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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

UMA NOITE APAVORANTE - Leon Alfonsin Vagliengo

 




UMA NOITE APAVORANTE

A Felicidade se constrói, mas sempre será muito vulnerável.

                                                                                                                          Leon Alfonsin Vagliengo                        

 

Tinha sido um dia de trabalho muito pesado na obra onde Edvaldo servia como pedreiro, e o calor abafado de quase quarenta graus havia tornado aquela jornada quase insuportável. Depois de mais de uma hora de ônibus para chegar ao pé do morro onde mora, subiu os cem metros da íngreme trilha de barro, saiu dela pela passagem da direita e ainda andou mais uns cinquenta metros no caminho estreito que o levou até seu barraco, onde a Gilmara, toda cheirosa, sempre o aguardava com um sorriso e um beijo, feijão com arroz quentinho, e um belo ovo frito; às vezes, até um bife. Era o seu jantar diário, que encontraria reproduzido na próxima marmita, na hora do almoço.

Chegou exausto.

Como já era do costume, tomou um belo banho de água fria no chuveiro que ele mesmo havia improvisado e vestiu a roupa de ficar em casa com sua jovem esposa, deixando o macacão de serviço pendurado atrás da porta para usá-lo no trabalho do dia seguinte.

Naquela noite fez tudo igual, mas o cansaço o dominou. Mesmo a resistência própria da juventude tem limites. Já passava das nove horas e teria que se levantar cedo para voltar ao trabalho. Assim, um pouco depois de jantar, beijou Gilmara carinhosamente e desculpou-se por sua fraqueza do momento: estava muito cansado, precisava dormir.

— Nunca senti tanto cansaço. Amanhã a gente namora. Hoje eu não aguento.

Disse isso a ela e provou naturalmente que era verdade, pois mal se deitara entrou num sono profundo, do jeito que a pessoa parece que não vai acordar nunca mais.

— Nossa! Pode cair a casa que esse aí não acorda! — Gilmara resmungou para si mesma, divertida e sorrindo, sem imaginar o que ainda viria.

Ao ver que ele dormia feito pedra, deu graças a Deus, pois não teria coragem de negar-se aos carinhos de seu marido, mas também estava cansada. Deitou-se ao lado de Edvaldo e logo dormiu. Lá fora caia uma chuvinha leve, e o suave ruído da água sobre o telhado embalava o sono do casal.

Pela madrugada o barulho da chuva tornou-se mais forte, e acabou acordando Gilmara, que tinha o sono leve. Preocupada, abriu a janela tosca, sem vidros, para espiar o pé d’água. Estava mesmo muito forte.

Vieram a sua mente os noticiários que ouvia com frequência no radinho de pilha sobre tantas desgraças que a chuva já provocou para moradores de morro. Ficou apreensiva e o sono foi-se embora de uma vez. Olhou para o marido, que continuava a dormir profundamente, preferiu não o acordar, pensando “deixa o Valdo dormir, coitado. Está mesmo cansado. Mais alguns minutos essa chuva passa e eu posso voltar a dormir com ele, sossegada”.

Mas essa consideração não afastou o pressentimento de tragédia, cada vez mais fortalecido pelo crescente barulho da chuva. Maus pensamentos tomaram Gilmara. Começou a imaginar um deslizamento da encosta, o soterramento de sua morada com ela e o Valdo lá dentro, ficou com medo. O tempo passava, seu marido dormia a sono solto, e a chuva não diminuía, era intensa, fazia um barulho forte, muito forte, agora acrescido pelo das lufadas de vento, cada vez mais violentas.

Olhando pela janela, ela via somente aquela escuridão, apenas quebrada por uma fraca iluminação emanada da cidade ao longe, que lhe permitiu perceber quando uma pequena árvore foi arrancada do solo e arrastada pelo vento até desaparecer. Fortes trovões ribombavam de quando em quando. A inquietude de Gilmara crescia, seu medo já se transformara em pavor.

Olhou para Edvaldo, ele dormia. Por um instante sentiu-se desamparada.

A sirene de alerta começou a soar ao longe. Apavorada, passou a sacudir Edvaldo freneticamente, para despertá-lo.

— Acorda, Valdo! Acorda!

No mesmo instante, brilhantes riscos de luz ligaram o céu à terra, iluminando por um momento fugaz todo o cenário, seguidos por um fortíssimo estrondo.

Edvaldo acordou assustado com o impressionante estalido do raio e pela maneira como Gilmara o sacudia. Logo percebeu o terror estampado no rosto da esposa e ouviu também a sirene, compreendendo o perigo. Com a descarga de adrenalina que teve, despertou de vez, e sua reação foi imediata:

— Vamos sair daqui! Já!

Tomou a mão de Gilmara, abriu rapidamente a porta e saíram, mas travaram seus passos logo depois de alguns metros ao presenciar o impressionante deslizamento de toda a ribanceira por onde passava a trilha, vinda desde lá de cima, levando com ela algumas casas e cobrindo outras mais embaixo, quase atingindo o local do barraco. Tiveram muita sorte por não saírem um pouco antes e chegado à trilha, pois teriam sido soterrados.

Sem a trilha não havia saída.

Desesperados, ambos examinaram em volta de onde estavam, não encontrando escapatória. Também não poderiam retornar ao barraco, pois havia ficado bem à beira do abismo que restara após a queda da encosta, podendo despencar a qualquer momento.

Teriam que ficar ali mesmo, esperando socorro e rezando para que o terreno se mantivesse estável. Ambos com muito medo, Edvaldo e Gilmara ficaram abraçados sob a chuva, no aguardo da sorte que o destino lhes reservaria.

Amanheceu, a chuva parou. O sol já brilhava ardente quando o socorro chegou do Céu. Depois de avistados por um agente da Defesa Civil, foram resgatados por um helicóptero da Polícia Militar. Ao ver o helicóptero se aproximando, Edvaldo ainda se arriscou a entrar rapidamente no barraco para pegar seus documentos e a roupa de trabalho.

Em seguida ao resgate, foram levados para um abrigo improvisado na quadra esportiva da escola da comunidade, onde receberam algum alimento, roupas secas e um colchão para descansar, dividindo aquele espaço com outros socorridos.

Naquele dia Edvaldo não pensou duas vezes: nem descansou, nem foi trabalhar na obra. Após ver que Gilmara estava acomodada, mesmo que precariamente, e em total segurança, vestiu sua roupa de trabalho, conseguiu uma pá e juntou-se aos socorristas para ajudar nas escavações. Um trabalho de urgência absoluta, pois havia pessoas nas casas soterradas, e sempre há esperanças de se encontrar e salvar sobreviventes.

Enquanto cavava aquela terra encharcada e pesada, Edvaldo só tinha em seu pensamento que tinham perdido quase tudo, mas ainda ficara o principal: ele e Gilmara, com juventude e saúde. Então, mais tarde procurariam algum lugar seguro para construir um novo ninho e retomar suas vidas.

 


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