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quarta-feira, 24 de novembro de 2021

CALMA, TONHÃO! - Leon Vagliengo

 



CALMA, TONHÃO!

Leon Vagliengo

 

A história de um ‘machão’ arrependido e a revelação do motivo do misterioso desaparecimento de sua amada Marinalva.

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Desde que nasci, até hoje, moro com os meus pais na Vila Nhocuné, na Zona Leste, periferia da cidade de São Paulo. Descobri que esse nome esquisito nasceu com os escravos, que chamavam o fazendeiro de “Senhor Coronel”, mas diziam “Nhô Cuné”, e assim foi batizado o lugar, quando deixou de ser uma fazenda e se tornou um bairro.

A minha mãe, Dona Isabel, é uma branca de muito juízo, que sempre cuidou muito bem de mim, de meu pai e de nossa casa. O Seu Antônio, meu pai, é preto, bem preto mesmo, muito sério e trabalhador. Com muito sacrifício dos dois, há muitos anos compraram um terreninho e construíram uma edícula nos fundos para os primeiros anos da vida de casados. Depois, deixaram a edícula sem acabamento para não gastar muito e nem perder tempo, e já foram construindo, aos poucos, no restante do terreno, a boa casinha onde hoje moram.

Como todos podem ver, morando na Zona Leste e até por uma questão de sangue, eu só poderia ser, e sou, corinthiano, alvinegro. Às vezes, brincando com meus pais, mas sempre com muito respeito e carinho, chamo a minha mãe de “Dona Branquela” e o meu pai de “Seu Negão”. Eles riem e me chamam de “Café-com-leite”, apelido que até acho meio bobo, mas não digo nada, porque eles gostam. Se eu não “apronto” nada, o clima em casa é sempre de muito amor e tranquilidade.

O Seu Antônio nasceu num dia treze de junho, dia de Santo Antônio, e recebeu esse nome em homenagem ao Santo. Por uma incrível, mas interessante coincidência, nasci de parto normal também num dia treze de junho. Filho de Antônio, e nascido no dia de Santo Antônio, não podia dar outra: o meu nome é mesmo Antônio, Antônio Lupércio de Oliveira Filho, e meus pais me chamam de Tonico desde quando eu era criança até hoje; mas todo mundo na Vila me conhece por Tonhão. É porque sempre fui muito forte e briguento, e as pessoas da rua e da academia onde “puxo ferro” me respeitam, como tem mesmo que ser. Aqueles que tiveram a coragem de me encarar, sempre se deram mal.

Quando eu e a minha linda e querida Marinalva resolvemos juntar os trapos e tarecos, os meus pais nos cederam a edícula para termos onde morar, pelo menos por um tempo.

— Serviu para mim e para a sua mãe, “quebra bem o galho”. Vocês ficam aí pelo tempo que quiserem, ninguém vai incomodá-los – disse o meu pai, o “Seu Negão”, todo feliz, com a aprovação da sorridente “Dona Branquela”, ambos irradiando a imensa alegria que sentiam naquele momento tão importante para o seu filho Tonico.

Sim, sempre fui muito forte. Nasci com mais de quatro quilos e quando era menino, na escola, brigava muito e batia nos colegas. Dei muito trabalho para os meus pais, que eram chamados à Diretoria quase todas as semanas. Aos trancos e barrancos frequentei a escola só até o sétimo ano do Ensino Fundamental. Hoje trabalho no depósito de uma grande loja de materiais de construção, onde sou muito útil, principalmente para manusear aqueles artigos pesados, como lajotas e vasos sanitários. Cresci, fiquei adulto, mas nunca mudei os meus modos, sou assim mesmo. E muito, muito desconfiado.

<<< O >>>

 

        — Tonhão!

— ...?

— Ô Tonhão!

        Era um domingo, eu tinha acabado de tomar o café da manhã, quando ouvi a voz esganiçada e inconfundível do Jujuba, o meu amigo Juarez, que ganhou por apelido o nome daquelas balas porque sempre combinava camisas bem azuis ou bem amarelas com bermudas bem verdes ou até bem vermelhas. Sempre foi o cara mais colorido da turma.

        Abri a porta e saí da velha edícula ainda sem acabamento que meus pais construíram nos fundos da casa deles e cederam para eu morar com a minha Marinalva, como já contei, e fui lá no portão para ver qual era o “babado” que trazia o Jujuba tão cedo à minha casa. A gente sempre tem algum programa e eu sou “arroz de festa”, “topo” todos: festas, passeios, futebol, nunca perco um; mas estranhei, porque nesse dia não tinha nada marcado. Cheguei, Jujuba já foi dizendo:

        — “Maluco”, o moço aqui “tava” perguntando lá no bar qual é a casa do senhor Antônio Lupércio de Oliveira Filho, e eu logo “saquei”: só pode ser o Tonhão. Ele quer “bater um papo” com você.

