram-se. A natureza é pontual nos seus compromissos.

O motorista acendeu os faróis, mas não funcionou. Desligou o motor, abriu a porta, cautelosamente, e só desceu após conferir todos os lados. Mexeu daqui e dali, mas nada mudou. Fez o que pode intercalando o fazer e o xingar. “Afinal não sou eletricista”. Foi a explicação que confortou seu coração naquele momento.

Se a velocidade do carro já era bem reduzida por conta do mau estado de conservação do caminho, agora, sem farol, a complicação dobrou. Não seguiu em frente.

Tião sentiu sede e fome. Virou e revirou a cabine em busca de uma sobra de alimento esquecido no banco, no meio de peças de roupas e papéis misturados. Nada.

Escuridão, fome, solidão…

A sensação era de perigo e a coragem do homem, que não era uma coragem tão grande assim, ouviu um rugido cada vez mais próximo. A esperança de que o animal não sentisse o cheiro de homem- por- perto foi por água abaixo. Dois olhos brilhantes e uma boca faminta aproximaram-se silenciosamente. 

Tião só conseguiu enxergar quando a fera parou à frente do caminhão. Enorme e cheia de dentes. Ele conferiu a maçaneta das portas. Frouxas, há muito tempo. Amaldiçoou a falta de dinheiro e a falta de zelo, indispensáveis na manutenção de um veículo.

O leão sondou o ambiente, deu um salto espetacular e alcançou o capô. Cheirou demoradamente o para-brisa, grudou o focinho no vidro e prendeu os olhos nos olhos de Tião. Tião não sentiu medo quando ficou responsável por levar o dinheiro roubado num caminhão caindo aos pedaços. Diante da fera desmaiou.

O dia amanheceu e Tião acordou agitado, com as mãos algemadas e rodeado de policiais.

 

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

AULA DE 07/02/24 - AS EMOÇÕES HUMANAS TRANSFERIDAS PARA OS PERSONAGENS

 







As emoções humanas nos ajudam a lidar com a vida cotidiana, permitindo-nos comunicar ou demonstrar o que sentimos em relação a certas situações, pessoas, fatos, pensamentos, sentidos, sonhos e memórias.

Muitos psicólogos acreditam que existem seis tipos principais de emoções, também chamadas de emoções básicas. Eles são: felicidade, raiva, medo, tristeza, desgosto e surpresa. A felicidade é a nossa reação ao positivo, assim como o desgosto é o revoltante e a surpresa é o inesperado. Da mesma forma, reagimos à aversão por meio da raiva, ao perigo por meio do medo e à dificuldade ou perda por meio da tristeza.

Todas as outras emoções são variedades de emoções básicas. Depressão e luto, por exemplo, são variedades de tristeza. O prazer é uma variedade de felicidade, e o horror é uma variedade de medo. De acordo com psicólogos, as emoções secundárias se formam combinando graus variados de emoções básicas. Assim, surpresa e tristeza produzem decepção, enquanto nojo e raiva produzem desprezo. Múltiplas emoções também podem produzir uma única emoção. Por exemplo, raiva, amor e medo produzem ciúme.

Cada emoção é caracterizada por qualidades fisiológicas e comportamentais, incluindo as de movimento, postura, voz, expressão facial e flutuação da taxa de pulso. O medo é caracterizado por tremores e aperto dos músculos. A tristeza aperta a garganta e relaxa os membros. A surpresa é uma emoção particularmente interessante, caracterizada por olhos arregalados e queixo caído, que dura apenas um momento e é sempre seguido por outro tipo de emoção.

Com os personagens literários, não é diferente. Eles têm reações reais aos conflitos, e essas reações são gatilhos emocionais que promovem a sequência da história. 

Aqui apontamos algumas delas para ajudar o escritor no desenvolvimento emocional do personagem:

Apatia / Ansiedade / Tédio / Compaixão / Desprezo / Êxtase / Empatia / Inveja / Medo / Constrangimento / Euforia / Perdão / Frustração / Gratidão / Mágoa / Culpa / Ódio / Esperança / Horror / Saudades / Histeria / Amor / Paranoia / Piedade / Prazer / Orgulho / Raiva / Arrependimento / Remorso / Simpatia...

