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terça-feira, 8 de junho de 2021

A RODA DA VIDA - Claudionor Dias da Costa

 


A RODA DA VIDA

Claudionor Dias da Costa

 

Meu nome é Valentina. Minha mãe me chamava de Tina o que me agrada muito por   lembrar dos profundos olhos negros amorosos e de sua simplicidade. Estas são as poucas lembranças que guardo dela. E a última, quando de mãos dadas com meu irmão Alberto a vi caminhando rapidamente de costas para nós, após nos ter dado um longo abraço na porta daquele orfanato, que seria a escola como ela nos disse.

Mal tivemos tempo de entender o que acontecia, quando ouvimos a voz da senhora que mais tarde saberíamos ser a tia Lola:

Venham crianças, vamos brincar com os amiguinhos!

Nessa época, eu com seis anos e meu irmão Beto com quatro, ainda não nos dávamos conta de que aquele lugar seria nossa casa a partir daquele momento. Aquele cenário e tudo que o envolvia permaneceria um bom tempo conosco.

Hoje, contemplando a foto da brincadeira de roda que alegremente fazíamos com as demais crianças, cantando e pulando bastante não imaginávamos o que seria a nossa vida...

Entre explicações calmas com voz pausada que ouvíamos da tia Lola sobre o porquê de mamãe nos ter deixado naquela “escola”, indo viajar para outro país, pois necessitava trabalhar e demoraria a voltar, começamos a nos entrosar naquele grupo e passamos a entender que seria nossa família, como ela dizia.

Aprendemos a escrever as primeiras palavras e principiamos a ler, entremeados com disciplina firme e na rotina medida entre a grande mesa de refeições e o dormitório conjunto com as demais crianças. Não podemos criticar e lamentar como fomos tratados, porque embora sendo tudo muito simples, o pessoal procurava nos proporcionar educação e amenizava as lembranças de nossos pais. Estas, foram sendo diluídas em imagens remotas. E o tempo foi passando...

Após dois anos, numa manhã ensolarada de verão a algazarra da turma correndo pelo gramado, naquela brincadeira de “pega-pega” no intervalo de nossas atividades, minha atenção se voltou para um casal elegante descer de um carro e caminhar em direção à porta onde estava Dona Estela, a diretora de nossa “escola”.

Toda sorridente conduziu o casal para sua sala.

Após meia hora, já nos encontrávamos preparados para reiniciar nossas aulas quando tia Lola nos chamou:

Tina e Beto,  venham rápido.

Ela nos conduziu à sala da diretora, que se encontrava conversando com o casal que eu havia visto. Prontamente se dirigiu a nós:

Sentem-se crianças. Quero lhes apresentar o Sr. Euclides e Dona Lindaura. Vou deixá-los por alguns instantes, porque eles querem conversar com vocês.

Eles sorriram e começaram a nos perguntar sobre nossas atividades e contavam fatos curiosos sobre a vida deles e como era gostoso o lugar em que viviam. Foi agradável para nós e em pouco tempo já havíamos perdido a timidez.

A diretora voltou e nos disse que eles nos convidaram a passar alguns dias na casa deles. E assim foi.

Nos levaram para aquele bairro arborizado e naquela casa bonita conhecemos também o filho deles, o Alceu. Ficamos por quatro dias. Depois retornamos e Dona Estela, juntamente com a coordenadora que acompanhava nossas atividades nos chamou e passou a nos explicar que o casal havia demonstrado interesse em nos adotar. Nesse momento, lembrei do que nossos amiguinhos comentavam de que um dia esperavam também ser adotados e viver com uma família de verdade. Era tudo que queriam.

Com a nossa pouca idade, não havia escolha. Muito embora, havíamos até simpatizado com a ideia e nos motivamos arrumando nossas pequenas malas e até ansiando morar com eles,  mesmo um tanto apreensivos.

E na despedida com a tia Lola, o restante dos funcionários e nossos amiguinhos caminhamos para o carro deles. Até o Alceu veio nesse dia.

No caminho ainda olhei a foto da brincadeira de roda, que guardo ainda e, ficava imaginando como seria nossa vida a partir dali. Estava um pouco inquieta e ansiosa, mas com curiosidade para descobrir como seria tudo. Beto, apertando minha mão com leve sorriso olhava para mim.

A nossa nova família se esforçava em nos agradar e facilitar nossa adaptação.

Dona Lindaura, doce sorriso, olhos cor de mel, muito carinhosa foi logo nos abraçando e beijando. No princípio ficávamos um pouco retraídos e logo entendi por que as pessoas resumiam seu nome e a tratavam por Linda. Ela era linda mesmo. Tinha um grande coração. Procurava criar empatia rápido, ajudava os outros como podia. Não foi nada difícil gostar dela.

O Sr. Euclides, mais formal e não tão falador nos tratava bem e brincava tentando mostrar que era vigilante com a disciplina, costumava dizer:

Vejam, meu nome começa com “Eu”. Portanto, quem é o comandante aqui?  Nos olhava com cara irônica e fingia seriedade. Alceu, pré-adolescente com doze anos, sacudia a cabeça com suspiro irônico contraindo o canto da boca como querendo mostrar desacordo com o que o pai dizia.

