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quinta-feira, 3 de março de 2022

Tudo vale a pena quando a alma não é pequena - Hirtis Lazarin

 




Tudo vale a pena quando a alma não é pequena

Hirtis Lazarin

 

Ela olhou-se no espelho antes de deixar o quarto pequeno e bem organizado.

Cabelos volumosos e ondulados, revoltos em flocos acinzentados, um batom rosa claro cintilava nos lábios não tão carnudos quanto outrora e um colar de pérolas miudinhas que nunca desgrudou do seu pescoço.  Ajeitou a gola do vestido azul marinho, decote em X, deixando à mostra o contorno do busto avantajado.

Deu meia volta, aprovou a imagem refletida e completou o ritual com um perfume delicado, escolhido entre os muitos que enfeitavam o criado mudo.

Desceu as escadas com cautela para não se perder no salto.  Era teimosa e infringia as normas da casa.

A sala de estar era espaçosa e confortável para atender pessoas exigentes.  As poltronas espalhadas eram macias e o tecido brilhoso indicava que foram compradas recentemente. Um arranjo de flores frescas coloria uma mesinha de canto entalhada em madeira nobre.  Um burburinho de vozes, às vezes, um mais acalorado atrapalhava o bate-papo de alguém que contava retalhos da vida.

Dona Dora, a loirinha dos olhos azuis, tricotava ao lado de Jurema.  Jurema folheava rapidamente uma revista e não conseguia ler.  Já perdera os óculos incontáveis vezes e tinha medo de contar à filha.  Seu Geraldo era o mais velho da casa e não tinha travas na língua.  Outros cochilavam...

Laurita chegou despercebida e sentou-se ao piano. Os primeiros acordes foram capazes, não só de atrair a atenção do pequeno público como também de ouvir gritinhos acanhados solicitando melodias.

Depois de atender a vários pedidos, levantou-se, fez um gesto de agradecimento e recostou-se numa poltrona afastada das demais.

Laurita era uma senhora de fino trato.  Construía as frases com correção e pronunciava com destaque os “R” e “S” das palavras. Foi atriz de teatro e conquistou todas as glórias que a carreira pode oferecer. Sempre rejeitou trabalhos na T.V., pois nada era mais gratificante que o contato direto com o público. O aplauso é a energia que fortalece o artista.

Foi feliz no casamento enquanto durou...  Acreditou que, juntos, tivessem descoberto a chave mágica do companheirismo, do respeito e da tolerância. Com muito trabalho e dedicação, o casal conquistou um patrimônio que lhe permitia desfrutar os prazeres da vida e garantia uma velhice saudável.

O trabalho de Laurita passou a exigir apresentações fora da capital e as viagens tornaram-se rotineiras.  E, não raras vezes, Arturo, envolvido em negócios da empresa, mão pode acompanhá-la.  E, foi assim, que as oportunidades de traição começaram.  Começou sem querer e se tornou rotineira.

Envolvida em muitos ensaios e eventos, ela se descuidou das finanças, pois a confiança absoluta que sempre depositou no esposo garantia-lhe tranquilidade.

Tudo desmoronou quando o gerente do banco a convocou para uma reunião secreta. Saldo vermelho na conta corrente, a casa hipotecada e uma solicitação de empréstimo.

Não havia outra saída para ela senão a separação, acreditar nos seus quarenta e três anos e canalizar a dor no trabalho com paixão.

Quantas vezes, o cansaço emocional, o desânimo e o desespero chegavam... Mas, a força da alma feminina ia derrubando os obstáculos.

Hoje, Laurita tem setenta e oito anos e vive numa Casa de Repouso.  Está feliz e usa sua arte para fazer o que mais gosta:  preencher seu tempo e daqueles que se tornaram sua família.

 

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