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quinta-feira, 22 de abril de 2021

A Bruxa - Adelaide Dittmers

 



A  Bruxa

Adelaide Dittmers

 

O sol derramava raios pelos campos e por um pequeno bosque, que o circundava.  Mais adiante, um vilarejo com estreitas ruelas de terra e casas de pedra equilibradas na encosta de uma montanha coberta por pinheirais, cujo pico coberto de neve, brilhava em contraste com um céu profundamente azul e bordado por pequenas nuvens, que formavam várias figuras para quem as quisessem imaginar.

À beira do bosque, uma jovem dobrava-se para colher ervas e plantas silvestres.  Usava vestes simples e a saia comprida atrapalhava seus movimentos, enroscando-se nos pequenos caules da vegetação.  Seus longos cabelos negros eram parcialmente escondidos por uma pequena touca.  Pele clara com muito traços delicados, assim como os olhos de um verde esmeralda completavam sua beleza. 

Terminada a colheita, colocou tudo em uma cesta, que estava ao seu lado, ergueu-se e com passos lentos caminhou em direção da aldeia.

Com imensa satisfação, aspirava o ar fresco da manhã.  Adorava aqueles vastos campos.  Enquanto caminhava, começou a recordar, com melancolia, as inúmeras vezes, que pequena, de mãos dadas com a mãe, percorreu aquele caminho para colher ervas para fazer remédios, unguentos que curavam doenças e mitigavam as dores de muitos.  Tinha aprendido com ela a manipular plantas, sementes e raízes, que eram transformados em poções medicinais.

Com a morte dos pais em um acidente na montanha, ficou sozinha e, além de trabalhar no campo, ganhava o pão de cada dia, como curandeira da aldeia.

Era malvista por muitos daqueles ignorantes aldeões, que não admitiam uma mulher viver só, sem marido e filhos.  Muitas vezes era molestada pelos jovens e até por homens mais velhos, mas sempre conseguia escapar de suas investidas.   Aprendeu a se defender e procurava levar uma vida discreta e apagada.

Depois de uma longa caminhada, chegou ao vilarejo e subiu a ladeira, que a levou a uma pequena casa, onde uma primavera de flores vermelhas coloria o cinza escuro das pedras das paredes. Entrou, colocou a cesta em cima de uma tosca mesa de madeira e foi acender o fogo em um pedaço de rocha plana, onde havia uma estrutura de ferro, em que estava pendurada uma panela também de ferro, que não só servia para cozinhar os alimentos como aquecia o ambiente.  A parede, em que se encostava esse fogão primitivo, era escurecida pela ação do fogo.  A moça encheu a panela com a água retirada de uma tina e começou a preparar suas poções.

Ultimamente estava preocupada com as reações de algumas pessoas do lugar.  Era olhada de esguelha e muitos a chamavam de bruxa por ser uma curandeira.  Principalmente o pároco do vilarejo a olhava com muita desconfiança e se afastava quando passava por ela.

O século XVI começou com grandes perseguições da igreja católica a todos, que professavam outras religiões ou realizavam cultos considerados pagãos.  Judeus eram perseguidos e qualquer manifestação contrária aos severos ditames do papa e seu séquito era perfidamente julgada.  Fogueiras eram acesas por toda Europa, queimando supostos infratores das leis cristãs, vigentes na época.  Os ensinamentos sábios e amorosos do verdadeiro Cristo foram esquecidos e substituídos pela ambição e desejo de poder da igreja.

Por tudo isso, o medo e a preocupação da pobre moça não eram infundados, mas ela confiava em sua missão, transmitida pela mãe, de ajudar a quem lhe pedisse socorro. E corajosamente enfrentava a desconfiança de muitos da aldeia, mesmo quando alguns a aconselhavam a agir de maneira mais oculta. Ela, no entanto, não conseguia entender porque tinha que esconder o que fazia.

