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sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

ROMANCINHO DE HELIO SALEMA - AS FAMÍLIAS (segundo colocado)

 


AS FAMÍLIAS

HELIO SALEMA



“Interpretações são frutos da mente humana”


CAPÍTULO UM



O clube mais imponente e luxuoso da região, no interior do Estado, estava repleto das figuras mais ricas, influentes e respeitadas da cidade. Era a festa do casamento mais aguardado dos últimos anos, Maria Helena e Augusto José. Das expectativas mais sonhadas, por aqueles que acreditavam que seriam convidados, às mais debochadas e desrespeitadas por aqueles, que com certeza, não iriam nem para catar os restos e limpar o chão.

 A decoração luxuosa e belíssima sem precedente no local. Iluminação perfeita, destacando cada detalhe, meticulosamente colocada para tornar o ambiente, não só agradável, mas causar um “frisson” a todos. A orquestra no palco dava um ar de cinema.

Horas antes à frente da principal igreja da cidade começavam a chegar pessoas das mais diversas classes. Eram fotógrafos, cinegrafistas, organizadores profissionais e até os músicos com seus violinos acompanhados das moças do coral. Como não poderiam faltar, curiosos convictos.

As organizadoras, muito educadas, tiveram dificuldade para acomodar os convidados e familiares, embora estivessem seus lugares previamente reservados.

Por mais organizadas, não foi possível evitar alguns problemas. O Senhor Prefeito, a primeira dama e filha chegaram pouco antes da noiva. Ficaram em pé por alguns minutos. Até que alguém resolveu ceder parte dos lugares ocupados por seus familiares. O que provocou espanto e comentários de alguns:

— Está querendo um emprego ou uma boquinha.

— É “puxa” profissional.

A chegada da noiva foi triunfal, na frente um carro com meninas vestidas impecavelmente. Cada uma trazendo uma rosa vermelha na mão esquerda e na direita buquê branco. Assim que o carro da noiva parou as meninas se posicionaram, formando uma passagem. A noiva desceu do carro e se posicionou entre as meninas. Embora sorrindo, demonstrava uma indisfarçável ansiedade.

Tudo isso exaustivamente fotografado e filmado. Depois de longos minutos se dirigiram até a porta da igreja, sempre as meninas à frente. Novamente, uma longa espera. Finalmente, de fora, ouvia-se um som vindo de dentro da igreja.

Era o rufar dos tambores. Em seguida, o som dos clarins. Após um silêncio, a porta se abriu e lentamente, as meninas entraram demonstrando que foram muito bem treinadas. Finalmente a noiva entra ao som de violinos, tocando a AVE MARIA. Quando a noiva estava na metade do trajeto, foi a vez do coral, acompanhado dos violinos, cantar AVE MARIA. Uma cena que jamais será esquecida por todos aqueles que tiveram o privilégio de ali estar. Principalmente no momento das alianças, quando os violinos tocavam uma música bem conhecida e o coral, repetidas vezes, cantava:

— FICA MAL COM DEUS QUEM NÃO SABE DAR, FICA MAL COMIGO QUEM NÃO SABE AMAR.

Na saída, assim que os noivos atravessam a porta, ouve-se um barulho. Um helicóptero despejava pétalas de rosas brancas e vermelhas sobre os noivos, todos ficaram incrivelmente, surpresos. Exceto um dos padrinhos que sorria a todo vapor, como alguém que dá, e ao mesmo tempo, recebe o presente.

Na chegada dos convidados ao clube, mais trabalho para os organizadores: levar cada família até à mesa previamente reservada. Muito depois de estarem todos acomodados, chega o casal.

Novamente, um momento de esplendor, a orquestra começa a tocar uma música empolgante e triunfal. Os noivos entram acompanhados pelos familiares. Ao se acomodarem, o noivo vai até a orquestra pega o microfone, a orquestra começa a tocar uma música e ele canta para a noiva … “Minha Namorada”.

O desempenho do noivo foi esplêndido, recebeu da noiva, em lágrimas, um prolongado abraço e, beijos. O público aplaudiu de pé por um longo tempo. Enquanto isso a orquestra tocava músicas suaves, complementando assim com um ar de romantismo a belíssima festa. Os noivos dançam ao som de “Suave é a Noite”. Em seguida, ainda dançando, convidam todos a participarem. Em poucos minutos o salão estava repleto. Tudo tão maravilhoso, como num filme dos velhos tempos.

Quando os noivos acabaram de se despedir, mesa por mesa, e saíram, uma multidão foi até o lado de fora para bater palmas e cantar. Muitos ainda queriam cumprimentá-los mais uma vez.

A festa acompanhou a madrugada. Os últimos convidados, ao saírem, se depararam com o clarão do sol, avisando aos boêmios que já era outro dia, havia muito tempo.



CAPÍTULO DOIS



Hoje, dia do meu aniversário. Vinte e cinco anos, último ano de faculdade e bem de saúde física. Emocionalmente arrasado. Nos últimos anos, agora, eu estaria junto com amigos.

Independente do lugar, da hora e de qualquer coisa.

Não sei se foi destino ou fatalidade. Há duas semanas perdi dois amigos num acidente de carro. Sorte não estar naquela viagem, simplesmente, porque não aprecio show de rock.

Ficar em casa e conversar com meu avô Giba. Ouvir minhas músicas preferidas da MPB, e curtir o frio, coisas que me agradam. Receber alguns telefonemas, certamente, pois avisei que não haveria comemoração. Tomei esta atitude mesmo sabendo que a presença de uns poderia amenizar a ausência dos outros.

Ainda há pouco, quando Dona Abaci chegou e me deu os parabéns, eu lhe disse que meu único presente hoje, será dado por ela. Um prato de nhoque, aquele maravilhoso que só ela sabe fazer. Também é o preferido de meu avô Giba. Ela mudou sua expressão de espanto por um sorriso de satisfação. O que me fez muito bem.

