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quarta-feira, 5 de março de 2025

SIRIGAITA - PEDRO HENRIQUE

 






SIRIGAITA

PEDRO HENRIQUE

 

Disse mais o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea.

Gênesis 2:18

 

     Almas do subsolo da humanidade, oremos pelo amor de cada dia que nos é dado por compaixão e misericórdia.

     Ó, lobas que correm na alcateia em busca do acalento universal, louvem o momento do preparo. Eu já estive aí, sei o que é ser uma rosa murcha, sem vida, impotente. No entanto, meu marido, meu amado marido, deu-me vida.

     Ele é um homem admirável, respeitado, fiel e servo de Deus. Pensem em um homem de oração e, ainda assim, não chegarão nem perto.

     E é por isso que eu o amo tanto. Porém, tenho um trabalho enorme para estar ao seu lado. Vocês acreditam que um bando de sirigaitas fica em cima dele? Será que elas acham mesmo que podem me substituir? Eu rio dessas sem rumo que andam por aí.

     Antes de vir parar aqui, no outro lado de tudo, eu colocava elas pra correr. Era um verdadeiro gato pulando em cima do rato e o mostrando quem é que manda.

     Meu marido me achava corajosa por tais feitos, só às vezes me detia: “Eh, mulher, para com isso, tá todo mundo olhando.”

    Mas eu não me importava, aquelas impuras deveriam ser repreendidas. Não passavam de um bando de putas fáceis correndo, como cachorras que são, atrás de homem alheio. “Aqui não, piranhas. Esse é meu. Foi Deus quem me deu.”

     E com sadismo, varria-as do meu caminho. Porém, agora eu morri. Harm! Dá pra acreditar? Quem vai afastar essas imorais? Daqui a pouco, elas estão deitando na minha cama. Não… O homem é só meu. Mas de jeito nenhum.

     Foi o único que ficou ao meu lado quando papai morreu. Lembro que todo dia ia lá em casa me ver e saber como eu estava.

     Teve uma vez que foi debaixo de chuva e ainda trouxe consigo uma broa que dona Zezé, minha sogra, havia feito.

     Ele sempre me alegrava e me trazia um mimo. Depois, pediu minha mão à mamãe e nos casamos. Éramos bem novos na época, entretanto o amor tem pressa.

     E falando de mamãe, foi ela quem permaneceu ao meu lado quando fiquei de cama pela morte de papai. Rejeitava com ímpeto a possibilidade de sair do meu lado. Trazia comida, me dava banho e trocava minha roupa de cama.

     Fazia isso tudo mastigando, a contragosto, seu luto.

     Mamãe também adorava ficar comigo e meu marido quando ele vinha me ver. Às vezes, Ana, minha irmã do meio, também ficava com a gente. Eu gostava desses momentos de família, não tenho dúvidas de que foram eles que me ajudaram na recuperação. Enfim.

     Logo após esse período de trevas, veio o casamento, consequentemente o primeiro filho, depois o segundo, em seguida o terceiro e fechei a firma com o quarto. Para mim, estava ótimo.

     Mamãe, mais uma vez me ajudou, sempre me acompanhava nos ultrassons e ia comigo ver as roupinhas dos bebês. Ela afirmava que sentia como se meus filhos fossem seus filhos também.

     Só não gostava quando ela me usava para cutucar Ana.

     Vivia dizendo em alto e bom som nos almoços de família: “Queria que sua irmã tivesse uma família tão linda como a sua.”

     E, de fato, éramos uma boa família. Claro, tínhamos nossos momentos de turbulência, mas não eram nada diante de uma oração fervorosa.

     Eu era muito grata. Sempre agradeci por cada filho que Deus me deu. Porém, obviamente, fui muito testada com eles, Lourenço, o mais velho, principalmente.

     Hurm! Ele é um bom garoto, é muito parecido com meu pai.

     Teve até um momento, quando ele começou a ganhar prumo, que cheguei a dizer em voz alta a palavra “reencarnação”, todavia logo ceifei, intensamente, esse termo. “Deus me livre. Isso é coisa do diabo.”

     Mas voltando aqui para o Lourenço e todo o trabalho que ele me deu. Olha, leitor, pense em um garoto que gosta de um rabo de saia. Jesus, Maria José!

     Tentei, tá, juro que tentei, só que nada adiantava. Nada. Absolutamente, nada. Com o tempo fui deixando pra lá, fiquei muito cansada, até porque brigar só estava afastando meu filho de mim e agora comigo morta, o pai vive no bar e ele, vive no bordel.

     Vocês estão entendendo? Nada adiantou mesmo.

     Só fico me perguntando, onde foi que eu errei? Eduquei esse menino tão bem. O pai que, vez ou outra, dava muita liberdade, mas eu não.

     Sempre fiz ele ir comigo para a igreja, quando houve o batismo e ele não queria ir, dei uma coça nele, de fazer as costas terem que ser lavadas com água e sal até ele querer se batizar também.

