A CRUZ
E OS DESEJOS
Helio Fernando Salema
Esta história é baseada em um dos muitos fatos registrados
sobre uma rua que durante cerca de 200 anos passou por vários nomes, hoje Rua Quintino
Bocaiúva.
Imaculada era uma jovem belíssima, a pele clara e suave como
um lírio, emoldurada pelos cabelos louros ondulados e olhos azuis brilhantes, lembrando
o sol de primavera ao raiar anunciando o amanhecer. Morava próxima a CASA DA
CRUZ PRETA. Seus pais, severíssimos em todos os sentidos não deixaram que ela
continuasse os estudos, pois como era muito bonita, era, logicamente, muito
cobiçada por jovens estudantes que não trabalhavam. Para eles nenhum estudante
tinha um bom futuro para sua filha.
A CASA DA CRUZ
PRETA era uma residência sobradada que possuía uma grande cruz pintada de preto
fixada na parte da frente. Ninguém sabia a origem nem a razão daquele símbolo.
Ali residia uma outra jovem, também muito bonita e admirada pelos seus dotes
sensuais. Principalmente quando debruçava na janela exibindo seu farto e belo
colo para os estudantes que ali passavam e, não se extenuavam em admirar aquela
morena de olhos castanhos, longos cabelos pretos e vermelhos lábios jorrando
desejos.
Todos os dias no início da noite, Imaculada olhava para a
CRUZ PRETA e rezava implorando por um namorado. Certa noite, demorou para fazer
os pedidos e, ao olhar para a CASA DA CRUZ PRETA viu um rapaz que a escalava e,
em poucos segundos, conseguiu penetrar pela janela com auxílio da cruz. Ela
sabia que era o quarto daquela jovem morena que ficava na janela todas as
noites, chamando a atenção dos que por ali transitavam, alguns por necessidade
e outros para maravilhar-se com aquela imagem de prazeres.
Imaculada percebeu que o rapaz escalava aquela casa
algumas noites toda semana, mexendo com os seus pensamentos e sonhos reprimidos
de desejos. Olhando atentamente para aquela janela, solicitava a todos os anjos
que colocassem uma cruz perto de sua janela. Talvez assim, pudesse realizar o
que ela imaginava, que naquele outro quarto estaria acontecendo. Fecha a janela
e, deita sentindo como seria se fosse com ela.
Sem nenhuma explicação comprovada, porém muito comentada,
surge a notícia de que a CRUZ PRETA sumiu…. Ou foi levada? Este “babado” provocou
muitas conversas. Na rua e dentro
das casas. Vários problemas do
cotidiano deixaram de existir naqueles fervidos dias, por conta do tal
desaparecimento.
Temendo por outros extravios, várias pessoas
sugeriram contratar um vigia. Um senhor conhecido como Sebastião Mulato,
aceitou a incumbência. A partir de então, a jovem da CASA DA CRUZ PRETA ficava toda
noite à espera do seu amor, mas com a presença do vigia… A exemplo da CRUZ
PRETA…. Desapareceu.
Imaculada continuava a olhar para o local onde ficava a
cruz que se foi e, insistia, fervorosamente, nas orações para todos os santos inclusive
Santo Antônio. Sua devoção não se abalou com a ausência da cruz.
Sebastião Mulato, numa noite muito fria, pediu ao seu
filho Ricardo para fazer a vigília em seu lugar. O rapaz muito moreno, alto,
forte, bem aparentado e obediente não recusou o pedido do pai.
No início da noite, Ricardo ao aproximar-se da casa da
Imaculada, logo percebeu a presença da jovem ardente, que de sua janela o
seguia com um olhar fixo. Sentiu um arrepio, mas não era de frio e, vindo daquela
direção. Passou olhando atentamente e, cumprimentou… Parou… E continuou
emitindo seu olhar em busca daquela exaltada vibração que vinha daquela bela
jovem.
Ricardo caminhou até o final da rua muito pensativo, voltou
pisando suavemente sobre os cascalhos que cobriam o chão de terra, para não
fazer nenhum barulho que pudesse acordar e aborrecer qualquer morador,
especialmente, daquela casa da moça loira cativante.
Próximo da casa, percebeu que ela o acompanhava com um
belo olhar, ao aproximar-se sentiu que era ainda mais sedutor. Em frente à casa
parou… E com a mão direita aberta sobre o peito:
— Meu coração lhe ofereço!
Com um sorriso sedento de desejos:
— Obrigada. Eu aceito.
Ele pede para que ela desça… Mas ela explica que não pode
sair, pois a porta está trancada. Passados alguns segundos ela explica que seu
pai dorme. Ricardo pensa… Medita… E diz que vai subir até a janela. Ela se
espanta… E com um sorriso longo demonstra ser favorável à ideia. Ele percebe
que não vai conseguir. Avisa que vai buscar uma corda e pergunta se ela tem onde
amarrar. Ela olha para dentro do quarto e, ao virar-se, confirmar que sim.
Poucos minutos depois Ricardo chega com a corda e
encontra a janela fechada. Sem saber o que fazer, suspira fundo… olha para os
lados... Ouve um barulho… Assustado percebe a janela se abrindo e, para sua
surpresa… Imaculada aparece vestida com uma linda e branca camisola.