Naquela manhã, enquanto preparava suas poções, bateram à sua porta.  Era Jonas, seu vizinho e amigo, que com uma voz exasperada gritou:

- Ana, você precisa fugir daqui agora. Há gente se encaminhando para cá com o pároco e outros da igreja.  Ouvi que querem levá-la para a masmorra.

A moça estremeceu.

- Não faço mal a ninguém.  Por que não entendem que minhas ervas são para curar? Sou cristã, só não tenho frequentado as missas, porque sei que o padre não gosta de mim.

- A igreja está perseguindo muitas pessoas, que nada fizeram.  Por favor, venha comigo.  Vou escondê-la na cabana de caça, que tenho na montanha.

Ana sabia que vizinhos não gostavam dela por ser só e independente. Invejavam-na por conseguir sobreviver com seu trabalho no campo e as exíguas moedas, que cobrava pelos seus remédios.

Ficou indecisa por um momento, mas o terror de ser presa a impulsionou.  Deu a mão a Jonas e saíram da casa correndo. Rapidamente percorreram os caminhos que os levariam à montanha.

Poucos minutos depois, a turba chegou à casa de Ana, invadindo-a com turbulência.  Derrubou o caldeirão de ferro e destruiu tudo o que encontrou pela frente. Os homens estavam cegos pelo ódio de não a terem encontrado ali.  Iriam procurá-la por todo o canto.  Ela não ia escapar. Era uma bruxa perigosa e em nome de Deus, precisavam castigá-la.

Enquanto isso, Jonas e Ana, subiam a montanha o mais depressa possível, enroscando-se em galhos de vegetação, que afastavam com as mãos. Finalmente chegaram a uma pequena cabana, feita de madeira.  Jonas empurrou a porta, que se abriu com um guincho e abriu também a única e pequena janela, que iluminava um pouco aquele ambiente quase vazio.  Havia um pequeno e rústico colchão de feno ao fundo, uma espécie de lareira para cozinhar e o chão era de terra batida.

Ana estremeceu, teria que ficar ali sozinha, cercada pela floresta de pinheiros, onde habitavam lobos.

Jonas disse-lhe que tinha que ir para não levantar suspeitas e que mais tarde voltaria para lhe trazer algo para comer.  Desceu, quase correndo, as escarpas da montanha e chegou à sua rua, onde viu com angústia, o que tinham feito com a casa da amiga.  A bela primavera jazia espicaçada no chão.

Sua mulher o esperava à porta de sua morada.  Ele foi ao seu encontro.  Eram muito gratos àquela jovem, que muitas vezes os tinha socorrido com suas poções.  Entraram em casa e a mulher relatou o que tinha visto e ouviu.  Iriam vasculhar toda a região em busca da pobre Ana. 

Ao anoitecer, Jonas subiu a montanha, levando uma trouxa com algum alimento para a amiga.  Pendurada no ombro, carregava uma arma de caça para disfarçar seu objetivo e também se defender de algum lobo, que cruzasse seu caminho.

Ao chegar, encontrou Ana sentada no chão, fora do abrigo, com o olhar perdido pela floresta.  As primeiras estrelas brilhavam no céu.  A jovem levantou-se rapidamente ao sentir que alguém se aproximava.

- Sou eu, Ana.  Vim lhe trazer comida, como prometi.

Chegando perto dela, estendeu-lhe a trouxa e contou-lhe o que acontecera.  A pobre moça ficou desolada.  O que seria de sua vida?

Ela agradeceu e se despediram com um aperto de mão.  Jonas voltou para casa sobressaltado por pensamentos sombrios.

No dia seguinte, as buscas para encontrar a bruxa do imaginário daqueles homens rudes de ignorantes continuaram.  Vasculharam palmo a palmo os campos e o bosque ao redor do vilarejo e a cada fracasso, o ódio daqueles fanáticos crescia como erva daninha, entorpecendo suas mentes fantasiosas.

O dia sucumbiu a uma noite estrelada e o luar banhou de prata aquele belo cenário.  Todos voltaram para casa, não sem antes combinar que no próximo dia iriam varrer a montanha de alto a baixo.

