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segunda-feira, 12 de abril de 2021

O pescador e o mar - Adelaide Dittmers

 


O pescador e o mar

Adelaide Dittmers

 

Há dois dias que aqueles homens estavam no mar. Capitão Ramos olhou para o céu coberto de pesadas nuvens escuras, que eram empurradas por um vento cada vez mais forte. Conhecedor profundo do mar e das intempéries, coçou a cabeça preocupado e se perguntou se aquele velho barco aguentaria a fúria da tempestade que se anunciava.   Decidiu que era hora de voltar.  A pesca tinha sido boa e o caminho até a costa era longo. Chamou os dois homens, que o acompanhavam e comunicou-lhes que estavam retornando.   Direcionou o barco para a terra firme e iniciaram a viagem para casa.

Nesse momento, raios começaram a riscar o céu, seguidos pelos fortes estrondos de trovões.  Ondas enormes levantaram-se no mar revolto, batendo com violência na frágil embarcação, que subia e descia pelas grandes e assustadoras vagas.

Os três homens se esforçaram para manter o barco estável e no rumo certo.  Uma chuva forte começou a despencar com uma fúria descontrolada. A visibilidade era nula. O aguaceiro se confundia com as tenebrosas águas do oceano.

Capitão Ramos tentava acalmar os dois homens, que estavam aterrorizados, mas um turbilhão de pensamentos ocupava sua cabeça.  Como conseguiria levar o velho barco e aqueles homens, que tinham plena confiança nele, para a terra firme.  Um medo nunca sentido por aquele homem corajoso tomou conta de seu corpo e de sua alma.

De repente, uma onda gigantesca impulsionada pela ventania levantou o pequeno barco, jogando-o de um lado para outro.  Os dois homens que acompanhavam o marinheiro foram bruscamente lançados ao mar.

O velho lobo do mar, acostumado a várias situações difíceis, agarrado a um pequeno mastro, soltou um grito desumano, como um animal ferido, e um choro incontido e singular irrompeu naquele homem tão forte como as ondas desvairadas à sua volta. Era responsável por aquelas vidas.

Com grande dificuldade, ele se arrastou até o leme e o segurou firmemente e apesar do desespero e do terror de ver os homens, tentando se manter à tona das águas, dirigiu o barco para o mais perto deles, que   pode conseguir, lançando uma corda para tentar resgatá-los.  Um deles conseguiu chegar até a corda e segurou-a com firmeza.  Ramos tentava trazê-lo para o barco, mas a força do mar tornava aquele salvamento quase impossível, quando uma imensa vaga jogou o homem à beira do costado do pesqueiro e o capitão, reunindo toda a energia, que ainda lhe restava, puxou-o para dentro.  O pobre homem, que tossia e respirava com dificuldade, estendeu-se no chão para se recuperar.

Ramos olhou para fora, apreensivo, tentando divisar o outro pescador entre as grandes ondulações das águas, que se elevavam violentamente.  Ele desaparecera.  Um sentimento de impotência e de desalento tomou conta dele.  Tião era um companheiro de muitos anos, amigo fiel de muitas empreitadas e com quem compartilhou muitos momentos felizes. Não era jovem e por isso não tinha a vitalidade necessária para lutar contra aquele gigante e tempestuoso mar.

 Como se voltasse à realidade voltou sua atenção ao homem salvo, incentivando-o a reagir e ajudá-lo no difícil desafio de conduzir o barco à terra firme, com segurança.  Movido por uma força interior, muito peculiar à sua personalidade, bradou:

— Temporal dos infernos, você não vai vencer nóis.  Vamo consegui! Deixa de choradera, Quim e vem me ajudá!

Com destreza e a experiência acumulada durante muitos anos de pescaria, procurou manter o barco, o mais estável possível, levando-o a favor das ondas e quando não era possível, cortava-as de lado, com a velocidade reduzida e elevando a proa para não entrar água na embarcação.

Seus pensamentos estavam concentrados na luta contra aquele poderoso adversário.  Quim, por sua vez, tentava ficar de pé e auxiliá-lo a divisar alguma coisa em meio aquele aguaceiro.

Com ímpeto e segurança, conduzia o velho e alquebrado barco em direção à costa e, como um filme, que se ia desenrolando, lembrava-se de sua juventude cheia de dificuldades e do demorado aprendizado como marinheiro e pescador.  Suas memórias reviveram as adversidades vividas por ele, seus inúmeros irmãos e seus pais na luta constante pela sobrevivência.  Esta era mais uma delas e ele iria vencê-la.

Seus pensamentos voaram para as famílias que dependiam da pesca para ter o pão em suas mesas e para sua companheira de vida, que o esperava a cada pescaria, rezando por sua volta.  E essas reflexões lhe davam alento para continuar enfrentando a terrível tempestade.

Depois de algum tempo, a chuva e o vento começaram, aos poucos, a diminuir de intensidade e o oceano, súdito que era da natureza, foi se acalmando devagar.

Os dois homens se abraçaram aliviados.  Tinham superado o pior. Sem pressa e com muito cuidado foram se aproximando da costa, que já era visível, mas ainda muito distante.

Aos poucos, foram chegando mais perto da terra e começaram a avistar os morros verdejantes, que circundavam a bela e agreste praia em que viviam.  Uma enorme tartaruga passou pelo barco e eles soltaram uma gargalhada, descarregando parte da tensão, que tinham contido em seu interior. A visão do animal foi para eles um sinal da vida, que retornava.

Ao se aproximarem da praia, avistaram um grande número de pessoas, que se aglomerava à beira do mar, parecendo que a pequena vila de pescadores comparecera em peso para esperá-los. 

Vários homens e mulheres entraram no mar para recebê-los. Extenuados pela grande batalha contra a natureza bravia, desceram da pequena embarcação e foram ao encontro deles.

Suas emoções eram contraditórias.  Estavam felizes por estarem vivos e trazerem os peixes para aquelas pessoas pobres, e tristes pela perda do companheiro.

Uma mulher adiantou-se no grupo.  Era sua mulher.  Agarrou-se a ele, chorando convulsivamente e quase gritando dizia:

— Nossa Senhora me ouviu!  Nossa Senhora me ouviu!

A mulher e os pequenos filhos de Quim também o abraçaram chorando.

Era uma comoção geral.  Dentre o grupo, outra mulher afastava com os braços as pessoas e tentava chegar perto de Ramos.  Quando finalmente conseguiu se aproximar dele exclamou:

— Cadê Tião? Cadê Tião?

O velho marinheiro balançou a cabeça, impotente e com uma voz fraca, disse:

— Ah! Desculpa Joana! Ele caiu no mar! Não consegui salvá ele!

A pobre senhora ajoelhou-se na areia molhada e caiu num pranto sentido e desesperado.

Ramos ergueu-a e a abraçou, sem ser capaz de proferir uma palavra de consolo.  Estava desolado. Depois de alguns instantes, recuperou-se da emoção, fitou-a com compaixão e ternura e disse:

— É o destino! Não podemos fugir dele, minha amiga!

E olhando para as ondas brancas, que lambiam a areia delicadamente, exclamou:

— É a vida! O mar dá muito pra nóis, mais tira também!

Com a cabeça baixa e abraçando as duas mulheres, gritou para todos:

— O barco tá cheio de peixes. Descarreguem!

E seguiu para a vila.

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