     Nunca deixei ele sair por aí de namorico, e agora ele virou isso? Meu Deus! Não. Eu não aceito uma coisa dessa.

     Ahr! Eu não posso ficar aqui. Não posso. Meus meninos precisam de mim, meu marido precisa de mim.

     Só que… pera aí, como foi que cheguei aqui? Como morri? Só lembro de estar chegando em casa e ver uma vagabunda em cima do meu marido.

     Bati muito nela, muito mesmo, dei a ela o que merecia. Onde já se viu seduzir o homem do zoto e ainda querer ficar se apertando com ele?

     Estapeei mesmo, dei uma coça, entretanto, logo em seguida, senti o peito apertar, a respiração faltar, o suor emergir frio e, quando me dei por mim, já estava aqui.

     Não. Não mesmo. Eu me recuso a acreditar ter visto o rosto de minha irmã, minha preciosa e amada Ana, naquela sirigaita.

 

ADELAIDE DITTMERS - SUTILEZAS DA VIDA

 

 


SUTILEZAS DA VIDA

Adelaide Dittmers

 

Na sala de reuniões, os líderes da empresa estavam sentados em volta de uma comprida mesa.  As conversas sérias ou corriqueiras corriam de um lado para outro.

Um homem de uns quarenta anos entrou e dirigiu-se para a cabeceira da mesa. As vozes foram se apagando.

Respeitado e temido pelos seus subordinados, muito inteligente, intransigente e imprevisível em suas ações e avaliações, atordoava todos com suas decisões categóricas, em que sua vontade tinha que prevalecer acima de todas as sugestões contrárias.  Não era estimado, apenas tolerado por todos, no entanto, sob seu taco, a empresa prosperara, tornando-se uma das mais bem sucedidas em seu ramo de negócios.

Sentou-se e as ideias, sugestões e planos foram debatidos, alguns aceitos, outros não.

O vice-presidente colocou algumas objeções nas decisões do impetuoso chefe e uma discussão acalorada esquentou o ambiente. Há algum tempo, todos notavam uma forte divergência entre eles.

Jorge, o segundo homem da empresa, era um homem calmo e ponderado, mas firme em expor e defender suas ideias, opondo-se muitas vezes às decisões do chefe supremo.

Depois de muitas discussões e acordos, a reunião foi encerrada e, como sempre, muitas questões não foram resolvidas.

Alberto foi para seu escritório.  Estava irado com o enfrentamento de Jorge.  Recostou-se na cadeira, girando-a de um lado para outro, como se sua autoridade estivesse balançando dentro dele, entre o poder que tinha em mãos e uma insegurança escondida bem no íntimo de seu ser. Tinha que deter Jorge.  Ele não podia desestabilizá-lo, era o cérebro da empresa.

Ligou o computador.  Uma infinidade de e-mails saltou à sua vista.  Começou a lê-los e anotar o que achava importante.

De repente, o celular tocou e ele sorriu. A voz macia e o olhar açucarado atenderam à ligação. Era sua namorada atual.  Bonito e com uma presença marcante, conquistava as mulheres, colocando-as num altar, para depois, quando se cansava, dispensá-las como fossem objetos descartáveis.

 

- 2 –

 

Jorge chegou ao seu escritório exausto pela discussão com Alberto. Como um homem podia ser tão egocêntrico? A empresa estava funcionando bem.  Tinha que se reconhecer que Alberto era um excelente administrador, mas não fazia tudo sozinho.  Várias vezes já tinha se apoderado de ideias que não vieram dele e, aos olhos da matriz americana, ele era o único responsável e o fio condutor do crescimento dos negócios.

Dias depois, Jorge foi surpreendido por uma videochamada, em que um dos diretores americanos o cobrava por uma atitude, que não tomara. Percebeu imediatamente que estava pisando em um campo minado.  Ao desligar, seu sangue fervia. Respirou fundo para se acalmar e jurou a si que iria retaliar essa rasteira.

A extrema discrição de como Alberto levava a vida particular, como tivesse erguido um alto muro, que o separava da convivência com as pessoas próximas, sempre o deixou curioso.  Quem era aquele homem, afinal?

Com muita astúcia, aproximou-se da secretária de Alberto e, conversando com ela, soube que ele era muito discreto e fechado.  Trocava de namorada constantemente e a única pessoa a quem parecia ter afeto era sua mãe, a quem visitava ocasionalmente, mas não tinha conhecimento de onde morava, nem mesmo qual era seu nome.

Jorge mastigou essas informações por dias e resolveu contratar um detetive para segui-lo.  Quinze dias depois, o homem lhe trouxe uma informação, que o surpreendeu.  Viu o grande homem entrar em um prostíbulo de luxo. O espanto estampou-se no rosto dele. O mau cheiro da descoberta franziu seu nariz.  Alberto, o arrogante todo-poderoso, frequentava prostíbulos. Tinha que investigar isso.

