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quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Viagem a Paris - Adelaide Dittmers

 



Viagem a Paris

Adelaide Dittmers

 

Muito comunicativo e espirituoso, Xavier conquistava todos por seu bom humor, mas tinha um lado peculiar; era um gozador nato e adorava pregar peças nas pessoas à sua volta.

Certa noite, ao chegar em casa, depois de um dia de trabalho, escancarou um sorriso para a mulher e disse:

— Tenho uma surpresa especial para você.  E estendeu dois pequenos papéis.

— O que é isto? Perguntou ela com um ar desconfiado.

— Veja você mesma!

— Não acredito!  Duas passagens para Paris.

Helena abraçou o marido.  Sempre sonhara em conhecer a cidade luz, mas tinha muito medo de viajar de avião.  Apesar da situação financeira deles permitir, só viajavam de carro.  Conhecia quase todo o país e já tinha ido à Argentina e Uruguai.

De repente afastou-o e perguntou:

— Isso não é mais uma das suas brincadeiras? Não é?

— Não.  O único problema é seu medo de voar.

— Tenho que enfrentar isso.  Por Paris, vou enfrentá-lo.  Além do mais, minhas amigas, que não gostam de voar, costumam tomar comprimidos para acalmar e dormir.

— Então tudo bem, porque me lembro daquela viagem, que fizemos ao Rio pela ponte aérea, em que você apertou minha mão a viagem toda.  Para Paris são onze horas de voo e não quarenta e cinco minutos.

— Estou tão feliz, que prometo que vou me comportar bem.

Uma semana depois, estavam os dois no aeroporto para iniciar a viagem dos sonhos de Helena.  Ansiosa, procurava esconder o nervosismo ao entrar no avião.  Logo ao se sentar no lugar, que lhes foi reservado, engoliu o comprimido para diminuir o temor.

A grande aeronave decolou suavemente e ganhou altura em um céu sem nuvens.  Era uma bonita noite de outono.  Poucas horas depois, o jantar foi servido e Helena distraiu-se em ver o que iria comer.  Após terem jantado, Xavier lhe disse:

— Vou tirar um cochilo.  Quando a aeromoça recolher as bandejas, peça a conta, por favor, e fechando os olhos, virou a cabeça para o lado com um sorriso zombeteiro.

Depois de alguns minutos, a comissária veio retirar as bandejas e Helena educadamente lhe pediu:

— Pode me dar a conta, por favor.

— Como senhora?

— A conta do jantar.

A moça arregalou os olhos e disfarçando o constrangimento respondeu:

— Não há conta a pagar.  O jantar está incluso na passagem.

Sem graça, Helena pediu-lhe desculpas e, quando a jovem se afastou, deu um safanão em Xavier.

— Como você me fez uma coisa dessas?  Não gostei nem um pouco dessa brincadeira.

E ele rindo, exclamou:

— É muito divertido, que até hoje você caia em minhas armadilhas.

Helena recordou-se, então, do dia em que ele a deixou em um restaurante e saiu para a rua só para vê-la toda atrapalhada sem saber como iria pagar a conta, e de tantas outras em que sempre procurou aceitar com bom humor. No entanto, ultimamente, começou a cansar-se do humor negro do marido. Zangada, ligou a tela à frente para não discutir com ele.

Mais tarde, as luzes do avião foram apagadas e os passageiros ajeitaram-se como podiam para dormir.  Helena logo adormeceu embalada pelo comprimido. 

O grande pássaro começou a sobrevoar o vasto oceano, negro e misterioso, àquela hora da noite.

De repente, Helena foi sacudida por Xavier.  Tonta de sono, olhou a expressão de medo do marido.

— Acorda e coloca o cinto!  O avião entrou em pane.  Estamos em uma emergência.

Realmente, uma forte turbulência sacudia o avião.  A mulher entrou em pânico.  O terror tomou a forma de uma grande garra, que apertava sua garganta e descontrolada começou a gritar.

— Socorro!  Não quero morrer!

Os passageiros acordaram assustados e uma grande confusão espalhou-se pelo avião.  Logo um comissário veio até ela e perguntou:

— O que está acontecendo, senhora?

— O avião está caindo!  E ainda você me pergunta isso?

— Calma, senhora.  Foi só uma turbulência.  Está tudo bem com o avião.  Fique tranqüila.

Ainda muito assustada e envergonhada, olhou para Xavier e pela expressão dele, percebeu que fora novamente uma de suas brincadeiras e dessa vez de muito mau gosto.

