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segunda-feira, 21 de outubro de 2019

CULINÁRIA COM AFETO - FOTOS DO LANÇAMENTO




Feliz quem tem família para juntos sentarem à mesa e saborearem uma receita afetiva.

A tradição de reunir a família para as refeições, trouxe valores, respeito e muita saudade entre os entes queridos. 

Para nosso deleite esses momentos entraram em páginas coloridas de papel couché, com belas fotos impactantes para representar o amor que essas receitas contém.

No dia 19 de outubro de 2019, a  De Tommaso e a Mother's Pie   Mother's Pie nos presentearam com um inesquecível coquetel de lançamento do livro CULINÁRIA COM AFETO, que foi editado pela Literatum. 

Justamente nesta data comemoramos os 10 anos do ICAL, motivo de sobra para festejar com pessoas tão queridas que tanto representam para o Instituto. 

O dia foi marcado pela alegria, pela  amizade, e pelo carinho que brotava de mãos, canetas,  sorrisos e abraços.

E para abrilhantar o tema os autores se cercaram de amigos e de filhos, noras, genros, netos e bisnetos. E aí ficou fácil de ser feliz, não é mesmo?

Enquanto tudo isso transbordava, a Ivy registrava tintim-por-tintim em fotos que agora postamos aqui. 

Agradecemos aos patrocinadores, e à PL pelo espaço que nos foi oferecido para o evento. 

Obrigada em nome da Dinah Choichit, da Ana Maruggi, da Ivy, do Vitor e  Carmen De Tommaso:












































































































Que esta união perdure.
Que esta alegria perdure.
Que para sempre tenhamos receitas e afetos para reunir todos. 




quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Dificuldades de uma detetive - Hirtis Lazarin



Detetive fêmea com lupa Vetor grátis

Dificuldades de uma detetive
Hirtis Lazarin


          Lisa acordou assustada com os latidos de Rex, seguidos de um longo e amargurado uivo.  Lembrou-se de que estava sozinha em casa.  Pulou da cama feito mola, desequilibrou-se e, apoiada no criado-mudo, bateu com força no despertador que se espatifou no chão.  Os ponteiros travaram-se marcando três horas e dez minutos da manhã.  Já sabia o que lhe competia fazer.  Era mais um trabalho para a detetive Lisa.

          Ela sempre se interessou por filmes e livros sobre detetives, tinha uma coleção deles.  E o seu grande herói não podia ser outro: Sherlock Holmes.  Uma profissão que combinava muito com seu jeito de ser: esperta, ligeira, raciocínio rápido e atenta aos detalhes.  Nadava feito peixe, fazia aulas de karatê e não tinha medo do escuro.

          Cautelosa, vestiu o casaco com a gola levantada, o chapéu com as abas abaixadas e meias já temendo que as escadas de madeira rangessem na sua passagem.  Muniu-se de lanterna, lupa e um taco de "baseball".  Desceu na pontinha dos pés, atravessou a sala, chegou à cozinha.  Luzes apagadas para não alertar o que estava acontecendo lá fora.  Cuidadosamente, abriu uma fresta na porta e avistou o cão.  Assim que Rex farejou sua presença, abanou o rabo e parou de latir, mas continuava irrequieto, agitado querendo soltar-se da corrente.

      Lá fora o silêncio era quase absoluto, apenas o cricrilar dos grilos.

      Lisa abriu a porta, sondou o ambiente e não viu nada de anormal.  Com a lanterna acesa, fez uma vistoria no quintal pequeno.  A horta de temperos estava intata, um gato dormia ao lado do cesto de lixo que ele mesmo derrubou e nem a coruja Julieta que, frequentemente, passava a noite nos galhos do abacateiro apareceu por ali. Mas alguma coisa ou alguém incomodou o cachorro que não se assustava à toa.  A adolescente soltou-o da corrente.  Ele passaria o restante da noite dentro de casa.  Mas o estranho era que o cão relutava e não queria entrar.

