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quinta-feira, 29 de abril de 2021

INSÔNIA - Hirtis Lazarin


 


INSÔNIA

Hirtis Lazarin

 

Denise acorda chorando outra vez.  Sono conturbado.  O travesseiro e o edredom jogados ao chão.  Acende a luz fraca do abajur.  Olha para o relógio que marca dez os minutos da terceira hora.  Já virou rotina acordar àquela hora.  O lugar dele na cama está vazio.  Um nó aperta-lhe a garganta.  E dói.  Como dói... Uma reviravolta na vida quando achava que tudo estava tão perfeito!

A madrugada está fria.  Ela veste o roupão vermelho.  Descalça, desce as escadas.  Já na cozinha, abre metade da janela.  Observa a chuva fina.  Fecha os olhos e respira fundo.  O “vitrô” embaça.  Ouve o tilintar suave das gotas de chuva que batem na cobertura da garagem.

Lembra-se da guerra de travesseiros, do edredom estampado com coraçõezinhos brancos que ele achava tão infantil...

Lembra-se dele dormindo, olhos apertados, sobrancelhas grossas e lábios carnudos querendo ser beijados.

Lembra-lhe o corpo aquecido e suado.  Denise respira vagarosamente tentando encontrar seu cheiro.

Não consegue entender o que aconteceu.  Sem desentendimentos, sem brigas...Tudo estava tão perfeito.

Uma buzina incessante na rua, liberta-a daquele torpor tão sofrido.

Caminha até o fogão, aquece uma caneca de leite.  Volta à mesa da sala iluminada por lustres pendentes.  Fotos esparramadas, outras amassadas e muitas rasgadas nas horas de angústia e desespero.  Lembra-se de cada momento vivido intensamente e eternizado no papel.  Hoje, tão longínquos, tão frios quanto a máquina que os registrou.

O cheiro do leite queimado escorrendo pelas bordas da caneca acorda Denise.  Larga-a vazia na pia e resmunga.  Antes de apagar a luz, olha pra cadeira vazia à sua frente.

A saudade é tanta que sente chover dentro de si e a chuva transborda pelos olhos.  A saudade é tanta que a revira por dentro e tira tudo do lugar. Não há cheiro, nem olhares afetuosos, nem voz.  Um vazio só.

Sente náuseas.  Limpa a boca e o molhado do rosto na manga do roupão.

Os pés descalços sentem o gelado do piso de cerâmica.  Tão gelado quanto aquele espaço feito a dois para dois. Denise volta à cama, beija a foto dele na tela do celular, reza baixinho mesmo sem ter fé.  Fecha os olhos e, como já era esperado, não dorme. 

O dia já amanhece.  A moça toma alguns medicamentos e apaga.

O sol se põe.  Sonâmbula, deixa a cama.  Veste a camisola branca, a mesma usada na última noite que passaram juntos.  Vai até a praia.  A lua é cheia e lumeia seu caminhar solitário.  As ondas mansas chegam frias aos seus pés.  O corpo teso segue em frente como uma esfinge morena tendo as estrelas por testemunhas.

Seus pensamentos estão do outro lado do oceano.  Venâncio voou pra lá com a intenção de não mais voltar.  Não lhe deu chance, mesmo sabendo que levaria junto o coração de Denise.


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