À noite, após ter tido uma feia discussão com a esposa, que não o queria metido nessas coisas, saiu e foi ao lugar.

Admirou-se com o requinte do ambiente. A fumaça e o cheiro de cigarros espalhavam-se pelo ar.  Poucas luminárias deixavam o lugar envolvido em mistério e expectativa.

Uma recepcionista o atendeu, o levou até uma mesa e lhe ofereceu uma bebida, que ele prontamente aceitou para aliviar a tensão que aquela tão inusitada situação estava lhe causando.

O drinque foi lhe trazido por uma bonita jovem, que se sentou ao seu lado com um olhar provocativo.  Jorge tentou se manter natural e sorriu para ela. Fingindo interesse, disse que quem recomendou o lugar foi um amigo, Alberto, e perguntou se ela o conhecia.

— Alberto? Há muitos Albertos, que aparecem por aqui.

— Dias Leme, completou.

— Ah! Albertinho.  Todas aqui o acham um gato, mas não podemos nos aproximar dele.

— Verdade? Exclamou com cuidado, esperando o que viria.

— Morgana não nos perdoaria!

— Ela é assim tão ciumenta!

 A moça caiu numa gargalhada.

— Muito!  É a mãe dele e a mandachuva de tudo isso aqui.  Jorge jogou o peito para trás, como se tivesse levado um soco. Ficou calado por uns instantes. O grande homem era filho de uma cafetina e com certeza ex-prostituta.  Emborcou a bebida de uma só vez. Disfarçando, sorriu para ela.

Tirou o celular do bolso e fez uma careta:

— Meu Deus! Meu filho acidentou-se.  Tenho que ir.  Disse, fingindo estar muito assustado.

E com um olhar sedutor, completou:

 — Volto outro dia.

O ar fresco da noite foi absorvido não só pelo seu corpo, mas por sua alma.  Tinha um trunfo para encurralar o arrogante chefão.  

 

- 3 –

 

Entrou no escritório de Alberto com passos firmes.  Cumprimentou-o sério e o outro mal levantou a cabeça para responder.

Estava ali para defender um grande projeto, que a equipe elaborou com muito esmero e competência, e que ele fora o responsável em dirigir.

Sentou-se e foi direto ao assunto, colocando os papéis que continham, passo a passo, a organização do trabalho.

Alberto pegou-os, folheou e os leu rapidamente.

— Vejo que seguiram minhas orientações.  Está ótimo esse projeto.

Jorge levantou as sobrancelhas.  Ele não havia colaborado em nenhuma parte daquele trabalho.  Disfarçou um sorriso irônico.  Como sempre, queria ser o responsável por tudo o que era positivo na empresa.  Pousou um olhar firme e diante dele estava um homem ainda jovem, querendo defender sua posição. 

De repente, um sentimento contraditório tomou conta dele. O passado o tornara assim. A altivez, a intolerância, eram filhas da vergonha, que cultivava dentro de si por ser filho de uma prostituta, com certeza criado em um prostíbulo. Como teria sido sua vida de criança e adolescente? Mesmo que sua mãe tivesse tentado separá-lo de seu trabalho, ele devia ter se sentido só e à margem do caminho de outros jovens.

O desejo de revanche se desvaneceu naquele momento. A piedade transbordava de seu rosto.

— Você é um grande executivo, Alberto.  Merece a posição que ocupa.  Posso imaginar como se esforçou para chegar onde está.

Alberto olhou desconcertado e surpreso para ele.   Sempre se concentrou em fazer um bom trabalho, não se importando com a opinião dos que estavam ao seu redor. Gostar ou não dele não era importante.  Naquele momento, porém, as palavras de Jorge tocaram no fundo, de sua alma.  Ele se sentiu aceito.  Não precisava lutar o tempo todo para ser visto e considerado. Tinha que se libertar de suas profundas inseguranças.

Estendeu a mão para Jorge sorrindo e, pela primeira vez, disse:

— Muito obrigado!

 

RECO-RECO - Pedro Henrique

 


RECO-RECO

PEDRO HENRIQUE


“Tá vendo aquele homem,

ele não é o diabo.

Pode ser pior, mas é homem.

Pode ser filho de Deus, mas é homem.

O homem é o barro do homem.”

 

Carla madeira

 

     Como se torna essa unidade podre chamada eu?

     Experienciando.

     Infância, cicatrizes, decepções, sorrisos, escárnios, paixões…

     Quem pode reduzir a uma única palavra?

     A vida, não nos concede a dança interminável do prazer. É preciso, há quem diga, o desmoronamento de tudo. Bendito seja se fossemos infindáveis baús da benção. Mas… como eu odeio esse mas.

     Sabe, às vezes me questiono se porventura a cegonha tivesse errado o trajeto onde é que estaria. Seria melhor ou não?

