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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Foi em Berlim? - Hirtis Lazarin

 



Foi em Berlim?

Hirtis Lazarin


As câmeras do aeroporto de Berlim registram Pedro apanhando a mala na esteira. Achei grande demais para os poucos dias que pretendia permanecer no exterior. Caminha rápido ao lado de outras pessoas e, agora, isolado, encosta numa coluna. Consulta o relógio, olha ao redor como se procurasse alguém e decide entrar no coffeeshop quase vazio.  Olha o cardápio e, antes de fazer o pedido, tira do bolso do blazer um bloquinho e procura anotações. O telefone toca e, ao atender todo esbaforido, deixa o aparelho cair. A força é tanta que o vidro frontal não resiste.  Mas antes que a ligação caísse, consegue atender. O tom de sua voz vai se alterando gradativamente e chega aos gritos. Os olhares voltam-se pra ele, um comportamento inadequado àquele ambiente.   Com a mão esquerda, irrequieta, alisa os cabelos repetidas vezes. Transpira e do rosto escorre suor.  Sua expressão facial vai se transformando e revela outro Pedro. Um homem muito assustado que em nada combinava com o empresário seguro e experiente.

Lá em São Paulo, Helena está no seu consultório e atende suas pacientes-crianças. Hoje, a turminha agitada cismou em atrasar as consultas com suas manhas cheias de querer. De manhã, ela não teve tempo de se despedir do marido com a viagem de negócios à Alemanha.  

Acordou bem atrasada, vestiu a mesma roupa do dia anterior, um casaco de lã pesado sobre o terninho azul-grafite. Passou pela cozinha e, de cara feia, cuspiu um gole de café gelado. A garrafa estava isenta de culpa, alguém descuidado não soube fechá-la do jeito certo. 

Já eram quinze horas quando a secretária avisou que as duas próximas consultas tinham sido canceladas. Ficou aliviada, nem teve tempo de almoçar.

Tirou o jaleco que não era mais de um branco impecável e esparramou-se na poltrona macia, amiga acolhedora de mulheres exaustas.  Depois de quase esvaziar a jarra de água gelada, respirou profundamente, o necessário para sentir-se refeita. Lembrou-se do marido.

Pegou o celular guardado na gaveta e fez cálculos sobre a diferença de quatro horas entre o Brasil e a Alemanha. Provavelmente, ele já estaria no hotel. Fez a ligação, aguardou uma dezena de toques e não foi atendida. Não se preocupou porque conhecia bem as distrações do marido e, se ele caísse na cama, nenhum toque de celular o acordaria. 

Ainda no coffeeshop, Pedro está bem agitado e descontrolado. Espera alguém que há uma hora deveria ter chegado. Vai até o balcão, toma um café e mais outro. Compra um maço de cigarros, não é viciado, mas precisa se acalmar. Senta-se numa mesa pequena no espaço reservado aos fumantes. O cheiro da fumaça é forte, não está acostumado e sente náuseas. Joga o maço no lixo, ainda não perdeu o juízo.  Ele não queria acreditar que poderia ter caído num golpe. O preço pago foi alto.

Após falar ao telefone, Pedro não tirou mais os olhos da entrada da loja. A demora o angustiava. Só sossegou quando apareceu por lá não quem ele esperava, mas uma jovem elegante. Aproximou-se dele e conversavam como se já se conhecessem. Ela percebe o nervosismo do homem e, com voz mansa e gestos afetuosos, faz de tudo para acalmá-lo. A conversa foi longa, mas deu bom resultado. Saíram dali juntos e ele não foi mais visto. Desapareceu do nada.

Helena entrou na delegacia aos gritos e gesticulando. Ninguém entendia o que falava. Tentou contato com o marido a noite inteira, ligou à recepção do hotel e ele ainda não tinha aparecido por lá. Foi a gota d’água... Chamou um táxi, não tinha condições de dirigir. Segundo ela, Pedro se encontraria com um intérprete espanhol para acompanhá-lo nas negociações. 

Já se passaram quatro dias. A polícia federal estava trabalhando com a Interpol e, num primeiro momento, supunha-se que o negócio empresarial agendado poderia ter sido uma isca para atraí-lo a um golpe.  Por questão de sigilo, nada seria divulgado. E a imprensa já estava de olho no caso.

Helena queria contribuir com as investigações e começou a vasculhar a papelada no escritório do marido. Era um tal de abrir e fechar gavetas.  Muitas pastas, muitos papéis avulsos. Contratos que pra ela não significavam nada. Precisava encontrar alguma pista. Um cartão com lista de peças de roupas estava preso no pequeno mural. Helena leu várias vezes tentando entender. Estranhou porque essa anotação não combinava com os recados rotineiros. 

Puxando na memória, lembrou-se de que, na véspera da viagem, Pedro estava bem feliz, brincalhão, um pouco diferente de outras vezes em que viajou sozinho.  Até cantarolou durante o banho e enquanto arrumava a mala e era sempre ele quem separava as roupas.  

Um insight… Helena correu ao quarto e escancarou o armário do marido. Conhecia de cor e salteado todas as peças de roupa. Ela sempre fez questão de cuidar.  Foi tirando uma por uma e logo descobriu o que não queria descobrir.  Faltavam peças esportivas e as mais coloridas: bermudas, camisetas, tênis. Que reuniões empresariais seriam essas? Os ternos continuavam ali intocáveis.

Nem preciso descrever. Todos sabemos como reage uma mulher que se sente traída e ainda com todas as provas à sua frente. 

Essas informações foram importantíssimas às forças policiais que mudaram totalmente o rumo das investigações. 

E foi bem mais fácil localizar o suposto sequestrado, depois de seis horas de andança e cruzar nove quilômetros de trilha difícil. 

Pedro estava hospedado num hotel à beira-mar na ilha Torrent de Pareis, Espanha. Praia perdida e selvagem, areia dourada, fina e águas cristalinas azul-turquesa, ideal para escapadas românticas. Sol quente e esportes aquáticos.  Noites calmas de lua cheia ao som do balanço do mar.

Eram nove horas da manhã. Pedro e Lucy, avermelhados na pele branca, conversam e tomam café da manhã. 

Era muito mais do que a imprensa esperava.

 

 

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