 



Hoje falaremos do MEDO, emoção que atribuiremos ao nosso protagonista na história que será criada em na aula on-line:

 

O medo é a reação emocional a uma fonte real e específica de perigo. Um mecanismo de sobrevivência, o medo está geralmente relacionado a uma apreensão em relação à dor. O medo severo é uma reação ao perigo terrível que se aproxima, e o medo trivial ocorre como resultado de um confronto que não representa uma ameaça significativa. Os graus de medo variam de uma leve cautela à paranoia. O medo pode afetar a mente inconsciente por meio de pesadelos.

O medo é muitas vezes confundido com a ansiedade, que é uma emoção muitas vezes exagerada e vivenciada mesmo quando a fonte do perigo não está presente ou tangível. Embora o medo esteja ligado à ansiedade e a outras condições emocionais, como paranoia e pânico, é uma emoção separada por si só.

Os psicólogos descobriram que o medo pode ser ensinado. Por exemplo, as crianças podem ser condicionadas a temer certas coisas. Além disso, acidentes acendem medos. Uma criança que cai em uma piscina e luta para nadar pode desenvolver um medo de piscinas, natação ou água.

 




SEGUNDO CONTO:  nova história será criada, e o protagonista reagirá com RAIVA: (pesquisar mais)

 

A raiva é a emoção que expressa aversão ou oposição a uma pessoa, ou coisa que é considerada a causa da aversão. Os psicólogos consideram a raiva uma emoção natural necessária para a sobrevivência. A raiva pode trazer melhorias comportamentais; no entanto, a raiva descontrolada pode causar problemas sociais e pessoais.

Os psicólogos dividem a raiva em três categorias. Um tipo de raiva é uma reação instintiva a ser preso ou ferido. Outro tipo é uma reação à percepção de ser intencionalmente prejudicado ou maltratado por outros. O terceiro tipo de raiva, que inclui a irritabilidade, reflete os traços de caráter pessoal de um indivíduo.

A raiva às vezes é exibida por meio de atos agressivos repentinos e evidentes. Um indivíduo incontrolavelmente zangado é suscetível a perder a capacidade de fazer julgamentos sensatos e agir com responsabilidade. A raiva extrema é obviamente autodestrutiva, assim como a raiva que não é expressa externamente e mantida internamente. A raiva é muitas vezes mal utilizada por indivíduos que agem com raiva como um meio de manipular os outros.


A PERSEGUIÇÃO - Adelaide Barrozo Dittmers




 


A PERSEGUIÇÃO

Adelaide Barrozo Dittmers

 

A rua estreita estava deserta no fim daquela tarde chuvosa. Nuvens escuras eram empurradas pelo vento.

Um cachorro latiu, talvez alertado pelo barulho de passos rápidos, que ecoavam pela rua.

Uma mulher jovem, quase correndo, seguia pelo meio da rua, sem se importar com as pedras irregulares e escorregadias, que a faziam tropeçar.  Constantemente olhava para trás.  Feições contraídas pelo medo.  No ombro, uma bolsa de alças, colada ao corpo.

Ao virar a cabeça novamente desequilibrou-se e caiu.  Levantou-se como um raio, não se importando com os joelhos, que sangravam.  E mancando continuou seu caminho.

Mais adiante, parou em frente de uma pequena casa, empurrou com força o portão.  Atravessou o pequeno jardim e enfiou a chave na fechadura com mãos trêmulas. Entrou, batendo a porta.

Logo depois, uma cortina se mexeu na janela e uma sombra espreitou atrás dela.

A chuva desabou mais forte.  Raios riscaram o céu, seguidos pelo estrondo de trovões.   As luzes das moradias foram sendo acesas.

O balançar da cortina denunciava a presença da moça. O barulho de um carro juntou-se ao da chuva.  O veículo parou em frente à casa. 