     Presumo que sim, pois o deleite de ser e ter seriam irmãos gêmeos no qual daria as mãos e iriam juntos ao baile do júbilo.

     Saibam que sei tudo, todavia darei-lhes as migalhas. É preciso, ó, leitor, exercitar o imaginário. Pensem, reflitam e descubram o que levou aquele elemento até ali.

     Ah, leitores… Não somente hoje, mas até então, lhes digo:

     É mulher. Entre os tecidos múltiplos e linhas diversas ela executa seu ofício com maestria. O reco-reco da máquina de costura lhe confere uma dose demasiada de alegria e afago. Ao menos não é empurrada ao abismo visceral de tudo e sente-se, pela primeira vez, humana.

     Ela tem os olhos caídos, a feição carrancuda. Há uma fria casca de amargura que cobre seu corpo. Vejo fome e sangue. Vejo trauma.

     Seu nome? Ah, sim. Firmina dos Santos Silva. Uma mulher que já foi uma criança. Plasmou-se o quanto pôde e ainda assim, nada lhe conferiu um outro desfecho.

     “Feia” era o substantivo abstrato que passara a infância e a adolescência inteira escutando. Todos lhe negavam a condição de digna. Repeliam, com sadismos, sua existência.

     Houve tapas e arranhões. Um “cabelo duro, Bombril, vassoura de piaçava” e por aí vai.

     Ansiava em ser vista. Olhada. Desejada. E tudo isso fermentou-se em seu âmago quando seus olhos repousaram sobre ele: Gabriel.

     Ele era alto, magro, até demais, tinha os cabelos encaracolados e um sorriso de derreter multidões.

     Firmina sabia que não teria a menor chance, entretanto quem poderia invadir seus sonhos e saber que na calada da noite sua boca tocava a dele em seus mais discretos sonhos. Voava.

     Tinha uma amiga: Penélope. Similarmente não era lá uma mulher a provocar gozos. Porém, contudo, todavia, tinha seus encantos.

     Diziam-se em todas as bocas as palavras “safada” e “puta” para descrevê-la. No entanto, tais sentenças não tinham efeitos severos em seu íntimo.

     Era atirada e pronto. Queria beijo, desejava voluptuosidades, então os buscava de queixo erguido. Gabriel gostou, e muito, disso. Pena que Firmina foi quem calada, contendo o animal enjaulado dentro de si, teve que ver tudo. Absolutamente, tudo.

     Foi algo um tanto simples, uma língua se encontrando com a outra e desse pequeno ato a carne arrepiar o sangue enlouquecer e o caldo suculento, que é o presente da biologia ao homo sapiens, jazer sobre os corpos curiosos.

     Firmina, então, decidiu se afastar de Penélope. Não tinha estrutura para olhar nos olhos daquela que mesmo sabendo de sua paixão foi e quebrou o pacto invisível de confidentes.

     Além disso, da mesma maneira que vinho não pode ser água, soube que nunca seria a amiga. Que os olhares atrevidos não repousariam, jamais, sobre ela. Portanto, se não podia ser, ninguém, nem a colega, seria.

     “Vagabunda”, “meretriz” e “promíscua” não passavam de meros eufemismos para o que Firmina realmente queria sentenciar sobre a ex-amiga.

     Queria vê-la sofrer. Ser colocada de escanteio, tirada do centro e saber na carne o que é ser a “feia” da escola.

     Mas tinha o coração frágil demais. Havia vezes que se arrependia de seus feitos, lembrava de ambas e de como eram felizes.

     Se conheceram por aquela coisa genuína dos corações pueris: “vamos brincar?” “Sim.” E pronto, é o suficiente para a vida engendrar o afeto e a intimidade.

     Em seguida, nos anos por vir, só há lapidação e confirmações. No entanto, nada nesta vida dói mais que ter o coração arrancado de você, olhá-lo ser dado aos cães e ter a certeza de que és indigna.

     Logo depois, as águas mudam e vem a maturidade, porém a ferida ainda sangra, então o reco-reco bálsameia o quanto pode.

     A armadura também ajuda. A muralha indelével que segrega o eu do externo, a linha imperceptível onde quem ousa atravessar, morre.

     Todavia, o plano não contemplou as possibilidades e coração é uma terra onde o dono não manda.

     Com isso, um belo dia ou um triste dia, em uma tarde como outra qualquer, Firmina abre a porta de sua casa achando que se trata de uma simples encomenda e dá de cara com alguém que possui uma altura significativa, cabelos lindos encaracolados e um sorriso que permanece derretendo multidões.

     Depois de três décadas, desde o dia que vira o beijo, ali estava ele: pronto, sereno e rompendo as estruturas de um passado há muito enterrado.

     “É a senhora que faz costura? Tô precisando remendar essa blusa aqui.” “Sou eu sim, moço.” “Que bom. Posso deixar ela com você, então?” “Pode sim.” “Ótimo. Quando posso voltar para buscá-la?” “Amanhã mesmo já tá pronto.” “Que bom. Hurm. Que coisa.” “O que?” “Nada não.” “Pode falar, moço.” “Nada não, é que… Você não me é estranha.”

