A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

AQUILES, O INCRÉDULO - Leon Vagliengo

 



AQUILES, O INCRÉDULO

Leon Vagliengo


Um conto contado agregando ângulos pessoais de placidez, acomodação, dúvida, desafio, reação e surpresa.

_______________________________________________________


        Hércules aproveitava o seu descanso de todos os fins de tarde sentado no mesmo banco de sempre, na mesma pequena praça de sempre, que era um recanto tranquilo, meio escondido entre os prédios. Descansava uma meia hora apreciando o movimento da cidade, que acontecia desde uns cinquenta metros adiante, e então tomava o primeiro ônibus rumo a sua residência, depois o segundo para completar a viagem. Fazia isso religiosamente todos os dias, menos nos fins de semana, logicamente.      

        Escriturário competente e imprescindível de um escritório de contabilidade, ali naquela praça realmente sentia-se tranquilo após cada dia de trabalho monótono que havia transcorrido igualzinho a todos os outros anteriores, pelo menos nos últimos dezenove anos.

Ao chegar ao seu pequeno apartamento de solteirão, continuava a rotina. Um banho quente, esquentar a comida que pela manhã transferira do freezer para a geladeira, o jantar, o jornal da noite e a novela na TV e, depois, dormir para recuperar as forças que lhe permitiriam começar tudo novamente no dia seguinte.

Nos fins de semana, era diferente. Ao chegar em casa, começava uma outra rotina. Não envolvia o emprego e os cansativos percursos de ônibus, de ida e volta à cidade, mas Hércules fazia sempre as mesmas coisas, também religiosamente.  Estava acostumado, não lhe passava pela cabeça alterar nada.

No sábado limpava o apartamento, lavava suas roupas, cozinhava e congelava a comida da semana, e via TV. Já no domingo, levantava-se cedo para ir à missa; na volta para casa esticava o percurso numa boa caminhada, almoçava, e à tarde assistia algum jogo de futebol ou filme na TV; à noite jantava, via mais alguma coisa na TV e depois ia dormir, já se preparando para o retorno à rotina dos dias de trabalho.

Hércules nunca soube como encontrar uma companheira para a sua vida. Uma vez um amigo tentou bancar o cupido para ajudá-lo, e lhe apresentou uma moça bem interessante; mas estragou tudo com a sua falta de jeito para levar um namoro adiante. Aos quarenta e dois anos, vivia só.

Mesmo assim, antes de deitar-se Hércules rezava as suas orações da noite, agradecia sinceramente e sempre ficava emocionado, só em pensar como era feliz.

Naquela tarde de sexta-feira estava com a sua atenção focada em como o verde das árvores e plantas que circundavam e preenchiam a praça era mesmo relaxante, confirmando o que um dia lera em algum lugar, há muito tempo. Tentou lembrar onde vira isso, para distrair-se mais um pouco enquanto esperava a hora do ônibus. “Talvez em algum exemplar do Almanaque do Biotônico Fontoura que a vovó ganhava do farmacêutico”, pensou e riu-se, mas não se lembrava ao certo.

Em certo momento, as suas divagações foram interrompidas pelo movimento de um estranho que se sentou no banco ao seu lado e logo puxou conversa. Muito falador, apresentou-se com o nome de Apolo, acrescentando que, tal como o deus grego de quem era homônimo, tinha muito apreço pela música e pelas artes em geral. Hércules o examinou discretamente, viu que era bem-apessoado, não despertava desconfiança, e teve a impressão de que já o tinha visto antes.

Surpreso pela súbita e animada abordagem, manteve-se educadamente quieto, apenas ouvindo o estranho. A cada tanto respondia com um econômico “sei, sei...”, ou um compreensivo “hum, hum...”. Aos poucos, porém, foi se interessando pela animada conversa do confiado Apolo, e passou a interagir com alguns rápidos e moderados comentários.

Lá pelas tantas, depois de muita fala e vendo que conseguira a atenção e a confiança de Hércules, Apolo resolveu abrir o jogo. Disse que tinha uma galeria de arte próxima à praça e que, de lá, o estava observando já havia alguns dias. Pôde perceber como ele era metódico e discreto, apresentável no vestir e tinha muito bons modos, o que havia acabado de confirmar naqueles minutos de conversa. Enfim, disse que Hércules lhe parecia ter as virtudes de que precisava em um agente para o seu serviço, e que já havia pedido as suas referências onde ele trabalhava, que era justamente o escritório responsável pela contabilidade de sua Galeria de Arte.

— Em verdade, o Contador Aquiles, seu patrão, me disse que te conhece bem e duvidou muito que você  aceitasse a proposta que vou te fazer, mas também disse que te libera, por férias de até um mês, se você aceitar. E como é meu amigo de longa data, até por mais uns dias, se for preciso. Mas acho que é porque ele não acreditou que você aceitará – concluiu, desafiador.

Após revelar esses detalhes, esclareceu, enfim, a proposta. Apolo precisava de alguém para um empreendimento que teria que se iniciar numa viagem internacional dentro de um mês, percorrendo alguns países por duas ou três semanas, começando pela Grécia, para comprar quadros de alguns pintores que começavam a se destacar e que seriam expostos em sua Galeria.

— Você viverá uma verdadeira odisseia. Serão doze trabalhos, ninguém melhor do que alguém chamado Hércules para realizá-los. Mas não será nenhum bicho de sete cabeças.

O projeto todo já estava pronto, com todas as indicações necessárias para encontrar essas pessoas, identificar as obras já escolhidas, e ele ensinaria a Hércules a melhor forma de fazer a negociação em alguns dias de treinamento após o expediente. A dificuldade maior seria o idioma, mas iria com as cartas prontas e utilizaria, quando precisasse, programas da internet que fazem traduções instantâneas, viabilizando a comunicação. E a recompensa financeira seria muito boa.

Ao ouvir a proposta, a primeira coisa que passou pela cabeça de Hércules foi “vou perder a sequência da novela”; mas o seu espírito de aventura, há tanto tempo hibernando, voltou com toda a força e deu um verdadeiro rugido nas orelhas de sua vontade, despertando-a daquela letargia que a dominava. Vítima passiva desse processo que ocorria em sua mente, Hércules reagiu de forma inesperada, até para ele mesmo.

— Aceito! – Disse, quase sem pensar.

O ânimo, a expressão, a atitude de Hércules, mudaram de imediato. Já queria saber e foi perguntando como seria tudo, para onde iria, quais as suas garantias, quanto receberia, e tudo mais que lhe veio à cabeça.

Que praça, que ônibus, que nada! A sorte, finalmente, lhe sorria, caiu do céu, um maravilhoso presente. Férias prolongadas e emprego garantido pelo patrão, viagens pagas e ainda uma boa “graninha” extra. Agora viajaria de avião, conheceria gente diferente, situações novas; seria uma oportunidade de quebrar completamente as suas rotinas por um tempo, experimentar uma mudança radical em sua vida. Aventura à vista!

Hércules riu-se enquanto pensava “Só espero que não seja um presente de grego, mas essa história vai pegar o calcanhar do Aquiles. O patrão não vai nem acreditar! Quando souber que aceitei, vai querer me comer o fígado. Também, quem mandou querer agradar a gregos e troianos”?

Um comentário:

  1. Muito bom. Seus detalhes são riquíssimos. Parabéns!
    Helio F. Salema

    ResponderExcluir

DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.

A ÚLTIMA CARTA - Helio Fernando Salema

  A ÚLTIMA CARTA Helio Fernando Salema     Ainda sentada em frente ao gerente do Banco, Adélia viu, no seu celular, a mensagem de D. Mercede...