Mal o dia tinha acordado e se espreguiçado pela paisagem do lugar, já a turba subia a montanha em sua procura desvairada.

Jonas e a mulher estavam apavorados.  Iam encontrar a jovem e estavam de mãos atadas, nada podendo fazer.

Ana levantou-se ao amanhecer e abriu a portinhola de seu frágil abrigo.  A floresta estava tingida de tons laranja da aurora, que se debruçava sobre o pinheiral, iluminando cada canto, tornando aquele lugar um pequeno paraíso.  Um pássaro cantou no alto de um pinheiro, anunciando o dia que nascia.

A moça olhou para a paisagem.  Amava e respeitava a natureza.  Encheu seus olhos e sua alma com a beleza do lugar.  Estava muito cansada. Quase não tinha dormido.  Além do medo do que iria lhe acontecer, o uivo dos lobos a deixaram em permanente estado de alerta.

De repente, ouviu um tropel de passos e um alarido de vozes subindo a montanha.  Seu coração disparou e a jovem entrou na cabana, fechou a porta e se encolheu em um canto do pequeno e único cômodo do lugar que a escondia.

As vozes foram se aproximando e seu pavor foi aumentando cada vez mais.

Um homem gritou;

-Olhem, vamos procurar naquela cabana!

E chegando ao abrigo, empurraram a porta com violência e logo enxergaram um pequeno vulto encostado à parede.  Ana cobriu o rosto com as mãos, como se esse gesto pudesse a proteger. Eles a puxaram com força e a levantaram.  Ela implorou:

- Por favor, não me matem. Não sou bruxa, só procuro curar as pessoas com minhas plantas.

- É sim! Gritou o homem que a agarrara. Você tem um pacto com o diabo para fazer feitiçarias.  E a empurrou para fora.  Ela levantou os olhos para ele e na claridade do dia, reconheceu-o.  Muitas vezes aquele homem tinha se aproximado dela com as mais duvidosas intenções, obrigando-a a fugir dele, como as presas fogem de seus predadores.

O padre apareceu à frente do grupo, aproximou-se e a amarrou com uma corda e, puxada como um animal, foi  levada para a aldeia, e enquanto percorriam as vielas, algumas pessoas apedrejavam-na sem piedade.  Alguns, no entanto, choravam ao vê-la passar.  Muitas vezes ela diminuiu ou curou seus males com suas poções, que achavam ser mágicas.

Ao chegar à igreja, foi jogada em um cubículo escuro para esperar seu julgamento. Ferida e assustada, não conseguia entender tudo aquilo,

Religiosos das redondezas vieram e se reuniram para julgá-la.  A inquisição corria solta naquela época tenebrosa e a maldade humana se manifestava com todo o seu furor nas pobres criaturas, que contrariavam crenças católicas.

Ao fim de alguns dias e depois de várias reuniões do clero, foi considerada culpada e transgressora das leis de Deus. Uma herege que praticava bruxaria.

Com varas e madeiras foi erguida uma estrutura na praça à frente da igreja,  para que nela fosse aceso o fogo da expiação e parte dos habitantes do lugar se reuniu para apreciar o espetáculo.

A pobre curandeira foi trazida e amarrada àquela estrutura.  Não chorava.  Seus olhos estavam vazios, perdidos em algum lugar distante.

Jonas aproximou-se dela para lhe demonstrar sua tristeza e lhe dizer umas palavras de consolo, mas foi afastado com brutalidade por um dos algozes da indefesa vítima.

O fogo foi aceso e começou a crepitar.  As chamas foram devorando a pobre criatura, que soltava gritos de dor.

Muitos gritavam, enfurecidos, palavras contra a bruxa.  Outros procuravam esconder lágrimas, que teimavam em inundar seus rostos.

Jonas saiu dali arrasado.  Não conseguira salvá-la.  Que justiça de Deus era essa, que matava tão cruelmente pessoas inocentes, perguntava-se enquanto descia a ladeira.  E não encontrou uma resposta.

 

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