Eu e meu avô usufruímos aquele maravilhoso almoço. Lembramos e comentamos como Dona Abaci transformava a casa num verdadeiro lar. Daqui a duas semanas meu avô Giba completará 80 anos e disse que desejava repetir a comemoração.

Depois fomos para a cobertura conversar. Estava um dia claro e agradável, podíamos desfrutar da paisagem. Aproveitei para falar que estava começando a escrever a história de nossa família. A partir do meu nascimento. Pensei que ele fosse relatar detalhes, mas preferiu ficar pensativo. Então falei de como me agrada olhar daqui de cima e ver como é grande, magnífica e linda nossa capital. Ele que também nasceu e cresceu aqui, sempre demonstrou ser grande entusiasta desta metrópole. Falou de como o bairro evoluiu nestes últimos anos.

Em seguida para eu não voltar ao assunto perguntou pelos preparativos da formatura. Falei que pouco sabia, já que não participava da organização. Parecia que estava indo bem, apesar das divergências de costume.

Resolvi comentar sobre meu outro plano na certeza de que ele participaria. Minha carreira como advogado, junto com o Doutor Luís Castro, que alugara a nossa sala, onde meu pai trabalhou. Foi uma conversa longa e muito boa, pois meu avô sempre me apoiou na minha escolha profissional. Muitos elogios ao Dr. Luís Castro, filho de um dos seus melhores amigos.

Concluiu dizendo:

— Família de pessoas competentes e honestas. Com certeza você estará num bom e acolhedor ambiente de trabalho.

Até que o efeito do almoço lhe deu sono e ele foi cochilar. Fui para o meu quarto, preparei os objetos necessários para iniciar aquela árdua e longa tarefa. Relatar fatos dos parentes e amigos, com certeza seria a parte mais difícil. Fiquei em dúvida se conseguiria. Resolvi primeiro me deitar e ouvir música.



CAPÍTULO TRÊS



No dia seguinte, os noivos embarcaram para um cruzeiro de vinte dias por vários países. Os pais recebiam, quase todos os dias, notícias e as comentavam com os demais parentes. Também com amigos que ansiosamente, aguardavam por notícias.

Poucos dias antes do retorno, começaram os planos para recepcioná-los. Alguns gostariam que fosse uma segunda festa. Outros pensavam que, após uma viagem cansativa, seria melhor uma recepção breve. Prevaleceu o grupo festeiro. Imediatamente iniciaram os preparativos.

A decoração ficou a cargos dos familiares. Escolheram algo que lembrava a cada um dos noivos acontecimentos de sua infância e juventude. Também do início do namoro. Como surpresa um enorme painel com as fotos da cerimônia na igreja e da festa no clube. Numa sala especial foram colocados todos os presentes, ainda na embalagem, com os respectivos cartões.



CAPÍTULO QUATRO



Poucos dias após meu nascimento minha mãe veio a falecer. Sempre foi uma pessoa frágil e doente. O que provavelmente levou meu pai a aceitar morar com sogro e cunhada. Era uma casa grande, bonita e confortável. Onde moramos até o falecimento de meu pai, cinco anos após o da minha mãe.

Meu avô não quis continuar naquela casa. Era muito grande para ele, tia Cristina, que naquela época já estava noiva, e eu. Quando passo por lá vejo e admiro a casa, mas não me lembro dos detalhes internos.

Hoje a minha família se resume em mim e meu avô. Minha tia Cristina casou e mudou-se para os Estados Unidos. Seu marido já vivia lá algum tempo, trabalhando como piloto de avião comercial.

Estudei na melhor escola da capital. Frequentei os melhores clubes, mas as minhas reais amizades eram de poucos amigos, não mais que meia dúzia. Nenhum me acompanhou na faculdade, escolheram outros cursos. Um deles, Fabrício, junto com os pais, foi para Portugal. Reduzindo a dois, os mais ligados, até que aconteceu o acidente fatal. A partir daí minhas amizades foram bastante superficiais.

A família de meu pai sempre morou no interior, numa pequena cidade. Muito longe, estrada horrível. Só fui lá duas vezes, no aniversário do meu avô José, quando ainda era criança e depois quando ele faleceu. Na primeira vez eu e meu primo Felipe brigamos. Ele me xingou e disse que eu não era da família. Imediatamente, meu avô José interveio e zangou-se muito com ele. Isso me magoou mais do que os socos e empurrões. Até hoje quando me lembro da maldita frase, me entristeço. Também por não saber se é verdadeira ou não. Está dúvida me corrói. Nunca consegui uma resposta convincente.

Quando do falecimento do avô José, conheci uma de minhas primas, Maria Helena, muito simpática, bonita e bastante atraente. Muita semelhança com minha mãe, além do mesmo nome, principalmente, nos retratos de minha mãe adolescente. Conversa agradável que durou muitas horas. Mais satisfeito fiquei quando Felipe apareceu e ela me disse que o detestava.

Ela é a única pessoa da família do meu pai e daquela cidade que eu gostaria de reencontrar.



CAPÍTULO CINCO



 No porto, duas famílias vindas do interior, aguardavam com muita alegria e ansiedade o atracamento do navio, que trazia o casal. Vieram numa caravana de vários carros para conduzi-los até a cidade natal, onde uma grandiosa festa já estava pronta, no haras dos pais da noiva.  Só para os membros de ambas as famílias.

A festa durou o sábado inteiro, inclusive com “palestras” sobre a viagem.  No domingo o tradicional “enterro dos ossos”. Os recém-casados só iniciaram vida normal na segunda-feira, quando puderam, a sós, entrar na rotina da vida a dois.

O marido ainda teve uma semana de férias. Aproveitou para acompanhar a esposa ao haras. Ela que sempre foi apaixonada pelos animais mais contente ainda estava, pela companhia dele nesses dias.