     Essas palavras são suficientes para fazer o coração-pedra de Firmina, acelerar desordenadamente. É um verdadeiro cavalo sem freio, pronto para negar qualquer afirmação, só não consegue esconder-se diante de “Você era a amiga de Penélope na época da escola, não era?”

     Pronto. Como se esconde agora? “É. Nós éramos colegas.” “Hurm.” “Ficou sabendo? Ela foi embora. Se mandou pro Rio.” “Olha, que coisa.” “Sim.” “Bom, preciso ir agora, moço, pode vir buscar amanhã, tá.” “Pode deixar.”

     E assim o destino conduziu seu plano arteiro. Quem diria. Sua ex-amiga morando no Rio de Janeiro. Lembrou do passado. O que ocorreu a outrora inundou o terreiro seco que ela era e irrigou suas plantas há muito sem vida. Também lhe conferiu um sorriso que originou lágrimas. Solitárias, mas nostálgicas, até vir a iconografia pintada à ódio.

     Na manhã seguinte ele veio. Mais uma vez, alto, belo e sorridente. Conversaram. Se olharam, flertaram...

     Não houve outra, o barranco desmoronou por inteiro, fragmentou-se gradualmente até se dissolver.

     Pensou. Sorrio. Olhou. Revivel. Moderou. Articulou. Tudo isso, rompendo pedaço por pedaço da armadura feita a ferro e fogo para blindar-se.

     Sentiu, mesmo com um pé atrás, que chegara a hora de alçar. Queria porque queria mais. Não conteve-se, o fogo rugia, as lembranças gritavam, os eventos cantavam, precisava de pele.

     Concebeu o sêmen na madrugada com o cheiro dele em outra peça que deixara.

     Queria absorver o máximo que podia. A oportunidade estava ali, pronta, feita, despida e explícita. Quem não pegaria? Onde reside aquele que não teria coragem de ir? Atravessar a linha e tocar? Era sua oportunidade. Portanto, pegou, tocou, se lambuzou…

     Agarrou com demasiada força o que pôde e sentiu como sempre idealizou a erupção. Não era mais a “feia” da escola, finalmente conseguiu, era ela: Penélope.

     A vagabunda que provocava as genitálias e deleitava-se com a fila de pretendentes se prostrando diante de seu poder, de seu veneno.

     Costurou, como nunca antes havia feito, com nenhuma outra roupa, o rasgo da peça. Queria dar a ele o melhor de si, mostrar que tinha suas pulcritudes, algo que ele pudesse olhar e admirar.

     Entretanto, na manhã seguinte, indo ao portão, a realidade deu seu nocaute mais certeiro.

     Ele veio e ao seu lado havia uma mulher que aos olhos dão as migalhas do que são os anjos e a qual ouviu Gabriel conferir o título de “esposa”.

     Ela por sua vez, trouxe consigo um vestido preto lindo, sensual, que concedia-lhe um ar de deusa, e que precisava de um remendo.

     Firmina pegou-o contendo a tremedeira denunciativa de suas mãos e sorriu perpetuando o enjaulamento do bicho selvagem que vivia em seu peito.

     Em seguida, devolveu a peça a Gabriel e entrou no quarto com os olhos inundados pelas águas sujas da vida.

     Quis gritar, quebrar, matar… Quis dar a si mesma alguma punição que fosse severa o suficiente para romper com sua faceta idiota e de uma vez por todas fundir eternamente a armadura a sua alma. 

     Sabia que precisava ir ao extremo, só assim para o barro não despencar, não derreter.

     Foi ousada para a frente do espelho, despiu-se com dignidade, colocou o vestido preto sensual e sentiu-se mulher.

     No dia seguinte, quando os pombinhos vieram buscar a roupa, ela fez questão de sair com o vestido e num ato rebelde começou a gritar aos quatro ventos.

     Todos os vizinhos vieram olhar a doida que rodava a baiana na calça. Então, os anos emergiram, a costura se rasgou, Penélope bradou e o animal da jaula se soltou.

     Com braveza e incorporando a histeria, ela xingava enquanto rasgava o vestido até tudo ser revelado. E de cada pelo pubiano o ódio fecundou seu louvor e deu a cara a tapa. “Estão me vendo, eu sou a promíscua, eu sou a piranha. Agora me olhem, eu ordeno que me olhem, eu quero ser vista. Deitem seus olhares atrevidos sobre mim, seus, filhos da puta. Eu quero, eu exijo, ser vista”.

     E assim o destino cumpriu sua promessa. Estava feito, havia chegado ao ato final, quer mais humilhação que isso?

     Há quem diga que ela entrou em casa depois desse acontecimento e nunca mais o som do reco-reco foi ouvido.

     Hoje, depois de quarenta anos a casa está abandonada, completamente decadente.