Ele arremessa a corda, ela não consegue pegar… Insiste
algumas vezes… Finalmente cai nas mãos dela, que segura firme, abaixa-se e
consegue amarrar no pé da cama, que ela encostou na parede para dar mais
firmeza. Devolve para ele a ponta da corda. Percebendo que parecia estar bem
firme, começa a escalar com todo o cuidado para não fazer barulho.
A janela é fechada. O silêncio domina aquela rua. Naquele
quarto finalmente, dois corpos comungam-se. Desejos libertados e consumados.
Antes do dia clarear, Ricardo chega a sua casa. Os pais
ainda dormem e, satisfeito pelo dever cumprido, deixa-se jogar na cama, acompanhado
pelas lembranças da outra cama, que acalentam seu sono e lhe proporcionam agradáveis
sonhos.
Mais tarde, ao acordar, seu pai lhe pergunta como foi o
trabalho durante a noite. Um pouco sem jeito e pensativo, diz que correu tudo
bem. Porém, o velho percebeu que alguma coisa, certamente, muito estranha aconteceu.
Olha bem nos olhos do filho e insiste na pergunta. Ricardo, gaguejando, começa
a relatar a tranquilidade da rua durante toda a noite, mas diante do olhar do
pai, que demostrava esperar por alguma surpresa, então resolve falar da moça que
ficava na janela. Aos poucos e com muita emoção conta-lhe tudo.
Após o término do relato, seu Sebastião pede para que o
filho arrume suas coisas enquanto ele prepara o cavalo… E complementa:
— Ela é filha do Capitão Pedro. Ele ao saber não vai
perdoar você. É bom que você esteja bem longe para viver sua vida.
No início da noite, seu Sebastião saiu para fazer a
vigília. Não nota diferença alguma das outras em que ele trabalhou. As moças continuam
nas suas janelas no início da noite, ele as cumprimenta, elas respondem. Mais
tarde todas as janelas se fecham.
Depois de algumas semanas, seu Sebastião notou que à
noite todas as janelas estavam fechadas e assim permaneceram. Tudo parecia
transcorrer normalmente naquelas redondezas, como se o relógio do tempo estivesse
parado ou nunca houvesse existido.
Na casa do Capitão Pedro, no entanto, algo muito estranho
agitava aquela família. A filha única, Imaculada, queixava-se de incômodos na
barriga, tonturas e um pouco de enjoo. Sua mãe logo desconfiou, mas não
acreditou. Sua filha nunca saiu sozinha e nem ficava a sós em casa. Nenhum
homem frequentou a casa nos últimos meses, nem mesmo os parentes que moravam
distante.
Aproveitando que o marido saiu para uma viagem e tinha
avisado que só chegaria tarde da noite, falou para a criada que iria comprar
algumas coisas. Pediu para que esta trancasse a porta, não abrisse para ninguém
e não acordasse a Imaculada.
Andando um pouco apressada, chegou rapidamente à casa de
D. Odete, parteira da região. Ao ser recebida pediu para conversarem à sós. Foram
para um cômodo onde puderam conversar tranquilamente. Explicou o que se passava
com a filha e que gostaria que ela fosse até lá para ver o que se passava com a
Imaculada. Pediu que fosse somente ao final da tarde quando só ela e a filha
estariam na casa.
Depois de examinar a moça, D. Odete com a sua costumeira
espontaneidade, afirmou que em breve nasceria uma criança. Não houve espanto,
como se mãe e filha só precisassem de uma confirmação. Quando Capitão Pedro chegou, todos já
dormiam.
Na manhã seguinte levantou bem cedo e avisou que tomaria
café rapidamente, pois teria que sair. Assim que se sentou à mesa, sua esposa o
surpreendeu ao sentar-se à sua frente e olhar atentamente em seus olhos. Percebendo
que aquela atitude era novidade, logo pensou em notícias ruins e foi dizendo:
— Fala logo, que tenho pressa.
— Tenha calma…. Você precisa de muita calma, pois é uma
notícia desagradável.
— Então diz logo! Respondeu, como sempre, rispidamente.
— Imaculada vai ter um filho!
Punhos fechados, rosto vermelho e olhos esbugalhados:
— Como aconteceu? Quem foi o desgramado?
Calmamente a esposa explica que não adianta nada ele
fazer o que já fez inúmeras vezes. Mandou muitos para o cemitério, mas as almas
ficaram para atormentar a vida e o sono dele. Lembrou-lhe que Imaculada é a
única filha e, quem vai nascer, talvez seja o único neto ou neta e, certamente,
não irá perdoá-lo pelo que ele vier a fazer com o pai. O Capitão pensa….
Suspira…. Levanta pensativo e silenciosamente sai.
Alguns meses depois, seu Sebastião saiu de casa para
fazer a vigília e, ao passar perto do rio vê várias pessoas aglomeradas à
margem. Ao aproximar-se fica sabendo que a CRUZ PRETA foi encontrada. Um
pescador viu parte da cruz na lama resultante da seca que assolava a região há
muitos meses. Alguns queriam levar a cruz em procissão até a Igreja,
acreditando que assim poderiam ser abençoados com boas chuvas.
A noite foi escurecendo, seu Sebastião fazendo seu
trabalho e, na casa do Capitão a D. Odete atenta às reações da Imaculada.
Quando uma multidão, cantando hinos de louvor passavam em frente à casa,
carregando a CRUZ PRETA, D. Odete ergue nos braços uma linda menina, muito
moreninha e chorosa… Olha para Imaculada:
— Que nome você dará a esta encantadora menina?
— MARIA DA CRUZ!