Quando o marido voltou a trabalhar, Maria Helena além de cuidar da casa, continuou participando da administração do haras, o que sempre fazia desde o início da adolescência junto com o pai. O contato com os animais e o ambiente lhes davam segurança e tranquilidade. Principalmente, pelos bons resultados obtidos em concursos. Além dos prêmios e recursos financeiros.

Com o falecimento do seu pai, dois anos depois, assumiu inteiramente a administração sem atropelos.



CAPÍTULO SEIS



Na semana seguinte após completar 85 anos, meu avô Giba, acometido por um mal súbito, teve que ser hospitalizado. O médico recomendou a internação para fazer exames e avaliar melhor. Quando estávamos a sós me avisou que, aparentemente demonstrava um quadro grave, que necessitava de uma avaliação junto com outros médicos. Preocupado e faminto fui à procura de algo para comer.

 Na lanchonete do hospital encontrei Bárbara, uma amiga, que conversava com uma mulher muito bonita e atraente, tanto quanto um prato de nhoque para quem estava faminto. Por alguns instantes, fiquei de longe, deslumbrado, olhando as maravilhas que a natureza produziu e o meu coração sucumbiu. Não demorou para que Bárbara me visse e acenasse para eu ir aonde elas estavam.

Ao me aproximar a linda flor me fitou com um olhar que não consegui entender e me deixou bastante confuso. Percebi a aliança e o meu coração gelou, tão de repente que comecei a sentir todo o meu corpo congelado. Fomos apresentados, mas gelado ainda fiquei ao ouvir:

— Prazer, Maria Helena.

Não lembro o que eu disse, ainda bem que Bárbara começou a falar que Maria Helena era filha de uma conhecida, que residia no interior. Que o marido Augusto José estava na sala para uma cirurgia do coração. E a convenceu a se alimentar, já que a cirurgia seria longa. Aproveitei para falar do meu avô que estava internado para fazer exames. Maria Helena falou da sua preocupação com a cirurgia do marido, e também com os sogros que residiam no interior, e que certamente estariam aflitos.

 Aproveitei para lanchar junto com elas. Assim que terminaram, elas foram para o quarto aguardar as notícias. Fiquei sozinho, pensando… “Maria Helena … A segunda mulher que vejo, que subitamente me encanta e que tem o mesmo nome de minha mãe”.

No dia seguinte nos encontramos no elevador do hospital. Perguntei como o Augusto estava passando, ela respondeu que estava na UTI e passava bem. Em seguida a porta do elevador se abriu, ela se despediu e saiu. Minha cabeça fervia de pensamentos e desejos. Desejos naturais para um homem no início dos seus trinta anos. Diante de uma mulher formosa em tudo que era visível e mais ainda no imaginário.

Ao chegar ao quarto, no dia seguinte, meu avô estava acordado, notei-o abatido, quieto e pensativo. Cumprimentei. Ele respondeu, mas não me perguntou nada. Era normal ele querer saber alguma coisa. Respeitei o silêncio dele, embora tenha ficado muito preocupado.

Depois de alguns minutos ele olhou para mim e começou a falar:

— Acho que há uma coisa importante para você relatar na história da família. A morte do seu pai não foi apenas um acidente. Embora ele estivesse muito ferido, havia uma bala no crânio. A polícia da cidade onde ocorreu o acidente investigou, mas não obteve resultado. Algumas pessoas sugeriram que contratássemos uma investigação particular. Eu e sua tia decidimos deixar por conta da polícia. Consideramos que seria melhor nos preocuparmos com você e seu futuro. Pois nenhuma novidade poderia trazer seu pai de volta.

— Não havia nenhuma desconfiança?

— Desconfiança não resolveria. Talvez trouxesse mais aborrecimentos e tristezas. Depois, longo silêncio e um suspiro profundo:

— Quando seu pai tinha pesadelos falava:

— Marieta… Marieta… Cuidado com os cavalos.

— Uma única vez perguntei-lhe quem era Marieta, ele não respondeu. Isso começou depois que terminou a sociedade com Dr. Antônio. Também passou a apostar em cavalos. Viajar nos fins de semana e beber, mais que o normal.

— Por que desfizeram a sociedade?

— Nunca quis dar detalhes. Apenas disse que saiu da sociedade. Não queria trabalhar com um traidor. Muito estranho, já que eram amigos desde o colégio. Dr. Antônio voltou para seu estado de origem, e nunca mais tivemos notícia alguma.  Sentimos sua falta. Pelo menos uma vez por semana, jantava conosco e tínhamos uma boa conversa.

— O que levou meu pai a passar os imóveis para o meu nome?

— Foi depois de uma conversa longa e difícil que consegui convencê-lo a passar os imóveis para o seu nome e os aluguéis depositados na minha conta. O que permitiu manter o nosso padrão de vida.  Os rendimentos obtidos no escritório, ele gastava tudo. Ele sempre dizia que era um aventureiro convicto. Eu nunca duvidei e pensava, comigo mesmo, “aventureiro irresponsável”.

Dois dias depois meu avô faleceu. Senti então o peso e a responsabilidade de ter que viver sozinho. Não ter com quem conversar sobre coisas importantes e ao mesmo tempo banais. A solidão que talvez já existisse, fez sentir sua presença.

No velório Bárbara e o marido chegam juntos com Maria Helena, que me abraçou e beijou meu rosto, como se já nos conhecemos de longa data. Para colocar minha cabeça no lugar, perguntei pelo marido. Ela disse que estava bem, já no quarto, e mandou condolências. Fiz questão de agradecer.

Alguns minutos depois falou que tinha que ir, novamente me abraçou fortemente. Mas desta vez não teve beijos.