     Os bêbados a transformaram em dormitório, os jovens em motel, as crianças lá brincam e os mais velhos apenas param e com o olhar longínquo, pensam.

     Mas ninguém, absolutamente ninguém, tem coragem de, depois das dezenove horas passar por ali, pois um som de máquina de costura soa melancólico e um tanto distante afirmando que ela veio dar aos vivos aquilo que eles sempre lhe deram: medo.

     Só houve uma vez que uma moça veio, olhou por um tempo, como se algo a ligasse aquilo tudo, então, timidamente, fiquei com vontade de perguntar.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Conselhos literários




O que é escrito sem esforço em geral é lido sem prazer. 

 (Samuel Johnson)




O único recurso que conheço é o trabalho. A escrita tem leis de perspectiva, luz e sombra, assim como a pintura ou a música. Se você já nasceu conhecendo-as, ótimo. Se não, precisa aprendê-las. E depois precisa rearranjar as regras a fim de adaptá-las a si próprio. 

(Truman Capote)



Sempre sonhe e atire mais alto do que você sabe que pode fazer. Não se preocupe somente em ser melhor do que os seus contemporâneos ou predecessores. Tente ser melhor do que você mesmo.

(William Faulkner)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

VÊNUS - Alberto Landi

 

 



VÊNUS

Alberto Landi

 

A beleza e a paixão se entrelaçavam nas colinas de Roma.

Vênus, a divindade do amor, observava o mundo mortal com o coração repleto de desejos. Sua presença era como um campo de flores em plena primavera, atraindo todos ao seu redor. Mas havia um mortal que chamou sua atenção de uma maneira muito atraente. Adônis.

Adônis era um jovem caçador, forte e destemido, cuja essência vibrava como o canto suave de um beija-flor.

Sua coragem e graça fascinavam Vênus, que se sentia atraída por ele como um colibri atraído pelo néctar das flores.

Um dia, decidida a conquistar seu coração, desceu da parte mais alta de Roma e revelou-se a ele.

— Adônis, disse ela, com uma voz suave como se fosse o sussurro do vento entre as folhas, vem e fique comigo. Deixe as caçadas para trás e conheça o amor eterno que te ofereço.

Mas ele, embora encantado pela beleza da divindade, era fiel à sua paixão pela caça.

— Vênus, entendo seu chamado, mas o impulso que sinto pela liberdade nas florestas é tão forte quanto o desejo de um beija-flor pelo pólen das flores. Preciso seguir meu caminho.

Essas palavras cortaram o coração dela como uma lâmina afiada. O ciúme e a frustração tomaram conta dela. Como poderia alguém rejeitar tal amor? Ainda com lágrimas nos olhos, implorou.

Por favor, não deixe que sua paixão pela caça te consuma. O amor que te ofereço é mais profundo do que qualquer aventura.

Mas ele estava decidido. Afastou-se dela, afirmando precisar viver sua própria vida. O desespero tomou conta de Vênus enquanto ela observava seu amado partir.

Na manhã seguinte, enquanto os primeiros raios de sol iluminavam as florestas verdes ao redor de Roma, ele partiu para mais uma caçada.

Ela observou-o à distância, seu coração dividido entre amor e dor. Ao longe, ela viu um javali feroz se aproximar dele.

— Adônis! Gritou Vênus com todas as suas forças que tinha.

Mas era tarde demais. O animal atacou com fúria descontrolada e Adônis caiu no chão ferido. O grito dela ecoou pelo vale, enquanto ela corria até ele.

Ao chegar ao lado de seu amado, ela sentiu o peso do mundo sobre seus ombros.

— Por que você não me ouviu? Eu poderia ter salvado você!

Ele sorriu fracamente em meio à dor.

— Vênus, disse ele com voz suave, eu sempre amarei você, mesmo na eternidade!

A tristeza tomou conta do coração dela, enquanto segurava seu amado em seus braços. Ela percebeu que o amor verdadeiro não poderia ser aprisionado, ele era livre como o voo do beija-flor entre as flores.

Ela fez uma promessa: Você viverá para sempre em meu coração e nas flores que brotarão na primavera. Assim nasceu a tradição das anêmonas vermelhas, flores que simbolizavam tanto a beleza quanto a fragilidade do amor.

E assim, enquanto os anos se passavam e as estações mudavam em Roma, ela continuou a honrar Adônis através das flores que floresciam em sua memória, uma lembrança eterna de um amor imortal marcado por conflito e emoção!

 

 

 

O PASSADO VOLTA DE REPENTE! - Dinah Ribeiro de Amorim

 




O PASSADO VOLTA DE REPENTE!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Margarida caminha, vagarosamente, pelas campinas verdejantes. Consegue chegar ao vale. Senta-se com esforço e estica o corpo, relaxando-se ao sol. Borboletas coloridas esvoaçam à sua frente, com tonalidades especiais. O perfume de flores paira no ar.