Olhei para o estranho. Ele estava acompanhado de um outro “gajo”, que me apontava uma câmera, daquelas de televisão. Não gostei do atrevimento. Nem um pouco. Que negócio é esse? Quem são esses “caras”? O quê que eles querem comigo?

Mal pensei e o primeiro já foi dizendo:

— Senhor Antônio, eu sou o Rafael, muito prazer. O senhor foi sorteado entre centenas de interessados e eu estou aqui para lhe fazer uma proposta em nome de uma conhecida construtora, que mais tarde lhe será revelada, mas somente depois que todo o processo, que vou lhe apresentar, estiver contratado.

E continuou, me dizendo que eu e minha companheira ganharíamos uma viagem de um mês para o Nordeste, desde que eu lhes confiasse as chaves de minha casa, onde a construtora faria uma reforma completa, com móveis, decoração e tudo o mais. Aí, concluiu:

— Para realizar esse sonho, o senhor só terá que autorizar que as imagens da reforma em sua casa sejam utilizadas pela empresa, para propaganda.

— Claro que não! – Respondi “na lata”.

Para mim estava na cara que era treta. Eu nunca me inscrevi em concurso nenhum, sempre achei que são uma tremenda enganação. E quem faria uma proposta generosa dessas? Aí tem! Esmola demais, o santo desconfia! Imagine que eu deixaria a chaves da minha casa com um desconhecido e ficaria longe dela por um mês! Só se eu fosse maluco mesmo, como me chamou o Jujuba!

— “Tá” pensando que eu sou otário?! – Exclamei.

Evidentemente surpreso, o tal do Rafael apenas balbuciou:

— Mas...

E nem continuou, não deu tempo. O meu sangue ferveu, subiu à minha cabeça; não admito que tentem me fazer de trouxa. Avancei na hora para o infeliz e cobri ele de pancadas. O amigo dele tentou me segurar, dei-lhe um soco, a câmera voou longe, ele junto. Jujuba tentou me segurar, e eu é que me segurei para não lhe dar também uns cascudos; escapou dessa só porque ele é meu amigo de fé.

Soco daqui e empurrão dali, apareceu uma viatura da polícia, apareceram policiais, apareceram armas, apareceu uma delas quase no meu nariz; tive que ficar quieto e me acalmar, a coisa ficou feia. Resumindo, os visitantes foram para o Pronto Socorro cuidar dos hematomas, e eu para a Delegacia, onde tentei explicar para o Delegado as minhas razões. Acho que não o convenci nem um pouquinho, porque ele mandou que me colocassem numa cela.

Alertados pelo Jujuba, daí a pouco chegaram, muito aflitos, o Seu Antônio e a Dona Isabel, meu pai e minha mãe, que foram tentar amenizar as coisas com o Delegado.

— E a Marinalva? Por que ela não veio? – Perguntei de longe, da cela, mas eles nem me ouviram, passaram direto para falar com o Delegado, que lhes disse, poderoso e irônico, como depois me contou o meu pai:

— O seu filho teve muita sorte. Foi uma briga feia, mas o interessado preferiu não registrar queixa porque entendeu que não seria bom para a imagem da empresa promotora do concurso. Só que o Antônio ficará detido aqui até amanhã, para se acalmar e meditar um pouco sobre o que fez.

No dia seguinte fui liberado e voltei para casa. Cheguei, não encontrei a Marinalva. Queria saber por que ela não tinha ido com eles à Delegacia. Por que não estava me aguardando? Será que não se preocupa mais comigo? Ninguém me compreendeu nessa embrulhada toda, e eu esperava, pelo menos, o apoio dela. Onde foi parar a nossa cumplicidade, de que ela sempre fala tanto?

— “Cadê” a Marinalva? – Perguntei, zangado, bravo mesmo.

A minha mãe ficou calada. O meu pai me olhou, muito sério. Pensou um pouco, acho que foi para estudar como me diria aquilo. Finalmente, falou:

— Você viu como ela estava feliz, ultimamente? Foi porque inscreveu o teu nome no concurso para a reforma da casa, e você deu sorte, ganhou; mas ela não te disse nada porque queria te fazer uma surpresa. A gente sabia, até o Jujuba sabia. Mas você é uma besta, brigou e estragou tudo, jogou fora o prêmio. Agora não sabemos onde ela está, ficou muito chateada, chorou muito, sumiu.

Besta, eu?! Demorei um pouco para entender. Mas, de repente, “caiu a ficha” e vi que só fiz besteiras, mesmo: Perdi a reforma da edícula, perdi a viagem, e perdi a Marinalva...perdi a Marinalva?! ...MEU DEUS! ... A MARINALVA NÃO! ...A MARINALVA NÃO!

Desesperado, já percorri toda a Vila Nhocuné, sem sucesso, perguntando:

— Por favor, é importante: alguém aí sabe onde está a Marinalva?

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