Semana seguinte, Bárbara me avisou que o Augusto teve alta e já estava em casa no interior. Pensei…Era a senha para eu esquecer aquela mulher. Minha companheira estaria à minha espera em algum lugar desta grandiosa cidade. Talvez mais perto do que eu poderia imaginar. Era uma questão de tempo, mas quão terrível é a espera.



CAPÍTULO SETE



Ledo engano. Duas semanas depois Bárbara me liga, avisando que o Augusto falecera. Pediu minha companhia para ir ao velório. Fiquei pensando se deveria ir, enquanto ela dava detalhes. Concluí que seria melhor ir. Era sábado, eu não tinha nenhum compromisso. Não ficaríamos para o enterro. Voltaríamos cedo, pois Bárbara tinha um compromisso à noite.

Durante a viagem conversamos muito sobre o acontecido. Ela falou que havia poucos dias Maria Helena telefonou e comentou estar preocupada, pois o marido sentia dores no peito, mas ele achava que era normal.

Alguns minutos de silêncio, em seguida disse estar contente com a minha companhia e que também Maria Helena certamente ficaria.  Achei estranha a maneira dela ao fazer este comentário.  Fiquei aguardando a continuação, apesar de ansioso para saber o porquê, não me atrevi a perguntar.

Comentou sobre a bela paisagem da estrada, o que concordei, em seguida falou que Maria Helena, sempre que se comunicava, perguntava por mim ou falava alguma coisa a meu respeito. Nesse momento pensamentos bons, e outros não tão bons, brigavam na minha cabeça.

Ao chegarmos ao velório eu me senti confuso. Lembrei-me de como ela me tratou no do meu avô. Faria a mesma coisa? Certamente que não. Cumprimentaria sem abraço e, beijos. Muita gente estranha para mim, poucas pessoas conhecidas de minha amiga também. Pensei “estou em terras alheias”. Todo cuidado é pouco.

Ao entramos na capela Bárbara cumprimentou algumas pessoas da família e me apresentou.

Quando Maria Helena nos viu, veio ao nosso encontro, abraçou Bárbara longamente, chorando. Eu, ao lado, tremendo sem entender o porquê. Ela parece que se acalma, olha para mim, vem ao meu encontro. Soluçando me abraça e com voz trêmula agradece minha presença:

— Obrigado por vir, José Antônio.

Outras pessoas se aproximam, ela sai dos meus braços e vai se afastando. Que alívio. Fui saindo bem devagar em direção a um lugar com poucas pessoas. Mesmo longe dela eu me sentia fazendo parte daquela tristeza. Minutos depois minha amiga faz um sinal para sairmos.

Ficamos bem distante dos familiares. Mais alguns minutos saímos sem despedirmos. Pois o clima era bastante tenso.

Na volta incialmente falamos das perdas que já tivemos em nossas famílias. Lembramo-nos de amigos e conhecidos que também se foram. Ela falou da preocupação com a situação difícil da Maria Helena. Depois olhou para mim e completou que ela sem dúvida iria superar. Um olhar que me fez pensar se ela me imaginava fazendo parte da solução. Fiquei só na imaginação. Não tive coragem de perguntar. Fui um covarde ou precavido?

Em casa tomei um banho. Liguei a televisão, mas não conseguia pensar em outra coisa ou outra pessoa. De tanto pensar nela cheguei a acreditar que ficaria maluco.

Semana difícil, os dias não passavam, nem o trabalho me distraía. Ainda mais ao atender uma cliente. Inventário de uma viúva residente no interior, a qual um amigo me indicara.

Na semana seguinte não resisti, assim que consegui o telefone, liguei dizendo que estava muito preocupado com ela. Conversamos sobre nossas perdas e que deveríamos ter esperança de dias melhores. A partir daí nossas conversas tornaram-se quase diárias.

Passados alguns meses, apesar de temer a reação dela, tive a coragem de dizer que gostaria de uma conversa pessoalmente. Não respondeu de imediato. Maldito silêncio. Mais alguns segundos e disse que seria melhor esperar um pouco mais. Concordei. Assim continuamos nos comunicando por e-mail e telefonemas, por algumas semanas.

Novamente fiz o convite, a resposta foi aguardar passar seis meses. Quando finalmente concordou em nos encontrarmos, ela disse que havia discutido o assunto com a mãe, a qual sugeriu que eu fosse até lá, para uma visita.



CAPÍTULO OITO



Chegando à casa fui recebido por uma senhora simpática, toda de branco, que me explicou que D. Marieta e Maria Helena tinham ido ver o potro que acabara de nascer, mas que já estavam vindo. Sorridente me convidou para entrar.

Sentei-me na sala e poucos minutos depois ouvi barulho de pessoas chegando. Era Maria Helena que me apresentou à sua mãe. Ao ouvir seu nome, Marieta, me veio à lembrança o que, me fora dito, pelo meu avô Giba. Perguntou se eu tinha feito boa viagem. Pediu desculpas por terem chegado depois, e disse que a culpa era dela que, muito ansiosa com o nascimento do potro, fez a filha se atrasar. Sorri e disse que não havia problema, eu compreendia a situação.

 Maria Helena também estava toda contente. Fiquei na dúvida se era minha presença ou o nascimento do potro. Ficamos os três conversando. Eu disse que tive um pouco de dificuldade na entrada da cidade. Pelo que a mãe dela perguntou:

— É a primeira vez que vem a esta cidade?

 Não querendo mencionar o dia do enterro, respondi:

— Sim. Sua filha é que sempre falou coisas maravilhosas daqui.

 — Antes o senhor nunca ouviu falar da nossa cidade?

— Não. Meu pai tinha amigos aqui, há muitos anos.

— Mas ele nunca lhe falou nada?

— Não. Ele faleceu quando eu era pequeno.

Depois de alguns segundos, pensativa:

— Qual era o nome do seu pai?

— Dr. Calisto.  Heitor Calisto Flores dos Santos.

