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segunda-feira, 12 de abril de 2021

A fuga - Hirtis Lazarin

 


A fuga

Hirtis Lazarin

 

O convento dormia tranquilamente.  As freiras e as iniciantes acomodavam-se bem cedo.  Acordar às cinco horas da manhã exigia disposição para assistir à santa missa que durava horas de orações, a primeira obrigação do dia, mesmo antes do substancioso café da manhã.  Muitas religiosas dedicavam-se ao aprimoramento culinário, único prazer permitido entre aquelas silenciosas paredes coniventes, cercadas por altos muros cinzentos.

Havia dias em que Claire andava bem estranha.   Às vezes esboçava um sorriso maroto disfarçado de felicidade, outras fazia caretas de preocupação.  A madre superiora, vivida e ranzinza, já notara e estava de olho.

Claire nasceu no ano de 1866 em Paris numa família aristocrática, extremamente religiosa.  Religião e poder andavam de mãos dadas.

Ao completar dezoito anos, eram apresentadas às jovens três opções de vida: casar-se com alguém escolhido pela família, fazer votos religiosos ou permanecer solteira com o dever de cuidar dos pais e sobrinhos.

Claire era sensível e inteligente o suficiente para não ser aprisionada num destino programado.  Tinha ideias avançadas para sua época.  Tocava piano desde os cinco anos e seus desenhos gritavam criatividade e sensibilidade estética.  Mas tais qualidades não eram valorizadas no mundo feminino.  As mulheres eram preparadas para cuidar da vida privada da família e aos homens cabia o sustento.

"Constituir família com um desconhecido, nem pensar".  Se escolhesse o convento, teria tempo para pensar em outra saída.  E foi o que fez.

Claire consultou o relógio escondido embaixo do travesseiro.  Eram quase duas horas da manhã.  Certificou-se de que suas colegas de quarto dormiam profundamente, tirou a camisola branca de algodão cru que escondia um vestido reto e sem babados, usado debaixo do hábito.  Carregou uma mochila com poucas peças de roupa e saiu do quarto.

Pé ante pé, caminhou pelos imensos corredores familiares, atravessou salas e entrou na capela.  Apenas a lamparina do Santíssimo Sacramento acesa.  Orou poucas palavras,  pediu perdão a Deus. "A gente só vive uma vez".

Tão silenciosa quanto uma folha seca que se desprende do galho, andou até a porta principal.  Girou a chave pesada tão delicadamente que ela não teve coragem de ranger.  Olhou para todos os lados e desceu as escadas saltitando.  Atravessou o jardim florido chegando  ao depósito das ferramentas e apetrechos de jardinagem.  A escada estava onde deveria estar.  Era pesada, mas não mais que a vontade de fugir.

Subiu cada degrau pacientemente.  Uma queda quebraria todos os seus ossos.  Chegou à borda do muro e lá embaixo na calçada estava o amontoado de lixo que seria recolhido de manhã.

Ela nunca ouvira falar em super-heróis, mas, naquele momento, seria a primeira.  Num salto voador, viu-se misturada aos restos de comida que se soltaram de um saco furado.  O mal cheiro era forte.  Deu uma chacoalhada, sentiu-se livre e solta.

Nesse exato momento, lá na esquina, apontou uma carruagem num trote lento e compassado.

Claire postou-se no meio da rua estreita e gritou por socorro.  O condutor não teve outra saída senão frear os cavalos.  Assustados, relincharam alto.  Ela não pensou duas vezes.  Abriu a portinhola e pulou para dentro do coche.  Ela precisava fugir dali.

Jeremias aguardou um instante e como os passageiros não esboçaram qualquer reação, tocou em frente.

Então a fugitiva se deu conta de que não estava sozinha.  Dois homens bem vestidos e uma mulher exuberante com seios volumosos  pressionados pelo espartilho, riam  e bebiam champanhe.  Bêbados, descontrolados e felizes depois de uma noite prazerosa no cabaré ”Chat Noir" da rua Montmartre, não davam conta do que se passava ao redor.  Logo em seguida, todos adormeceram.   Só acordaram quando a carruagem estremeceu e uma das rodas se soltou.  O "coupê" perdeu o controle da direção e os cavalos assustados arrastaram todos, num zigue-zague, até parar no acostamento.

Todos desceram e só então a "intrusa" foi descoberta.  "De onde veio essa assombração"?  Antes que fosse atacada, em resumidas palavras, Claire deu-lhes uma explicação razoável.  

Já estavam a muitos quilômetros de Paris e era o momento necessário e oportuno para uma pausa.  Acomodaram-se debaixo de árvores corpulentas às margens de um riacho de águas rasas transparentes.  Fartaram-se de alimentos e frutas que carregavam.  Os cavalos, também famintos, perderam-se no descampado de grama verdinha.

Claire contou detalhes da sua história e teve apoio do grupo.  Gente boa e rica que sabia aproveitar a vida.  Eles pretendiam chegar à Florença, onde acontecia uma exposição com pinturas renascentistas.  Era tudo o que a ex-freira mais queria: contatar o mundo das artes, fugir da França e se esquecer da família que, certamente, a amaldiçoaria todos os dias de sua vida.

O calor estava intenso e as águas convidavam todos ao banho.  Os rapazes não se entusiasmaram em se desfazer de botas e tantas peças de roupa, mas as duas mulheres, desinibidas e sem pudor, despiram-se e não perderam tempo.

A carruagem estava consertada e os cavalos descansados e tranquilos.   Hora de partir.  O caminho à frente era longo.

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