         Ela voltou à cozinha e acendeu todas as luzes.  O vitral estava aberto.  Um esquecimento que não merecia perdão.  É por ali que os pernilongos entram e fazem a festa.  Mas o pior estava por vir...  A claridade forte mostrou-lhe um punhado de ratos disputando um pedaço de queijo branco esquecido sobre a pia.

          Lisa urinou-se toda.  Na garganta a sensação de que estava entalada com um caroço sólido, pegajoso e áspero, que não descia nem subia.  Faltou-lhe o ar, as pernas não se mexiam, perdeu completamente a coordenação voluntária dos músculos.  E não se lembra de mais nada.

          A detetive só acordou quando a luz da manhã invadiu a cozinha.

          Ratos...adversários poderosos... Era urgente...Superar esse medo, pois o medo é o maior vilão na vida de uma detetive que se preste.
          
          

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Eu não quero ser uma caneca - Hirtis Lazarin





Eu não quero ser uma caneca
Hirtis Lazarin



 
Vó Toninha morava no casarão da esquina na Rua Torta.  Apesar de viver sozinha, esbanjava bom humor e a solidão nunca conseguiu encontrá-la.  Criativa e inteligente, sentia prazer imenso em contar historinhas, inventar outras e até alterar as já conhecidas.  Não é à toa que vivia rodeada de crianças.

     Como passava o maior tempo na cozinha, seu cantinho preferido, até apelidos e brincadeiras ela fazia com os objetos da cozinha.  Dizia que o "bule" tinha o bico aberto e não parava de tagarelar.  A "tigela" de porcelana finíssima pintada de flores era a" margarida desfolhada" só porque tinha uma rachadura quase imperceptível na borda.  A "panela" de alumínio amassada e com o cabo de madeira esfrangalhado era a "idosa querida".  Fazia até competições entre as xícaras de café, "as anãzinhas", com as de chá, "as poderosas".  Confusão na certa!

     Guardada no armário de vidro espelhado, reinava uma caneca de louça vermelha e branca com o emblema da Suíça.  Presente que o esposo ganhou do governo de lá.  Era poupada e resguardada.  Uma relíquia. A tal caneca sabia do valor emocional que representava e se aproveitava disso.   Sentia-se poderosa e esbanjava orgulho.  Nunca abriu mão do seu trono.


     Numa noite estrelada em que a lua cheia espantou a escuridão, a caneca abandonou a clausura daquele convento.  Queria conhecer o mundo que girava lá fora.  Nos primeiros dias foi dificílimo driblar os passos dos pedestres para não morrer pisoteada.  Todos tão apressados como se o mundo fosse acabar naquele instante.  Atordoada naquele vaivém,   escondeu-se debaixo de uma lixeira e toda encolhidinha aguardou a tontura e o pavor passarem.  Atravessou uma rua calma e sentou-se numa pracinha sombreada, onde crianças pequenas brincavam.  Divertiu-se muito com as peripécias da criançada até que um garoto bem fortinho deu um chute certeiro na bola.  Ela subiu zunindo no ar, deu duas ou três piruetas e caiu acertadamente no banco onde a caneca, até então, sentia-se a mais segura das criaturas.  O banco de madeira já gasto chacoalhou-se tanto que a caneca saltou no ar e, só não se espatifou porque sua queda foi amortecida por um ursinho de pelúcia.  Só recobrou os sentidos quando estava noite e o parquinho vazio.  Teve a grandeza de agradecer por estar viva, pôs-se em pé e se contorceu toda para se livrar da areia suja que a incomodava.

     E foi a primeira vez que suas lágrimas rolaram. "Estou arrasada.  Sei que meu fim está próximo.  É só alguém, nervoso ou irritado, por engano, encher-me de café fresquinho e bem quente.  O líquido vai escorrer pelo trincado e eu, coitada de mim, serei atirada bem longe até e me desfarei em pedacinhos.  Mil pedacinhos.  Um final muito triste"

     Era uma vez uma caneca presunçosa que se amava além da conta. 


Rumo à Via Láctea - Marilda Borelli




Rumo à Via Láctea
Marilda Borelli                  



        Ao longo da jornada fui colhendo flores, desde a Rosa, rainha das flores, à majestosa Flor de Lodo nos momentos de aridez.