Silêncio e um olhar estarrecedor. Parecia que uma notícia inesperada e péssima havia chegado. Levantou-se e anunciou:

— Vou providenciar um café pra nós.

A sós, ficamos a meditar em silêncio.

Maria Helena quebrou o silêncio, perguntando como fora a viagem. Respondi, tranquila e com muita expectativa. Ela sorriu e acrescentou que também esteve muito ansiosa nos últimos dias:

— Ansiosa com o nascimento?

Sorrindo, exclamou:

— Também.

E começou a falar sobre o potro, evitando naquele momento falar dos próprios sentimentos.

Sua mãe chega e avisa que a mesa de café já estava pronta.

 Durante o café nos falamos pouco. Ao término D. Marieta suspira e começa a falar, pausadamente:

— Ficarei muito contente se vocês continuarem com a amizade através da internet e telefonemas.

Maria Helena se assusta, olha para a mãe e pergunta:

— Mãe, por quê?

Aquela senhora que até o momento demonstrava ser forte e segura, coloca as mãos postas em frente ao rosto, como se solicitasse ajuda divina. E em desabafo de um grande peso:

— Filha…você foi fruto de uma paixão divina, arrasadora e obsessiva com um conquistador aventureiro.  VOCÊS SÃO IRMÃOS!


...

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

CAFÉ e TRAIÇÃO - Helio Fernando Salema

 

CAFÉ e TRAIÇÃO

Helio Fernando Salema

 

No café mais imponente da cidade, Café Sedução, a esposa do gerente, uma loira de olhos verdes, simpática e linda, trabalhava cuidando da qualidade dos produtos. Durante a noite fazia o curso de engenharia de alimentos. Ele, funcionário antigo do café, nunca quis estudar. Preferia nas horas de folga, se divertir com amigos.

Há poucas semanas uma nova funcionária, que só trabalhava durante o dia, atraiu a atenção de muita gente. Inclusive do gerente. Bem mais nova do que ele e a esposa, ambos na faixa dos quarenta, também tinha suas noites livres, pois não estudava. Apenas com o segundo grau, dava-se por satisfeita.

A troca constante de olhares e gentilezas aumentava a cada dia. Bastou um convite para tomar uns drinks. A noite era livre para os dois e ocupada para a esposa do gerente. Num barzinho, não muito distante e bastante reservado, os encontros tornaram-se frequentes. Até que ele conseguiu que um amigo lhe emprestasse o apartamento. Durante alguns meses, tudo transcorria na mais perfeita relação.

Com o fim do período das aulas, os encontros ficaram mais escassos. A esposa queria aproveitar o período de férias e ficar com o marido, sair à noite, no horário de folga de ambos, pois gostavam de teatro e cinema, mas não em companhia de amigos.

Para atender à esposa, ele foi obrigado a se ausentar do apartamento do amigo. A amante, com toda certeza, se viu abandonada. Num raro momento em que estiveram a sós, no café, ela reclamou da ausência dele. Ele se justificou, dizendo que no período de férias escolares não seria possível manter os encontros. Por mais que jurasse que estava com saudades, não a convenceu. Até que ocorreu o ultimato:

— A separação é a solução!

Temendo trocar a certa e tranquila relação, por uma outra, embora gratificante, não se sentiu atraído. Percebendo que ele “balançava” acrescentou:

— Se você foi sincero quando queria me conquistar, qual a dúvida agora?

Silêncio, foi a única coisa que ele pode fazer. Aproveitou que alguém lhe chamava, saiu rapidamente, sem dizer uma palavra sequer. Naquele silêncio e abandono, uma terrível luz acendeu na mente obscura.

O Café Sedução ficava num local muito movimentado. Perto de uma faculdade e vários prédios comerciais. Tinha uma freguesia bastante diversificada. Jovens estudantes, profissionais liberais e adultos de várias faixas etárias. A amante que era jovem, bonita e atraente não teve dúvidas. Escolheu um rapaz muito bonito, charmoso e que demonstrava ser um hábil conquistador. Assim provocaria ciúme ao seu amante. Todas as vezes que o rapaz chegava, ela como uma fera, que corre ao encalço da presa, se apressava em atendê-lo. Com aquele sorriso encantador e simpatia, não foi difícil atrair a atenção do jovem.

Dias depois, era ele quem a procurava assim que chegava ao café. A conversa entre eles despertou a atenção dos demais, inclusive do gerente.

Até que um dia, após aquela conversa amorosa, o jovem sai. Minutos depois um entregador chegava com um belíssimo buquê de rosas vermelhas. Após olhar atentamente para todas as funcionárias, identifica e entrega à linda e charmosa morena. Ao receber e ler o cartão, sorri prazerosamente, com uma felicidade jamais demonstrada por alguém naquele recinto.

O gerente imediatamente foi para a cozinha, como querendo se esconder e temendo demonstrar suas reações.

Os dias foram passando e o gerente cada momento demonstrava mais irritação. Não era mais tão atencioso com os fregueses, menos ainda com os funcionários, incluindo aí a própria esposa. Por outro lado, sua ex-amante cada dia mais radiante, alegre e por que não, mais atraente. Passou a frequentar academia, cabeleireiro e ao chegar estava sempre muito bem vestida. Chamando a atenção de todos.

A mudança do comportamento do gerente era evidente. Dia após dia, mais mal-humorado e de pouca conversa. Algumas noites antes de voltar para a casa, ficava nos bares bebendo até tarde. Não raro chegava em casa embriagado.

Após uma noite mal dormida, devido ao excesso de bebidas e “broncas” da esposa, chega ao trabalho ainda mais irritado. Vai até a cozinha e prossegue a discussão iniciada em casa. Ambos se irritam bastante. Chamado ao salão para atender a reclamação de um freguês assíduo, ouviu atentamente e, embora não concordasse, engoliu tudo em seco. O freguês por sua vez, também saiu demonstrando não estar satisfeito. Esperava ser melhor atendido pelo gerente.