Por insistência e perseverança sincera da Linda, nos habituamos a chamá-los de pai e mãe. Para o Beto foi mais fácil porque passou a ser até mimado como caçula.  Eu demorei um pouco por um retraimento natural até sentir segurança de que era realmente acolhida.

Passamos a frequentar uma escola particular no bairro, a mesma de nosso novo irmão.

Como nos sentimos aceitos naquela família, nossa vida parecia que seria muito feliz.

Contudo, alguns de nossos colegas de escola, sabedores de nossa condição de adotados, começaram a nos ridicularizar exercendo “bullying” sobre isso.

Beto ouvia que seus pais não eram de verdade. Eu, que um dia seria abandonada novamente.

 Alceu que era obrigado a escutar:

− Como vão aqueles “passarinhos” perdidos que moram com vocês.

Procuravam dissimular para que o bedel não ouvisse. Tudo isso, era muito difícil para nós.

Alceu se envolveu em brigas e confusões, tentando nos defender. E por mais de uma vez foi suspenso na escola, mesmo com os argumentos que nossa mãe colocava.

Ele passou a ser um rapaz inconformado com este tipo de situação por gostar muito de nós, seus novos irmãos. Com senso crítico social e, por não concordar com atitudes arrogantes e preconceituosas dos colegas, passou a desenvolver um sentimento de revolta. Seu aproveitamento escolar caiu muito. Trancava -se no quarto e principiou a demonstrar permanente rancor. Não demonstrava muito interesse pelo grupo de amigos. Acabou redundando em expulsão da escola.

Nossos pais,  para evitar maiores problemas, transferiram todos para outra escola num bairro mais distante.

Por um bom período, tudo se acalmou e retomamos a rotina. Parecia que tudo ficaria bem.  Ledo engano.

Já moço passou a fazer novas amizades e com seus dezoito anos, passou a contestar bastante os pais e não deixava de frequentar as festas e “baladas” como se diz, chegando cada vez mais tarde da noite. E, com muito custo foi estudando e, entre altos e baixos,  após cinco anos ingressou numa faculdade.

Quando em casa, fechava-se em seu quarto, pouco conversava, muito embora, por mim e Beto demonstrasse carinho.

E o nosso pai com sua sensata disciplina   vendo que Alceu adotava atitudes que não concordava, passou a chamar sua atenção. Isto, era motivo para discussões que foram se avolumando e deixava mamãe e nós, constrangidos e preocupados.

Por mais de uma vez escutamos nosso pai se dirigir a ele em voz alta:

Alceu, estas amizades estranhas não são boas. Poderão lhe trazer problemas e complicar sua vida e a nossa.

Ele demonstra intransigência e descontentamento.

Novamente passou a ir muito mal na faculdade. Repentinamente, passou a não mais discutir com o pai. Só ouvia. Dormia mais que o normal a ponto de perder aulas. Nas refeições ficava com olhar perdido e não participava das conversas.

Até que naquele dia de junho ele não regressou.

O desespero tomou conta da família.  Entre buscas, telefonemas, idas e vindas à Polícia após três dias descobriu-se que ele estava num hospital no extremo sul de São Paulo.

Nossos pais muito tristes só confirmaram o que vinham desconfiando a tempos: ele se drogava.

Havia sido espancado, encontrado sem documentos e encaminhado ao Pronto Socorro. Se envolveu em briga com outros viciados e foi encontrado desfalecido num beco da favela.

Passou a se recuperar em casa e após melhora nas condições físicas iniciou um tratamento psiquiátrico.

Com todo este drama, e agravado ainda por nosso pai ter sido obrigado a acertar contas com o dono do tráfico que passou a importuná-lo, não passou um mês e ele teve um AVC. Não resistiu. Perdemos como ele se autodenominava o nosso “Comandante”. Muito triste.

Choramos muito. A nossa linda Linda mal teve tempo de ter seu luto passou com muita força e dedicação a cuidar de nós todos. E conseguiu.

Alceu após dois anos parecia outro homem. A morte de nosso pai naquelas circunstâncias foi como uma alavanca a lhe dar responsabilidade e passar a ajudar nossa mãe.

Montou uma empresa no ramo de varejo, com marca própria de roupas e se saiu muito bem.

Eu me formei advogada e Beto engenheiro civil.

Estes momentos chegaram num turbilhão à minha memória e me vejo hoje anos depois com   Beto e Alceu abraçados, olhos marejados, colocando flores no tumulo de nossos pais.

É nossa saudade contida, profundamente agradecidos pela Linda e Euclides, pessoas incríveis e dedicadas que nos deixam orgulhosos como filhos.

Como valeu a pena interromper aquela brincadeira de roda na nossa infância para conhecê-los num tempo que parece perdido...

Refletindo e fazendo um paralelo com essas imagens, não posso deixar de suspirar e reconhecer que eles com muito amor foram fundamentais para movermos a Roda da Vida...

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