São cravos, dálias, crisântemos, estrelícias, margaridas, flores do campo encantadoras, perfumados jasmins, verbenas, hortênsias, violetas. Não faltaram lírios, gerânios, antúrios, elegantes orquídeas, ciclames.

Diversos arco-íris, essências as mais variadas, fui dispondo em Floreiras no meu coração, entremeadas com delicados miosótis, que tão raramente hoje se vê.

Adornaram toda minha vida, para que eu pudesse estar sempre repleta de alegria, olhos brilhantes, respirando ar puro, sobretudo transmitindo ao mundo o encanto de viver cercada pela beleza da criação.

Estar vestida a rigor todos os dias, transformando cada lugar em dia de festa, uma comemoração a ser feita!

Os mosquitinhos dão um toque especial e as azaleias coloridas aqui, os manacás ali, quanta vibração na terra!

Esse movimento contínuo em prol do “sentir-se bem’ faz-me perceber a existência de um regente-mor, ordenando passo a passo as fases da Lua, o caminho do Sol, as chuvas, as estações.

É o momento da gratidão: oferecer um mimo a quem precisa, um buquê ou uma singela flor, dádiva da natureza, armazenados em minha alma!

Para te fazer feliz!

Com carinho!

É a Primavera chegando!

Receba, eu te ofereço!


A LIÇÃO DO CARAMUJO - Hirtis Larazarin


 


A LIÇÃO DO CARAMUJO
Hirtis Larazarin



André não tinha jeito, não.  Era briguento e insatisfeito com a vida.  Reclamava de tudo.  Uma família bem estruturada e pais carinhosos. Não tinha tudo o que queria, mas tudo que precisava.  Estudava numa boa escola, bons amigos e uma namorada apaixonada.

          Aos dezoito anos entrou numa crise depressiva.  Trancou-se no quarto, janelas fechadas.  A presença da luz e de pessoas irritava-o tanto, a ponto de perder a razão e destruir o que via pela frente.   Não aceitava medicamentos nem a presença de terapeuta.  Os pais não sabiam mais o que fazer.  Enquanto as crianças irrequietas e felizes brincavam lá fora. André definhava lá dentro.

          Numa madrugada, quando a casa dormia no silêncio da noite, ele levantou-se e, pé ante pé, atravessou os ambientes e chegou ao jardim.  Sentou-se no degrau da sala iluminado pela luz fraca do poste, as plantas adormeciam.   Nem uma brisa.  Apenas o silêncio que o confortava.  Foi então que percebeu não estar sozinho.  Um animalzinho delicado caminhava lentamente e com muito esforço carregava a casa nas costas.  E o cansaço deixava um rastro de sofrimento por onde passava.  Era um caramujo, um molusco indefeso que visita jardins à noite e se alimenta de folhas tenras, protegendo-se dos predadores, inimigos mortais.

           De pronto o rapaz identificou-se com ele.  E todas as noites,  na madrugada, André visitava o caramujo que já se acostumara com sua presença.  Tornaram-se amigos e ganhou até um nome:  Carmelo.

          Não é que o rapaz se imaginou na pele de um caramujo.... Sentiu a dificuldade de rastejar-se pelo chão.  Sentiu inveja dos pássaros que viajam alcançando as mais altas árvores do bosque... Das borboletas de asas brilhantes que colorem por onde passam... Até da joaninha pintada de vermelho com bolinhas pretas espalhadas pelo corpo...

          Mas o caramujo solitário não desistia de viver.  Fazia o melhor dentro de suas parcas possibilidades.  Era humilde e aceitava o que não podia mudar.  E toda essa reflexão começou a "rebuliçar" a cabeça de André.

          Na madrugada de uma quinta-feira preguiçosa e chuvosa, ele encontrou o amigo sem vida enroscada num galho miúdo e seco que se soltara da roseira.  Foi um choque.  Chorou muito.  Nem sabia que se apegara tanto àquele ser que quase passa invisível aos olhos humanos.