Ao retornar à cozinha, sua esposa estava concentrada no celular e não ouviu o que ele perguntara. Irritado quis ver aquilo que a deixava tão concentrada, que não lhe dava atenção. Quis tomar o celular à força. Ela mais rápida que ele, levou as mãos para trás. Por mais que tentasse ela não permitia. Desesperado pegou uma faca que estava sobre a mesa. Apontou na direção dela e gritou para que entregasse o celular. Ela com medo e estranhando a atitude dele:

— Não faça isso!

Num gesto de desespero, querendo demonstrar que ele era capaz de pelo menos uma reação na vida. Cravou a faca com toda força no ventre da esposa. Ela gritou. Ele se afastou, como não acreditando no que via.

Várias pessoas correram para socorrê-la Ele se sentou numa cadeira e começou a chorar desesperadamente.

Depois de alguns meses, a ex-funcionária do Café Sedução, Maria Imaculada dos Anjos, agora trabalhando como vendedora de perfumes e cosmético a domicílio, vai, pelo menos uma vez por semana, ao presídio, visitar seu ex-chefe e ex-amante, também ex-gerente do Café Sedução, Arcanjo Fortunato dos Prazeres.



PRAIA DOS AMORES - Hélio Fernando Salema

 


PRAIA DOS AMORES

Hélio Fernando Salema

 

Há vários anos que a família de Santiago dos Santos, no verão, viaja da pequena cidade no interior do Estado, para o litoral. Viagem longa, cansativa, mas sempre muito gratificante. Normalmente tinha a companhia de outras famílias da mesma cidade ou de cidades vizinhas.

Desta vez, no entanto, viajaram somente os três. Santiago, a esposa Madalena e a única filha, Melissa. Também desta vez resolveram ficar num hotel de frente para a praia.

No mesmo andar do hotel se hospedaram, o casal Ricardo e Selma. Residentes na Capital. Este ano para comemorar o quinto aniversário de casamento, escolheram ir para o litoral e não viajar para a fazenda dos pais de Selma no interior.

Numa manhã de sol com todo esplendor, a multidão de turistas lotava a praia. O casal aluga uma tenda e cadeiras. Apesar de parecer que não havia mais espaço, o dono das cadeiras, acostumado com a situação, vai procurando. Muito habilidoso que é, e também interessado em atender seus clientes, consegue um lugar para colocá-los. Finalmente, instalados bem perto da família Santiago.

Enquanto eram colocados os apetrechos de praia na barraca, Ricardo percebeu que a jovem, que estava junto com os pais, olhava em sua direção. Para não deixar que sua esposa percebesse, evitou olhar e se posicionou de costas.

Não demorou muito para a jovem levantar-se e ir em direção ao mar. Ricardo pode então admirar todo o monumento da natureza física, que desfilava, tendo o céu e o mar ao fundo, como querendo abraçar todo aquele esplendor de juventude.

Em poucos minutos as esposas já se entrosaram, falando de suas cidades. Madalena ao saber que Selma residia na Capital, logo se apressou em dizer que jamais moraria numa grande cidade. Selma respondeu que também era nascida e criada numa pequena cidade. Assim que se casou teve que se mudar. Seu marido sempre morou e trabalhou na Capital. Bastou alguns meses, para ela se sentir à vontade.

Os maridos também, sem dificuldades, descobriram que torciam pelo mesmo time. Assim o assunto de futebol dominou a conversa entre eles.

Melissa ao retornar junto aos pais, percebendo o entrosamento, aproveitou para ficar de pé, com a desculpa de pegar um pouco mais de sol. Por mais que Ricardo tentasse evitar, a todo momento a tentação vencia. Algumas vezes os olhares se encontraram e as reações foram inevitáveis. Certo momento Santiago percebeu, e uma preocupação atormentou aquele pai muito tradicional. Olhou para o relógio, chamou a esposa e filha para irem para o hotel. Tomar banho e almoçar antes que o restaurante ficasse cheio.

Durante o almoço nada de anormal. Saíram depois para andar pelas lojas. Esposa e filha aproveitaram para fazer algumas compras.  De volta ao hotel, quando estavam só os três, Santiago aproveitou e calmamente falou para a filha tomar cuidado com Ricardo. Era um homem experiente demais, pois sempre viveu na Capital. Também por ter demonstrado não ser uma pessoa da qual se podia confiar. Que não era capaz de respeitar qualquer pessoa. Melissa ouviu em silêncio, já que nunca se atreveu a contrariar o pai.

No dia seguinte Santiago escolheu um outro ponto da praia para ficar com a família. No restante do dia não se encontraram com o outro casal.  À noite, quando eles estavam sentados no calçadão apreciando as belezas do luar sobre o mar, Melissa disse que ia até a sorveteria.  Afastou dos pais e caminhou ansiosamente.  Como demorou, seu pai preocupadíssimo, foi procurá-la. Deixando a esposa sozinha. Não viu sua filha na sorveteria, nem nas proximidades. Continuou a procurar sem êxito durante alguns minutos. Ao se aproximar de um bar, viu sua filha saindo daquele local. Ficou paralisado. Não teve forças para se locomover, nem voz para chamá-la.

Enquanto ela se afastava, ele respirou fundo e conseguiu dar alguns passos. Lentamente conseguiu chegar até a porta do bar. Ao olhar para dentro, viu Ricardo sentado sozinho. O garçom estava próximo, parecia que estava pagando a conta. Deu mais alguns passos e ficou atrás de uma banca de jornal. Em poucos segundos Ricardo sai carregando um pacote, que parecia de lanche, e vai sozinho, em direção ao hotel.

Santiago volta ao local onde deixou sua esposa. Lá estavam as duas. Lembrando-se da reação que teve minutos antes, e temendo que se repetisse, ficou em silêncio.

