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quinta-feira, 30 de setembro de 2021

“... que seja infinito enquanto dure” - Hirtis Lazarin

 



 “... que  seja  infinito  enquanto  dure”

Hirtis Lazarin

 

Vanda não tem preguiça.  Levanta cedinho, na ponta dos pés pra não acordar o esposo nem o filho. Prepara o café da manhã com todo o requinte como se cada dia fosse especial.

Ela se casou com o príncipe que desenhou na adolescência.  A beleza física do amado não era o mais importante. Tinha que ser superada pelos atributos de um cavalheiro educado e cortês. Nada econômico na distribuição de carinho.

 Encontrou Arpígio.

Moça romântica e apaixonadíssima gritava pra quem quisesse ouvir: juntos escalaremos a mais alta montanha; juntos atravessaremos mares revoltos; Juntos construiremos uma linda história de amor.  E, realmente, criaram um filho na mais perfeita harmonia.

Vanda, dona de casa organizada, caprichosa e criativa na cozinha. O dia  era curto pra tantos afazeres, mas o acúmulo de tarefas e a monotonia da rotina diária enchiam-na de prazer. Esperava o marido para o jantar sempre com uma novidade culinária.  Ele, pontualíssimo, não atrasava nem segundos. 

Arpígio cumpria horários rigorosos de segunda à sexta-feira: saía para o trabalho às nove horas da manhã e retornava às dezoito e trinta. Ligava pra casa três vezes ao dia, sempre preocupado com o bem- estar de todos. Os finais de semana e feriados eram dedicados à família.

Uma linda história de amor!

Filho já criado, a casa bem planejada e construída com esmero em cada detalhe, economias guardadas, tudo para uma aposentadoria de desfrutes e realização de outros sonhos.

Malas prontas para a primeira viagem internacional do casal, destino Paris.  Muita ansiedade, as horas não passam, horário do voo consultado vezes e vezes, lista pronta dos melhores restaurantes e cafeterias da “Cidade Maravilhosa”, roupas escolhidas a dedo, para um inverno rigoroso. E todos os documentos conferidos e conferidos.

Véspera do embarque.  O filho e esposa chegam à casa dos pais pra despedida. Beto toca a campainha mais que três vezes; bate na porta com força;  ninguém aparece. Espia o interior da casa pela vidraça da janela lateral; luzes acesas; não vê ninguém.

Esquisito. Falou com o pai antes do almoço e avisou que passaria por lá ao final da tarde.

Ele tem a cópia da chave da cozinha. Entra “muiiito” preocupado. Chama pelo pai, pela mãe e ninguém responde... Faz um “tour” pela casa e encontra Vanda descordada e caída sobre o tapete do quarto. Está inconsciente. O rapaz toma-lhe o pulso e ela respira com dificuldade.

Pouco tempo depois, o mais rápido que conseguiu em meio ao trânsito confuso, chegam ao hospital.  Depois de uma sequência de exames, horas e horas de observação, o médico constata que é gravíssimo o estado da paciente.

Desesperado, liga ao pai uma, duas, três, quatro vezes.  Só cai na caixa postal.  Tudo muito estranho.  Depois de aposentado, não deixava a esposa sozinha.  Que ele soubesse...

Já é de madrugada quando Arpígio chega ao hospital. A reação dele não é a que se esperava, mas o momento não é para explicações. É rezar e confiar em Nossa Senhora de Fátima, a queridinha da mãe em todas as horas de apuro e aflição. Incontáveis vezes, Beto encontrou-a ajoelhada no quarto, rezando e acendendo velas aos pés da santa de fé.

 Vanda recuperou os sentidos, mas não conseguiu mais falar.  Seus olhos redondos e arregalados transmitiam ódio.  A língua enrolada balbuciava sons ininteligíveis. Quando os mais próximos tentavam decifrar, percebia-se sua irritação, sua raiva por não se fazer entender. Momentos de angústia e muito sofrimento.

 O pai, o tempo todo,  inquieto e em silêncio, não  deixava transparecer os sentimentos. Parecia indiferente ao estado doloroso da mãe.  Uma personalidade que Beto desconhecia. Onde estava o esposo amoroso e dedicado?  Até exagerado, em situação de doenças passageiras. Aquele não era o esposo de Vanda...

Arpígio saía do quarto sem falar nada, parava na cantina e se enchia de café.  Não se lamentou nem chorou uma única vez.

Beto tentou arrancar-lhe alguma coisa sobre aquele dia, véspera da viagem, Nada conseguiu.

E, uma semana depois, pra muita tristeza, a mãe faleceu.

Apaixonada pela vida, Vanda sempre foi muito cuidadosa com a saúde.  O casal fez um “check up “ tão logo decidiram viajar e tudo estava sob controle.

“É...  pra morrer, basta estar vivo” – Como dizia minha querida e saudosa avó.

Arpígio ficou recluso durante uma semana. Após a missa do sétimo dia, a família se reuniu.

Beto aconselha o pai a vender o apartamento e morar com o casal.  Além da economia mensal, o netinho de quatro anos preencheria um pouco o vazio deixado pela esposa.  Sabia que não seria fácil pra ele viver só, depois de uma vida de  quarenta anos juntos.

O pai ouviu atento o conselho. Fechou a cara, pensou um pouco, cerrou as sobrancelhas e, pausadamente, pronunciou palavra por palavra o que pretendia fazer:

“Nada disso! Vou refazer minha vida. Isabel vem morar comigo. Ela é minha amante há mais de dez anos. Eu a amo mais que tudo nesta vida”.

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