Fecha os olhos e pensa, conseguiu chegar ao final.

Anos de turbulência e esforço, vontades sufocadas, sentimentos de fracassos e esperanças, mas, objetivos alcançados, comprou a moradia na aldeia campestre.

Velha, cansada, de movimentos fracos e lentos, menor disposição que antes, mas ainda feliz. É sua, agora, a casa sonhada. O passado é vencido pelo presente.

Dona por direito, nela nasceu; foi expulsa logo cedo, em companhia da mãe, aos cinco anos.

Guardou a lembrança saudosa daquele local, daquelas paisagens verdes, dos folguedos e sonhos de criança, na esperança de um dia voltar.

Voltou, afinal.

O tempo presente é a realização do sonho, a concretização final da atribulação, do trabalho feito.

Pena que sua mãe não o alcançou. Não viveu a tempo.

Pensa na mãe e a vontade aperta, sente saudade, lembra o passado.

A moça bonita, cabelos louros ao vento, puxando-a pela mão, a mala grande na outra, andando apressada em direção ao trem. Iam para a capital, em busca de trabalho.

O patrão, seu pai, o dono da casa e dono delas, também, mandou-as embora. Não era casado e considerava a mãe uma simples amante ou governante da casa. Foram dispensadas a pedido de um amor atual, moça que considerou noiva, com quem pretendia casar.

Margarida, em menina, não entendeu a situação, no momento, só percebeu, triste, que estavam deixando a casa, o único lugar que conhecia, o homem que chamava de pai, em busca do estranho, do desconhecido, que lhe causava medo e decepção.

Um futuro incerto as aguardava e passaram mesmo por muitas incertezas.

A mãe, moça e bonita, mas sem instrução, só conseguiu trabalhos à custa da aparência física, numa época em que a mulher só era considerada do lar ou fora dele, empregada de algum estranho.

O difícil era manter a filha junto a ela e a menina viu-se colocada num internato de freiras para órfãos ou indigentes, mas com estudo. Foi difícil separar-se da mãe e sentiu-se magoada, com isso, por muitos anos. Não entendia o porquê?

Recebia suas visitas semanais, que rareavam, às vezes, quando ela conhecia alguém mais especial, e viajava por uns tempos.

Os anos se passaram e Margarida, mocinha, saiu do orfanato, com emprego fixo de babá, numa casa de família. Os primeiros anos de escola, completou. Lembra com saudade de algumas irmãs que a ajudaram e foram carinhosas com ela. Davam-lhe bons conselhos.

Maias tarde, ela e a mãe conseguiram morar juntas.

Como babá, juntou um pouco de dinheiro e, auxiliada pela mãe, que resolveu empenhar-se em costurar, frequentou uma escola à noite, para completar os estudos.

Com o tempo, seus sentimentos íntimos, suas revoltas, transformam-se em sonhos e ambições.

Vontade de viver melhor, dar à mãe uma vida boa, já se queixava das vistas, vieram à sua cabeça e começa a pensar grande, auxiliada por leituras e exemplos aprendidos.

Vem a vontade de cursar uma faculdade, prestando vestibular para jornalismo.

Torna-se brilhante jornalista, empregada numa revista de grande popularidade local, a revista CLÁUDIA.

Seu nome começa a aparecer e é convidada para grandes entrevistas e realizações sociais.

Seus artigos, relacionados à vivência infantil e familiar, são muito apreciados e começam a ser procurados para dar cursos sobre isso.

A vida de Margarida se transforma novamente. Passa a ser uma pessoa conhecida, de grande popularidade, inteligente e bondosa, professora de ensinamentos. Uma filósofa, praticamente.

Com isso, adquire uma razoável situação econômica, podendo realizar, em grande parte uma modificação para melhor em suas vidas.

Após alguns anos, a mãe, cansada e mais velha, adoece, recebendo de Margarida muita atenção. Sua visão também fica comprometida, tendo o auxílio de uma enfermeira, uma bengala para caminhar em casa e um cão guia para ir às consultas médicas. Auxílios às pessoas com dificuldades visuais.

Preocupada com a mãe, sua única família e a pessoa que mais amava, Margarida dedicou-se totalmente a ela. Esqueceu-se de sua profissão e sonhos.

Queria realizar os sonhos de sua mãe e perguntava-lhe sempre o que tinha vontade.

Espantou-se um dia, um pouco antes dela falecer, quando lhe respondeu querer voltar a ver a casa onde moraram, no campo.

Sua mãe ainda sentia saudades de seu pai, e tinha o mesmo sonho que ela, ter a casa em que nasceu.

Começou a preocupar-se com isso, querer sondar a situação, não do pai, mas da casa.

Colocou corretoras locais para averiguarem quem ainda era o dono da mansão campestre? Curiosa, soube que estava à venda, sem nenhum interessado e a moradora local, uma viúva, em situação difícil.