Na manhã do dia seguinte, antes do sol nascer, a família Santiago retorna à sua pequena e tranquila cidade.

Duas semanas depois, Melissa que obteve uma excelente nota nos exames, recebe a notícia de que conseguiu vaga na Faculdade Federal de Medicina. Alegria total na casa. Mistura de risos e choros. O que para muitos parecia impossível, aconteceu. Primeira vez que ela tenta e consegue, o que ela mesma achava que seria muito difícil. A notícia de que era na Capital não abalou o entusiasmo de toda a família.

Poucas horas depois, lembrando-se de que outras moças da mesma cidade já cursavam a mesma faculdade. Começaram os preparativos para que a adorada filha fosse realizar seu grande sonho, um dia se tornar uma DOUTORA.

Depois de receberem informações a respeito da nova moradia para a filha, embarcaram os três para a Capital. Poucas dificuldades. Melissa ficou numa casa na qual duas conhecidas já residiam.

Após algumas semanas, Melissa estando a sós no seu quarto resolve pegar aquele pedaço de papel que Ricardo lhe entregou. Era o número do telefone do escritório e o melhor horário para encontrá-lo. Pensou duas vezes e o guardou.

Nos fins de semana, junto com as amigas, ia ao shopping comer alguma coisa ou tomar sorvete. Raramente ia ao cinema. Numa dessas idas ao shopping viu ao longe alguém que parecia ser o Ricardo. Foi naquela direção, mas não o encontrou.

Na segunda-feira resolveu ligar. Na primeira vez ele não estava. A secretaria disse que ele retornaria dali a pouco. No final da tarde ligou. Ele atendeu muito surpreso. Ficou mais surpreso com a notícia de que ela estava estudando na Capital.

Os telefonemas se sucederam. Os encontros aconteceram.


JORNAL DA CAPITAL

CASAL ENCONTRADO MORTO NO QUARTO DE HOTEL

Advogado casado, e jovem estudante solteira

Suspeita de vazamento de gás ou suicídio

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

CALMA, TONHÃO! - Leon Vagliengo

 



CALMA, TONHÃO!

Leon Vagliengo

 

A história de um ‘machão’ arrependido e a revelação do motivo do misterioso desaparecimento de sua amada Marinalva.

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Desde que nasci, até hoje, moro com os meus pais na Vila Nhocuné, na Zona Leste, periferia da cidade de São Paulo. Descobri que esse nome esquisito nasceu com os escravos, que chamavam o fazendeiro de “Senhor Coronel”, mas diziam “Nhô Cuné”, e assim foi batizado o lugar, quando deixou de ser uma fazenda e se tornou um bairro.

A minha mãe, Dona Isabel, é uma branca de muito juízo, que sempre cuidou muito bem de mim, de meu pai e de nossa casa. O Seu Antônio, meu pai, é preto, bem preto mesmo, muito sério e trabalhador. Com muito sacrifício dos dois, há muitos anos compraram um terreninho e construíram uma edícula nos fundos para os primeiros anos da vida de casados. Depois, deixaram a edícula sem acabamento para não gastar muito e nem perder tempo, e já foram construindo, aos poucos, no restante do terreno, a boa casinha onde hoje moram.

Como todos podem ver, morando na Zona Leste e até por uma questão de sangue, eu só poderia ser, e sou, corinthiano, alvinegro. Às vezes, brincando com meus pais, mas sempre com muito respeito e carinho, chamo a minha mãe de “Dona Branquela” e o meu pai de “Seu Negão”. Eles riem e me chamam de “Café-com-leite”, apelido que até acho meio bobo, mas não digo nada, porque eles gostam. Se eu não “apronto” nada, o clima em casa é sempre de muito amor e tranquilidade.

O Seu Antônio nasceu num dia treze de junho, dia de Santo Antônio, e recebeu esse nome em homenagem ao Santo. Por uma incrível, mas interessante coincidência, nasci de parto normal também num dia treze de junho. Filho de Antônio, e nascido no dia de Santo Antônio, não podia dar outra: o meu nome é mesmo Antônio, Antônio Lupércio de Oliveira Filho, e meus pais me chamam de Tonico desde quando eu era criança até hoje; mas todo mundo na Vila me conhece por Tonhão. É porque sempre fui muito forte e briguento, e as pessoas da rua e da academia onde “puxo ferro” me respeitam, como tem mesmo que ser. Aqueles que tiveram a coragem de me encarar, sempre se deram mal.

Quando eu e a minha linda e querida Marinalva resolvemos juntar os trapos e tarecos, os meus pais nos cederam a edícula para termos onde morar, pelo menos por um tempo.

— Serviu para mim e para a sua mãe, “quebra bem o galho”. Vocês ficam aí pelo tempo que quiserem, ninguém vai incomodá-los – disse o meu pai, o “Seu Negão”, todo feliz, com a aprovação da sorridente “Dona Branquela”, ambos irradiando a imensa alegria que sentiam naquele momento tão importante para o seu filho Tonico.

Sim, sempre fui muito forte. Nasci com mais de quatro quilos e quando era menino, na escola, brigava muito e batia nos colegas. Dei muito trabalho para os meus pais, que eram chamados à Diretoria quase todas as semanas. Aos trancos e barrancos frequentei a escola só até o sétimo ano do Ensino Fundamental. Hoje trabalho no depósito de uma grande loja de materiais de construção, onde sou muito útil, principalmente para manusear aqueles artigos pesados, como lajotas e vasos sanitários. Cresci, fiquei adulto, mas nunca mudei os meus modos, sou assim mesmo. E muito, muito desconfiado.

<<< O >>>

 

        — Tonhão!

— ...?

— Ô Tonhão!