— Você me paga! E seus olhos faiscaram de ódio.

Ignorou-o o resto da viagem e não conseguiu mais pregar os olhos.

Chegaram cedo à bela cidade.  Atordoados pelas horas de vôo passaram pela imigração e começaram a percorrer os intermináveis corredores do grande aeroporto.

Helena, ao ver banheiros, disse ao marido.

— Vou entrar e aproveitar para lavar o rosto e refazer a maquiagem.

— Também vou aproveitar para ir ao banheiro.

Helena entrou, mas saiu logo em seguida e apressou-se a andar pelo longo corredor.  Trazia apenas a mala de mão.  Sentia-se segura diante do desafio de percorrer a grande distância até a saída.  Dominava bem o francês e a qualquer imprevisto, conseguiria se comunicar com alguém. Foi seguindo as indicações e chegou ao saguão do aeroporto, onde parou por um momento e pesquisou hotéis pelo celular.  Ligou para um que lhe agradou e conseguiu uma reserva em um que adorou.  Considerado um dos mais luxuosos de Paris, ficava em um dos pontos mais emblemáticos da cidade.  Chamou um táxi e pediu ao motorista;

— Hotel Du Louvre, s’il vous plait!

Durante o percurso, reservou um almoço no L’Oiseau Blanc, considerado um dos melhores restaurantes parisienses e onde se podia desfrutar uma vista deslumbrante da cidade.

No aeroporto, Xavier saiu do banheiro e postou-se à porta para esperar pela mulher.  Os minutos foram passando e nada de Helena.  Começou a ficar preocupado.  Consultou o relógio e constatou que a estava esperando já há quase trinta minutos.  Pediu, então, a uma senhora da limpeza, que verificasse por que ela estava demorando tanto.  Ela entrou e voltou dizendo que não havia nenhuma Helena no banheiro.

Xavier controlou-se para não se desesperar.  Percorreu quase correndo os longos corredores e chegou ao lugar de resgatar as malas, que pareciam que nunca iam aparecer nas esteiras.  Tenso, apanhou-as e foi para a entrada do aeroporto.  O que poderia fazer agora?  Tinha tentado ligar várias vezes para a mulher sem sucesso.

Enfim o celular tocou.  Era ela.

— Helena, o que aconteceu? Onde você está?

— Não aconteceu nada, querido?  Estou no Hotel Du Louvre.  É um hotel maravilhoso, daqueles que se vê em filmes.

— O que!  Mas não foi esse o hotel que reservei.

— Ah! Mas este é o que sempre sonhei em me hospedar.  Luxuoso e fica em um lugar privilegiado.

— Você enlouqueceu.  Sabe quanto custa uma estada em Paris. Uma fortuna! E um hotel luxuoso é impagável.

— Não adianta reclamar.  Vem pra cá.  Você vai adorar. Respondeu irônica.

Nervoso e furioso, Xavier chamou um táxi.  Ao chegar, quase perdeu o fôlego ao se deparar com o imponente hotel. Na recepção informou-se onde sua mulher estava.  Acompanhado por um funcionário, que lhe levava as malas chegou ao quarto.  Helena abriu a porta, sorridente, com uma taça de champanhe na mão.

— O que está acontecendo com você? Ficou louca? Ele disparou.

— Nunca estive tão lúcida! Respondeu, fechando a porta atrás dele.

— E tem mais! Reservei um almoço no L’Oiseau Blanc. É um dos restaurantes mais tops desta cidade linda.

— Não acredito! Não sou o Bill Gates!  O que te deu?

— Você conhece o ditado: Um dia é da caça, o outro é do caçador.

— É uma vingança por que brinquei com você! Disse, cuspindo as palavras.

Não, não é! Uma vingança é para o mal de alguém. Estar num hotel magnífico e desfrutar das iguarias francesas em um restaurante estrelado é tudo de bom.

Xavier estava pálido.  Sentiu o estômago contorcer-se dentro dele e com uma repentina ânsia correu para o banheiro.

Helena aproximou-se da janela e admirou a romântica cidade, que lânguida se abandonava ao céu ensolarado da primavera.  Levantou a taça com um sorriso vitorioso.

— Santé Paris! Exclamou.

Um comentário:

  1. Ótima história, Adelaide. Muito bem construída, bem humorada, embora de humor perverso, mas mostrando como as mulheres sabem das coisas; das contas, já não sei (pobre Xavier). Ótima sequência. Gostei bastante.

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