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quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Cruz Preta - Adelaide Dittmers

 


Cruz Preta

Adelaide Dittmers

 

Padre Francisco gostava de se postar à janela da torre da igreja ao cair da tarde.  As pequenas casas, que debruavam as estreitas ruelas ficavam douradas pelo sol poente, o que escondia o desgaste das paredes mal pintadas daquelas construções, cujos moradores tinham que se conformar com a simplicidade de viver com o parco dinheiro, que lhes vinha de um trabalho duro e extenuante.

Gostava do observar as pessoas arcadas pelo cansaço, que voltavam para seus lares e suas carências.

O seu olhar alcançava e se detinha na velha Rua da Cruz Preta, assim chamada por causa de uma grande e famosa cruz de ferro, que estava presa à fachada de uma casa assobradada, que era a maior e mais bem conservada do lugar, moradia de um endinheirado comerciante.

A monotonia da ruela era quebrada pela algazarra dos estudantes, que por ali passavam, espalhando suas juventudes e irreverências pelo lugar.  Detinham-se à frente da casa da cruz preta para admirar e atirar galanteios a uma jovem, que todos os dias debruçava sua beleza em uma das janelas,  derramando sobre eles um olhar triste, mas ao mesmo tempo cobiçoso, prisioneira que se sentia das normas rígidas daqueles tempos. Muitas vezes ela se escondia atrás da grossa cortina da janela e o padre de seu posto de observação matutava se era por timidez ou um jogo de sedução.

Padre Francisco conhecia a família de longa data e observava esse movimento à frente daquela janela com muito interesse.  Afinal era o pastor daquelas almas.

No meio do grupo barulhento, um rapaz se destacava pela constância da presença e por ficar ali parado, olhando para a janela, mesmo depois do grupo seguir seu caminho. Abria os braços e depois colocava as mãos sobre o coração para demonstrar à jovem seu interesse por ela. Algumas vezes entoava uma canção e se despedia se curvando em um gesto de respeito e admiração.

 Certo dia, o padre viu uma flor ser jogada e alcançar a janela.  A moça a pegou e a prendeu nos longos cabelos negros.  Com o passar do tempo notou que a mucama, que criara a jovem desde pequena, saia à porta com pedaços de papel, que eram trocados por outros, que o rapaz entregava.  Cada vez mais Padre Francisco ficou interessado em controlar o que acontecia naquela casa.

Em um frio e chuvoso crepúsculo, em que a garoa toldava sua visão, o sacerdote alcoviteiro arregalou os olhos ao ver o estudante escalar a enorme cruz escorregadia pela água fina que caia.

Como um tufão desceu as estreitas escadas da torre.  Aquilo não podia acontecer. 
Era contra as leis da igreja. Ele tinha que defender a moral de seu rebanho.  Nunca permitiu o desvio para o pecado de seus membros.  Sempre lutou pelo  bom comportamento de seu povo.

Saiu da igreja indiferente à garoa, tropeçando nos desníveis das ruas de terra molhadas e lamacentas.  A grande barriga sacudia-se com a corrida e a boca abria-se a cada respiração para recuperar o fôlego.

Chegou à casa e bateu palmas com as forças que lhe restavam. A mucama o atendeu e espantou-se com a presença molhada, esbaforida e inesperada do padre.

Ele entrou e sem cerimônia jogou-se em uma cadeira exausto.  Os donos da casa assustaram-se ao vê-lo, que com palavras atabalhoadas relatou o que vira.  O pai galopou pelas escadas acima.  O rosto vermelho de raiva. Gritos foram ouvidos.  Momentos depois, a moça chorosa foi arrastada escada abaixo pelo pai furioso.  Atrás, o rapaz seguia-os com a mão no rosto em que se viam marcas de dedos causadas por um bofetão que levara.

O casal confessou que se amava e a jovem aos gritos jogou sua revolta por ser sempre vigiada e  sempre ser tratada com uma rigidez férrea pelos pais, que não queria enxergar que ela não era mais uma criança.  Depois de uma acalorada discussão, foi determinado que teriam que se casar o mais depressa possível. Essa decisão foi recebida com uma alegria disfarçada pelos dois amantes.

Terminada sua missão, padre Francisco despediu-se da família, depois de dar um sermão aos jovens.

No caminho de volta, a garoa ainda caia e espalhava-se pela ação do vento frio.  O padre caminhava meio encurvado para evitar as gotas, que teimavam em molhar seu rosto e obscurecer sua visão. Era atropelado pelos pensamentos, que surgiam fortes e que ele queria expulsar, mas não conseguia.  Queria que a chuva lavasse sua alma do que estava sentindo.

Sempre fora austero ao julgar as fraquezas humanas e por que agora ao ver o casal tão feliz ao  conquistar a aceitação de seu amor, sentia uma grande e incompreensível inveja, que lhe corroia o coração.  O que lhe estava acontecendo.  Pensou nas tardes, em que da janela, observava a vida que passava lá embaixo, modorrenta, mas viva. Descobriu em um lampejo que sempre almejara aquela liberdade.

Chegou à casa paroquial angustiado. Subiu para o quarto e depois de se trocar e se secar, ajoelhou-se em frente a uma cruz pendurada na parede fria e pediu a Deus que o perdoasse pelos pensamentos pecadores. Permaneceu em oração por um longo tempo.

Cansado, deitou-se na cama e adormeceu. 

E sonhou que estava escalando a enorme cruz preta...

2 comentários:

  1. SENSACIONAL… Uma descrição perfeita dos detalhes e um final magnífico. Parabéns Adelaide
    Abraços Helio

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  2. Mais uma ótima história da Adelaide, Descrições apropriadas, sequência perfeita, figurações preciosas, como: ...espalhando suas juventudes e irreverências..., ...debruçava sua beleza em uma das janelas... Excelente, gostei muito. Parabéns.

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