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quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

MAL ACOMPANHADO - HIRTIS LAZARIN

 

                                                         


                       

MAL ACOMPANHADO

HIRTIS LAZARIN

 

O homem abriu os olhos gemendo de dor.  Acabara de levar um chute no tornozelo.  Era assim que o cobrador de ônibus acordava o último passageiro no ponto final da linha.

Sonolento, Joca saltou do coletivo num pulo de mal jeito.  A coluna vertebral não gostou e respondeu com um "ai" dolorido.

Além de atravessar a cidade de oeste a leste, ele tinha que enfrentar uma caminhada de mais de meia hora.

A noite estava gelada, escura e silenciosa.  Até o boteco da esquina, onde, todo dia bebericava algumas doses de cachaça com conhecidos, quase não pega aberto.  

Olha no relógio e já são vinte e duas horas.  Estava mais tarde que de costume.  Postura envergada, menos pelos anos já vividos e muito mais pelos maus tratos da vida difícil.  Nordestino, semianalfabeto, passa os dias misturado e confundido com tijolos e cimento, aturando a prepotência e indiferença do mestre de obras.  Joca já imobilizou dezenas e mais dezenas de palavrões na garganta porque depende destes tostões pra sobreviver.

Olhos tristes, passos pausados e monótonos, caminha solitário.  O silêncio é interrompido pelo som de passadas vindas de trás.  Para, olha e procura.  Não vê nada.  Um breu só.  As luzes dos postes esqueceram que já era noite.

Joca sente um frio gelado e a sensação de que um vulto passou pertinho de seu corpo. Encolhe-se arrepiado. " Bobagem, sou cabra macho.  Só tô cansado demais.  Ou será que é a saudade de "mainha?  Ainda bem que consegui chegar a tempo pra  vê-la e abraçá-la antes da sua partida."

Caminha mais um quarteirão e as passadas voltam.  Antes um plact...  plact... vagaroso,  agora um ploct, ploct  rápido. Ele muda de calçada.  Os sons acompanham-no.   E, ainda, falta um bom pedaço de caminho pra Joca chegar em casa.  A boca seca tem gosto de jiló e um fio gélido percorre sua espinha.

A rua continua um deserto de gente.  De vez em quando um carro,.. Uma coruja mal agourenta pia estridente escondida nos galhos do manacá corpulento e florido.  Um gato morador de rua abandona o esconderijo e desaparece enlouquecido.  "Que noite é essa, Padim Ciço"!

Joca não controla mais a respiração.  Gotas aflitas escorrem-lhe pelo rosto sem cor. Era uma tremedeira só.  O sertanejo, que não temia nem o diabo, fraqueja e sente vergonha.  Não anda nem pra frente nem pra trás.  Cai sentado no meio fio.  Flexiona as pernas e esconde o rosto entre os joelhos.  Posição fetal que geme, que busca proteção.  Ouve, então, a respiração ofegante de alguém bem próximo e, logo em seguida, o tec... tec... de um gatilho.  Espera a morte.  Era seu último momento de sobrevivente num chão áspero e sujo.  Enche os pulmões e grita como nunca gritou antes.

Uma caneca de água gelada alivia-o desse sofrimento.  "Vai pra casa,  Joca.  Toma um banho e livra-se dessa ressaca!"  Grita, o dono do boteco.

 

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