        Era um domingo, eu tinha acabado de tomar o café da manhã, quando ouvi a voz esganiçada e inconfundível do Jujuba, o meu amigo Juarez, que ganhou por apelido o nome daquelas balas porque sempre combinava camisas bem azuis ou bem amarelas com bermudas bem verdes ou até bem vermelhas. Sempre foi o cara mais colorido da turma.

        Abri a porta e saí da velha edícula ainda sem acabamento que meus pais construíram nos fundos da casa deles e cederam para eu morar com a minha Marinalva, como já contei, e fui lá no portão para ver qual era o “babado” que trazia o Jujuba tão cedo à minha casa. A gente sempre tem algum programa e eu sou “arroz de festa”, “topo” todos: festas, passeios, futebol, nunca perco um; mas estranhei, porque nesse dia não tinha nada marcado. Cheguei, Jujuba já foi dizendo:

        — “Maluco”, o moço aqui “tava” perguntando lá no bar qual é a casa do senhor Antônio Lupércio de Oliveira Filho, e eu logo “saquei”: só pode ser o Tonhão. Ele quer “bater um papo” com você.

Olhei para o estranho. Ele estava acompanhado de um outro “gajo”, que me apontava uma câmera, daquelas de televisão. Não gostei do atrevimento. Nem um pouco. Que negócio é esse? Quem são esses “caras”? O quê que eles querem comigo?

Mal pensei e o primeiro já foi dizendo:

— Senhor Antônio, eu sou o Rafael, muito prazer. O senhor foi sorteado entre centenas de interessados e eu estou aqui para lhe fazer uma proposta em nome de uma conhecida construtora, que mais tarde lhe será revelada, mas somente depois que todo o processo, que vou lhe apresentar, estiver contratado.

E continuou, me dizendo que eu e minha companheira ganharíamos uma viagem de um mês para o Nordeste, desde que eu lhes confiasse as chaves de minha casa, onde a construtora faria uma reforma completa, com móveis, decoração e tudo o mais. Aí, concluiu:

— Para realizar esse sonho, o senhor só terá que autorizar que as imagens da reforma em sua casa sejam utilizadas pela empresa, para propaganda.

— Claro que não! – Respondi “na lata”.

Para mim estava na cara que era treta. Eu nunca me inscrevi em concurso nenhum, sempre achei que são uma tremenda enganação. E quem faria uma proposta generosa dessas? Aí tem! Esmola demais, o santo desconfia! Imagine que eu deixaria a chaves da minha casa com um desconhecido e ficaria longe dela por um mês! Só se eu fosse maluco mesmo, como me chamou o Jujuba!

— “Tá” pensando que eu sou otário?! – Exclamei.

Evidentemente surpreso, o tal do Rafael apenas balbuciou:

— Mas...

E nem continuou, não deu tempo. O meu sangue ferveu, subiu à minha cabeça; não admito que tentem me fazer de trouxa. Avancei na hora para o infeliz e cobri ele de pancadas. O amigo dele tentou me segurar, dei-lhe um soco, a câmera voou longe, ele junto. Jujuba tentou me segurar, e eu é que me segurei para não lhe dar também uns cascudos; escapou dessa só porque ele é meu amigo de fé.

Soco daqui e empurrão dali, apareceu uma viatura da polícia, apareceram policiais, apareceram armas, apareceu uma delas quase no meu nariz; tive que ficar quieto e me acalmar, a coisa ficou feia. Resumindo, os visitantes foram para o Pronto Socorro cuidar dos hematomas, e eu para a Delegacia, onde tentei explicar para o Delegado as minhas razões. Acho que não o convenci nem um pouquinho, porque ele mandou que me colocassem numa cela.

Alertados pelo Jujuba, daí a pouco chegaram, muito aflitos, o Seu Antônio e a Dona Isabel, meu pai e minha mãe, que foram tentar amenizar as coisas com o Delegado.

— E a Marinalva? Por que ela não veio? – Perguntei de longe, da cela, mas eles nem me ouviram, passaram direto para falar com o Delegado, que lhes disse, poderoso e irônico, como depois me contou o meu pai:

— O seu filho teve muita sorte. Foi uma briga feia, mas o interessado preferiu não registrar queixa porque entendeu que não seria bom para a imagem da empresa promotora do concurso. Só que o Antônio ficará detido aqui até amanhã, para se acalmar e meditar um pouco sobre o que fez.

No dia seguinte fui liberado e voltei para casa. Cheguei, não encontrei a Marinalva. Queria saber por que ela não tinha ido com eles à Delegacia. Por que não estava me aguardando? Será que não se preocupa mais comigo? Ninguém me compreendeu nessa embrulhada toda, e eu esperava, pelo menos, o apoio dela. Onde foi parar a nossa cumplicidade, de que ela sempre fala tanto?

— “Cadê” a Marinalva? – Perguntei, zangado, bravo mesmo.

A minha mãe ficou calada. O meu pai me olhou, muito sério. Pensou um pouco, acho que foi para estudar como me diria aquilo. Finalmente, falou:

— Você viu como ela estava feliz, ultimamente? Foi porque inscreveu o teu nome no concurso para a reforma da casa, e você deu sorte, ganhou; mas ela não te disse nada porque queria te fazer uma surpresa. A gente sabia, até o Jujuba sabia. Mas você é uma besta, brigou e estragou tudo, jogou fora o prêmio. Agora não sabemos onde ela está, ficou muito chateada, chorou muito, sumiu.

Besta, eu?! Demorei um pouco para entender. Mas, de repente, “caiu a ficha” e vi que só fiz besteiras, mesmo: Perdi a reforma da edícula, perdi a viagem, e perdi a Marinalva...perdi a Marinalva?! ...MEU DEUS! ... A MARINALVA NÃO! ...A MARINALVA NÃO!

Desesperado, já percorri toda a Vila Nhocuné, sem sucesso, perguntando:

— Por favor, é importante: alguém aí sabe onde está a Marinalva?

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O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...