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terça-feira, 8 de junho de 2021

FAZENDO MÉDIA. - Leon Vagliengo

 

 


FAZENDO MÉDIA.

Leon Vagliengo

Uma bajulação romântica memorial.

 

Com o passar do tempo os fatos se sucedem, quase sempre sem que percebamos a sua relevância para o nosso destino. Por isso recorri à memória para tentar resgatar fatos importantes que moldaram grande parte do enredo de minha vida. Vou aqui relatá-los para que entendam por que estou em prisão perpétua.


Era o mês de julho do ano de mil novecentos e sessenta e três. Eu, minha mãe e meus irmãos passávamos as férias na Praia Grande, no pequeno apartamento da família, como fazíamos em todos os períodos de férias escolares havia cinco anos. O meu pai permanecia em São Paulo, em serviço no Banco do Brasil, pois não fazia jus a férias naquela ocasião, ficando conosco apenas nos finais de semana.

 

A Praia Grande na época era muito pouco habitada. Algumas casas aqui e ali, e o nosso prédio, o Edifício São Paulo, com seus quatro andares se destacava isoladamente na paisagem, juntamente com o Edifício Santo Antônio, ainda em construção, ambos compondo o Condomínio Havana.

 

Quase um quilômetro adiante a recém-inaugurada Cidade Ocian, tendo à sua frente uma grande estátua do Rei Netuno, estendia-se perpendicularmente à praia, com uma igrejinha e muitos prédios também de quatro andares, dois a dois ladeando a rua principal, iniciando o processo de expansão urbana da região e já trazendo alguma aglomeração às areias nas manhãs de sol. Mas ao longe, sem interferir em nosso recanto.

 

Seguindo uma tendência natural para as circunstâncias de então, o Havana sediava o encontro dos jovens do prédio e das imediações, uma pequena turma que lá se reunia para jogos e brincadeiras na praia pela manhã, conversas à tarde e à noite, e até bailinhos.

 

Foi nessas férias de julho que surgiu uma nova integrante em nossa turminha. Uma linda moreninha de quatorze anos que com a sua simpatia logo encantou a todos no grupo. Nas conversas destacava-se por sua facilidade para rir das bobagens inocentes produzidas e proferidas pelos jovens, mas também, e principalmente, pela forma de sua risada: rápida, intensa e muito descompassada, era absolutamente notória e, após qualquer graça dita por alguém, fazia com que todos rissem muito, muito mais. Essa é uma lembrança marcante que conservo até hoje, com a qual ela prendia a minha atenção.

 

Mas ainda era cedo para que eu pensasse em qualquer outra coisa: aos quinze anos, na praia, o foco era futebol, vôlei e pegar jacaré nas ondas do mar.

 

Ela não retornou nas férias do ano seguinte.

 

Em março de mil novecentos e sessenta e quatro meus pais se mudaram para o Jardim Paulista, na zona sul da cidade. Faltavam dois anos para me formar no curso colegial e continuei a estudar no CEDOM, colégio estadual localizado na zona norte, onde havíamos morado. Para ir ao colégio eu atravessava a cidade duas vezes por dia, tomando dois ônibus na ida e dois na volta.

 

Em fevereiro de mil novecentos e sessenta e cinco completei os dezoito anos e, finalmente, tirei a minha habilitação de motorista. Ainda ia para o colégio de ônibus, mas, vez por outra, nos fins de semana, meu pai me emprestava o Volkswagen, carro que na época ainda não tinha o apelido de fusca, e eu comecei a dirigir, fazer os meus primeiros passeios motorizados.

 

Em uma noite de maio daquele ano, já mais confiante nas minhas habilidades ao volante, e aproveitando a disponibilidade do carro, resolvi estender o passeio para os lados do Tucuruvi, Jardim Tremembé e adjacências, bairros da zona norte.

 

Foi quando, casualmente, a vi.

 

Passando pela calçada a uns vinte metros de mim, acompanhada de seus pais, lá estava ela, menos menina, mais moça e mais linda, a moreninha que dava risadas engraçadas naquelas férias de julho. Curioso, e já muito interessado, dei um jeito de segui-los e consegui descobrir onde moravam.

 

Assim que pude voltei, agora à luz do dia, e a procurei, com muito boas intenções, como se dizia antigamente. Não me recordo de detalhes, mas não obtive sucesso na primeira oportunidade. Mocinha caseira, aparentemente temerosa pela circunstância da inesperada abordagem, após alguma conversa despediu-se de mim de maneira pouco animadora.

 

Embora às vezes até pareça, não é da minha índole aceitar passivamente uma derrota quando o objetivo é importante. Naquela tarde fui embora, mas logo no outro dia, vinte e sete de maio, voltei para lhe dizer estrategicamente que a amizade continuaria a mesma; foi então que ela mudou a sua tática e sugeriu um passeio a pé pela região. Andamos muito, conversamos muito e ao final do passeio e de algumas manobras retóricas, sutis de ambas as partes, nos entendemos e já éramos aliados e namorados.

 

Eu morava na zona sul e ela na zona norte. Os quilômetros rodados do Volkswagen aumentaram rapidamente, pois eu a esperava na saída da escola e nossos encontros tornaram-se incansavelmente diários durante cinco anos, espremidos entre os horários de estudo e do meu emprego, este a partir de janeiro de mil novecentos e sessenta e sete.

 

Nossos pais mantinham uma atitude mais neutra perante o namoro, preservando aquela conveniente distância de respeito. A casa de seus avós, porém, era a nossa sede. Por eles fui logo recebido como um novo neto, com inesquecível carinho. Ela voltou a passar as férias escolares no Havana, sempre com os seus avós. E comigo, logicamente.

 

Esse foi o início de nossa longa história.

 

A vida seguiu. Cinco anos de namoro e nos casamos, ainda novinhos e apaixonados. Vieram os filhos e netos, ela se revelou a excelente esposa que é, minha parceira de muitas alegrias e algumas inevitáveis tristezas que a realidade nos impõe, em mais de cinquenta anos de matrimônio.

 

Recentemente estivemos no velho apartamento da Praia Grande, esquecido há tantos anos, mas que ainda é da família. Fiquei triste em vê-lo naquele estado de abandono, e triste também com a lembrança despertada dos momentos felizes que me proporcionou, porque ficaram no passado e não voltam mais. Mas, agradecido ao lembrar que lá encontrei a minha companheira para viver a vida. Nessa visita estava ao meu lado, como sempre está, a minha mulher, a lembrança principal que se transformou em realidade para mim.

 

Eu continuo a vê-la como uma linda menina e a curtir a sua risada, que continua a mesma.

 

Por ela eu faria tudo mil vezes, e até mais. Estou preso, não saio mais desta teia.

 

 

Com aprovação da homenageada.

 

 

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