A cortina parou de se mexer.  Um homem forte, com chapéu e capa preta saltou e perscrutou a casa com um olhar feroz.  Abriu o portão com violência e bateu à porta várias vezes. E nada. Nenhum movimento se ouvia.  A casa permaneceu escura e quieta como se estivesse vazia.

Com um gesto de raiva e uma expressão carregada e irritada o desconhecido correu para o carro. Bateu com violência no volante do veículo e saiu com velocidade.

Meia hora depois, a porta foi aberta devagar.  A moça apareceu e, olhando para todos os lados, foi lentamente até o portão.  Em uma das mãos carregava uma mala, na outra um guarda-chuva, que encobria parte de seu rosto.

Com rapidez, percorreu as ruas da cidade.  Atenta, movimentava a cabeça de um lado para outro.  A tensão endurecia seus passos. 

A estação de trem apareceu no fim de uma rua e ela acelerou, quase correndo ao avistá-la.

Chegando lá, correu para a bilheteria.  Poucas pessoas estavam lá, mas ela parou na plataforma, bem distante delas.  A ansiedade e o nervosismo inundaram o rosto lívido.   Apertou a alça da mala, como se quisesse afastar o medo, que a possuía.

Um apito surgiu ao longe.  A moça estremeceu e retesou o corpo.  O trem surgiu bufando sua pressa.  Mal parou, ela subiu pelos degraus e entrou.  Sentou-se a uma janela, embaçada pela chuva, olhando com ansiedade a plataforma da estação.

Minutos depois, as rodas rangeram ao contato com os trilhos e o trem começou a resfolegar pelo esforço de seguir o caminho.

Um forte e profundo suspiro irrompeu do peito da mulher.   De repente, seu rosto se transformou em uma máscara de horror ao divisar o home de capa preta, que surgiu na estação e correu na direção do trem, que foi ganhando velocidade.  O homem estacou, jogando os braços para baixo, ao perceber que não conseguiria alcançá-lo.

A perseguida fechou os olhos, recostando-se na poltrona.  Estava exausta. Nem o alívio de estar partindo descontraiu suas feições.  

No dia seguinte a pacata cidade foi sacudida pela notícia do assassinato do prefeito pela sua jovem amante.  Um policial à paisana, que passava, ouviu os tiros.  Entrou no lugar e viu uma mulher sair em disparada pela porta dos fundos.  Reconheceu-a.  O caso era um escândalo na pequena cidade.  No entanto, antes de persegui-la, tentou socorrer a vítima, que ainda estava com vida, mas não conseguiu.  O homem morreu em seus braços.


domingo, 10 de dezembro de 2023

O PODER DA INVISIBILIDADE - Leon Alfonsin Vagliengo

 


O PODER DA INVISIBILIDADE

Indignidade ou Pragmatismo?

 

                                                                                                                               Leon Alfonsin Vagliengo

 

 

Introdução: O ANEL DE GIGES

 

Conta Platão, no capítulo II de seu livro “A República”, que em época remota, na Lídia, um pastor de nome Giges encontrou um anel de ouro no dedo de um esqueleto humano gigante, após um terremoto, em uma fenda que se abrira no solo, próximo ao local onde ele apascentava ovelhas.

O anel, ele logo descobriu, possuía o poder de tornar invisível quem o utilizasse e, conforme a fábula, Giges, que era um homem comum até então, começou a fazer mau uso de seu novo poder, e perpetrou atos infames, até mesmo o de assassinar o rei da Lídia e ocupar seu lugar no trono.

 

Considerações:


Vemos, com esse mito platônico, que é bem antiga a atração do ser humano pelo anonimato, por permitir fazer o que se quer sem que ninguém saiba.

E o que se busca com o anonimato?

Certamente, o anonimato garante a invisibilidade na realização de qualquer ato, considerando-se que invisível é “aquele que não é manifesto, que não se deixa conhecer”. Portanto, não se trata, necessariamente, de uma invisibilidade física.