          Mas foi o Carmelo que o ajudou a compreender o quanto era ingrato e egoísta.  Não foi de repente, mas aos poucos...  Foi se desvencilhando daquela casca grossa envolvente que o impedia de ver o quanto era feliz e privilegiado. 

E o mais importante, valorizar a força que possuía para caminhar sozinho, vencer desafios e escrever sua história.

          Hoje Carmelo está guardado num vidro ao lado dos livros de André.  E a cada vacilo, é só encará-lo que as forças depressa chegam.




quarta-feira, 2 de outubro de 2019

CONTOS DE ARTUR DE AZEVEDO - AUDIOLIVROS




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Um cinturão – Conto de Graciliano Ramos







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Um cinturão 
Conto de Graciliano Ramos

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.

Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.

Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.

Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.

Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.

Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.

Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.

O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.

Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.

Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.


sábado, 7 de setembro de 2019

O BOM RAPAZ... - Do Carmo




 

O BOM RAPAZ...
Do Carmo



Parte I -  Sínico e Malandro.

É incrível a criatividade de meu vizinho de apartamento, Eduardo! Mais conhecido por Dudu, sempre tem uma justificativa sentimental para suas malandragens.

Choraminga mais que uma carpideira para safar-se das mentiras e safadezas, culpando as crueldades dos invejosos. Ele é mestre na invenção de falsas justificativas dolorosas, com requinte de sofrimento, propiciando a falta que contra sua vontade, viu-se obrigado a cometer. 

Uma das desculpas mais estapafúrdia que aplicou, para fugir da cotização entre os condôminos para presentear os funcionários do condomínio, pelo Natal, foi homérica.

Descaradamente, fingindo conter lágrimas nervosas para rolar, pede aos amigos presentes isenção de pagamento, uma vez que foi assaltado há alguns dias e ficou sem tostão sequer, para uma refeição. Os colegas de trabalho é que o têm ajudado, até o próximo pagamento. Ainda com expressão de desespero, pede para que concedam a ele fazer parte do Cartão de Natal coletivo aos funcionários.

Por unanimidade, seu pedido foi aceito.  Diante desse comovente depoimento, a pauta continuou.

Poucos minutos para o encerramento, toca o celular de Dudu, que se desculpando, levanta-se e atende ao chamado. Com voz melancólica, pede para sair, uma vez que um amigo está enfartando e precisa de ajuda.

Sai apressadamente e ao chegar à garagem, enquanto pega seu carro, retorna a ligação e pergunta em qual boteco eles estão reunidos, seria mais umas noite de orgia.



Parte II - Mas o que é isso?

Passados alguns dias, da reunião de condomínio onde o Dudu e eu residimos, da qual saiu para socorrer um amigo enfartando, acontece uma convocação, em caráter de urgência, para nova reunião, cujo teor da pauta é de interesse geral e gravíssimo. 

Estando todos presentes, o Presidente da Assembleia dá início a sessão e diz que muito decepcionado, fez essa nova convocação para exibir um filme, que sabiamente um condômino realizou para mostrar o abuso de sensibilidade que sofremos.

Displicentemente sentado e tranqüilo, Dudu, de caderneta e caneta nas mãos, pronto para anotações sobre o tão importante assunto a ser tratado, espera a gravíssima revelação.

As luzes foram apagadas e o filme começa.

Uma exclamação de horror foi geral. Cenas de orgia depravada, danças eróticas e bebidas descontroladas. Um bacanal indecente.

O Presidente então diz:

- Dentre os participantes vê-se ridiculamente seminu, o nosso atencioso participante desta reunião, o digníssimo amigo leal e socorrista: Senhor Eduardo, carinhosamente por todos chamado de Dudu. 

- Mas o que é isso?    Grita Dudu.

Tranquilamente o Presidente da sessão continua:

- Senhor Eduardo, estas são as cenas de seu atendimento ao amigo enfartando, na noite de nossa reunião passada, há dois dias, quando nos contou sobre o assalto sofrido e que sequer tem recursos para alimentar-se.

Sem comentários senhores. Sessão encerrada.

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...