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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O REGATO DA VIDA - Helio Fernando Salema

 


O REGATO DA VIDA

Helio Fernando Salema

 

A águas mansas do rio que vejo, são como os meus sonhos e desejos a serem realizados. Seguem para o destino que os aguarda, calmamente, com surpresas e decepções.

Chuvas de verão trazem assombros diversos, além da quantidade exorbitante de águas, vêm junto pedaços de objetos, galhos de árvores de todos os tamanhos e uma infinidade de outras coisas de que não necessitamos. Provocam algumas mudanças semelhantes às dos anos anteriores e que, sem dúvida, se repetiram nos próximos.

Mas o que seria de nós sem as chuvas?

Com o passar dos dias o leito do rio vai aos poucos voltando ao seu normal. No outono poucos vão lembrar-se do que a chuva fez e talvez comecem a sentir a falta que a chuva nos faz. Porém, o rio segue seu curso normal oferecendo suas águas e alimentos.

Arnaldo pega, pacientemente, seus apetrechos de pesca e vai em direção ao rio. O caminho é o mesmo há mais de dez anos. Passa por algumas ruas, todas de terra batida com poucas casas e algumas crianças brincando. Cumprimenta os mais conhecidos. Perto da beira do rio para em frente a um portão de madeira e chama pelo seu amigo Everaldo, que lá de dentro responde que já vem.

Dona Felícia chega à porta e pergunta se ele aceita um cafezinho. Muito educado responde “obrigado, já tomei em casa”. Tudo ocorria, exatamente como todas as vezes, até que na pequena janela chega uma jovem de semblante triste, olha e, demonstrando estar envergonhada, se afasta.

Não era o que Arnaldo esperava, sabia muito bem que ali morava apenas seu amigo com a mãe viúva. Everaldo chega e os dois vão caminhando e conversando sobre os dias em que não foram pescar devido ao temporal.

Everaldo logo comenta que ficou sabendo que as águas do rio estavam quase normais, bem mais clara que no dia anterior, além de ter baixado e, deixando o lugar preferido deles para pescar, em ótimas condições.  Arnaldo ouve tudo sem dizer uma palavra sequer, seus pensamentos estavam naqueles olhos tristes na pequena janela.

Leva um tremendo susto quando Everaldo pergunta se ele tem alguma novidade. Instintivamente diz que não, mas não convence o amigo que olha diretamente nos seus olhos. Arnaldo sente vontade de perguntar quem era aquela moça, mas muda de ideia, pois fica em dúvida se era mesmo uma jovem ou apenas uma visão. Então resolve devolver a pergunta. De súbito tem a mesma resposta. Um silêncio domina os próximos minutos.

Chegando ao local de sempre, o assunto passa a ser as condições do rio e a possibilidade de uma boa pescaria. Contudo, Arnaldo não consegue se concentrar no assunto do amigo e nem em outro qualquer. Olhando as águas um pouco barrentas, que o assustavam e, ainda corriam mais aceleradas do que o normal, sentia que naquele instante sua vida parecia, também, estar mais rápida do que sempre foi. As águas um pouco turvas seriam por causa da chuva ou dos seus olhos que o deixara em dúvida sobre o que vira há pouco? Também seu coração, de que até então ele nunca havia percebido as batidas, passou a exibir sua participação dentro do seu peito.

Um pouco abaixo do local em eles se encontravam, as lavadeiras já estavam, há muito tempo, trabalhando duramente num local cheio de pedras, porém bastante raso. Elas conversavam sobre seus problemas diários e muitas vezes cantavam para espantar suas angústias. Embora algumas músicas relembrassem bons momentos vividos num passado não muito recente.

Ao mesmo tempo, os dois amigos conseguiram alguns peixes de bom tamanho e comemoram como em outras pescarias. Ainda assim, Arnaldo continuava observando cada detalhe do rio, como se fosse a primeira vez. O mesmo em relação ao local, a árvore que lhes dava sombra na hora do sol mais forte, a pedra em que ficavam sentados de maneira muito segura e confortável.

Chamou sua atenção um trecho de uma das canções que as lavadeiras cantadoras entonaram, “ as águas doces do rio vão trazer o meu amor, que foi e não voltou”.

Sua cabeça fervia… O coração acelerava… O pensamento zanzava.

Na volta para a casa, o silêncio incomodou tremendamente seu companheiro Everaldo, que em vários momentos falou sobre o êxito da pescaria, apesar das condições das águas não serem aquelas tão esperadas. Arnaldo mantinha o seu silêncio.

Ao chegar ao portão da casa do Everaldo, Arnaldo ficou com o olhar fixo na janela que estava aberta. Parado… estático e em silêncio. Por instantes seu amigo, bastante assustado, ficou só observando. Até que resolveu arriscar:

— O que está acontecendo? Alguma coisa está incomodando você?

— Alguma coisa me prende àquela janela.  Hoje cedo, antes de você chegar, vi uma jovem com um olhar estranho por apenas alguns segundos.

— Nunca lhe falei a respeito, mas isso ocorre quase sempre depois do temporal. Dentro da casa não percebemos nada, mas do lado de fora, sim.  O padre já veio e rezou. Um espírita também e, comentou que era de uma moça que num temporal foi arrastada pelas águas do rio e nunca foi encontrada. Arnaldo despediu-se do amigo e, muito pensativo, foi para sua casa.

Naquela noite mais um forte temporal. No dia seguinte Arnaldo sumiu, e seu corpo jamais foi localizado.

 

 

 

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