Com esse entendimento, o que significa e o que se busca com a invisibilidade?

Mas antes, um parêntese: "O conceito de Invisibilidade Social tem sido aplicado para referência a seres socialmente invisíveis, seja pela indiferença, seja pelo preconceito dos demais, o que nos leva a compreender que tal fenômeno atinge tão somente àqueles que nunca são lembrados, por estarem à margem da sociedade!". Nesta concepção, é, portanto, tema para estudos e ações de Justiça Social.

No entanto, voltando a esta abordagem suscitada pelo Anel de Giges, vemos que tem foco no comportamento humano decorrente de conceitos como cultura, religião e moral, educação e aprendizado, ética e dignidade, medo de punição ou vergonha do erro, num conjunto complexo, todos esses itens interagindo e operando na formação da personalidade e do caráter do indivíduo.

É o conjunto de normas e regras formadas com base na cultura, religiosidade e nos costumes de determinado grupo social, que servem para definir a moral desse grupo e orientar a maneira de agir das pessoas dentro daquele contexto específico.

O tema da moral está, portanto, diretamente ligado aos aspectos culturais do grupo social que a forja, a pensa e a pratica.

Por conta disso, estamos falando de um conceito de caráter particular, que se baseia, sobretudo, em hábitos e costumes válidos para cada comunidade.

Os valores morais são importantes porque geram uma vida em sociedade mais harmoniosa e justa. Normalmente, começam a ser transmitidos para as pessoas desde seus primeiros anos de vida, através do convívio familiar ou até mesmo no ambiente escolar.

Desde tenra idade o indivíduo aprende conceitos de ética, ao ouvir na prática reflexões sobre a moral e sobre os princípios que sustentam e orientam as ações humanas.

Aprende, também, que há algum tipo de castigo pela infringência das regras, e com o tempo percebe que as regras impõem limites a suas ambições de poder ou de riquezas, a seus desejos mais íntimos ou vingativos, enfim, a qualquer de seus desejos de agir fora das regras impostas pela moral de sua comunidade.

A invisibilidade, então, pode ser a solução para propiciar a realização desses anseios que extrapolem as regras. Se ninguém souber, ou se ninguém souber que foi ele, apenas a sua consciência poderá censurá-lo ou até castigá-lo.

É sob a poderosa proteção da invisibilidade que surge o conflito interno, quando vencerá a força preponderante da formação de cada indivíduo, que sopesará a tentação que se apresenta contra a rigidez de sua formação ética, e esta revelará a própria qualidade e higidez da educação por ele recebida.

Este conceito nos permite entender a importância de regras morais boas e justas e da educação bem orientada na formação do caráter das pessoas.

Em conclusão:

Neste início do século XXI vivemos em um mundo cada vez mais globalizado, especialmente pela ação da internet que, pela disseminação e vulgarização das informações, contribui acentuadamente para a descrença de conceitos morais e religiosos, com isso provocando o desgaste da austeridade e do compromisso ético.

Por exemplo, no plano religioso: será que alguém ainda acredita na punição do inferno? Ou, então, quantos nem acreditam numa vida posterior, que poderá ser prejudicada por ações cometidas nesta?

Essa descrença se repete em outras áreas, especialmente alimentada pelas decepções na política e na justiça social.

Parece que o mundo atual é o império da mentira, nada é confiável.

Para muitos resta apenas o “aqui se faz, aqui se paga”, mas somente se alguém descobrir o que se fez.

Temos, assim, o cenário ideal para empoderar a invisibilidade.

Se a tentação for grande e a invisibilidade garantir a impunidade, cada vez menos haverá dilemas morais ou formação ética que impeça aos indivíduos o cometimento de ações incorretas ou vergonhosas de qualquer espécie.

De alguma forma, a humanidade precisa estribar o conceito de dignidade, como ensina este pensamento:

A moral, propriamente dita, não é a doutrina que nos ensina como sermos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade.
- Immanuel Kant

 

 

 

 

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

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