Volta para dar a notícia à mãe e encontra-a, no hospital, levada às pressas. Problema de coração.

A mãe de Margarida falece, não recebendo a notícia sobre a casa.

Muito triste, a filha, em consideração à mãe, esquece o assunto, passando alguns anos dedicada ao seu trabalho. As lembranças permanecem escondidas em seu coração amargurado, só deixando aflorar os sentimentos presentes.

Leva alguns anos na profissão que escolheu e sente-se bem com isso, aliviando a dor do falecimento da mãe e tentando alegra-se com o presente atual que a vida lhe oferecia!

Um dia, lendo um jornal mais antigo, vê um anúncio que lhe chama a atenção: leilão municipal no interior! Aos interessados, segue-se a data e mais informações.

Descobre que a sua primeira casa, seu sonho antigo e de sua mãe, faz parte desse leilão.

Sonda melhor a respeito e vai assisti-lo no dia certo.

Tem, na noite anterior, um sonho com a mãe, sentindo-se feliz.

Antes do leilão, vai até a casa para verificar seu estado. O terreno, ainda bom, chama-lhe a atenção, mas a casa, em si, necessita de reforma.

Conversa com moradores locais e fica sabendo que o antigo dono faleceu cedo, deixando a esposa como herdeira. Não tinham filhos.

A esposa viúva, sem tino algum sobre negócios no campo, plantação e criação, levou tudo à falência, falecendo também pobre e desgostosa.

Conclusão: propriedade do município, estando à venda.

Consegue ganhar a causa. Compra novamente sua casa de nascimento. Volta a ser a proprietária, embora adulta e já com idade avançada.

Inicia uma reforma, reconstrói o que era viável e lhe traria retorno financeiro e volta, feliz, em sua primeira moradia.

Seu passado torna-se, novamente, o presente e o futuro em sua vida.

Apreciamos uma Margarida feliz!

A SOMBRA DO LIMOEIRO - PEDRO HENRIQUE

 

     


 

A SOMBRA DO LIMOEIRO

PEDRO HENRIQUE

 

Na tarefa indomável que é viver, somos colocados sempre à prova. Seja pelas dinâmicas, por vezes, exaustivas do cotidiano, seja pela complexidade dos caminhos que nos trouxeram ao lugar onde estamos hoje.

     Nada tenho a amaldiçoar. Cheguei no pico mais alto. Só que há algo. Uma coisa cuja nomenclatura foge das minhas mãos como água e então é inútil querer prender essa sombra que paira sobre mim e lançar a ela a luz da linguagem.

     Tenho oitenta e dois anos, já sou aposentada, ganho o que um pai de família neste país nem que trabalhasse a vida inteira ganharia. Entretanto, visto o manto da solidão cotidianamente, entrego-me sem temor ao meu percurso. Sou fêmea, sou corajosa, sou mulher.

     Sabe aquela clássica história da menina do interior que morava com os pais e que era a única filha de sete irmãos? Pois bem, essa sou eu. Lembro sempre, quando deito nesta cama, de como meu pai era metódico.

     Ai de mim se porventura fosse vista de conversinha com algum moleque. Haveria, indubitavelmente, uma boa vara, retirada do nosso limoeiro, à minha espera. Pronta, decidida e cruel, para me dar o que meu pai enchia a boca para chamar de educação. “Eu bato porque te amo.”

     É engraçado que Alberto, meu falecido marido, disse a mesma coisa quando me bateu pela primeira vez.

     Não ache você que ele era um bêbado. Não. Era um homem educado, bem portado, rico e recheado de títulos de honra.

     Mas o mal não olha para o status em que estamos. Ele vem, correndo, faminto, desejando colossalmente devorar-te. Tirar de ti o afeto e a dignidade.

     No entanto, a vida não se resume ao doloroso. Tive mãe. Uma mulher que os próprios deuses se curvavam ao seu passar, porque viam ali a bondade de raros corações.

     Afeto era o substantivo abstrato que a classificava de forma completa. Beijava, abraçava, sorria… Angariou a ciência de que um gesto vale mais que mil palavras.

     Lembro que sempre ao chegar na cozinha para ajudá-la a preparar o almoço, era recebida por muitas carícias e toques. Ah… como aquela mulher me amava.

     Com meus irmãos também não era diferente. Não se ressentia em beijá-los ou pentear seus cabelos para que fossem belos e irresistíveis ao bar com papai.

     Afirmo com convicção que foi uma princesa em outra vida. Seu jeito gracioso denunciava tal tese. Não havia um que não notasse a forma elegante de seu caminhar ou sua educação erudita perante todos.

    E com isso, também surgiam os indissolúveis questionamentos: “O porquê de uma mulher tão bela como ela se casaria com um homem tão avarento?”

     Papai era o oposto. Sujo, ignorante, sem respeito algum aos seus semelhantes. Era bruto, selvagem. Nunca negou que pusera a sete palmos do chão uma vida. E dizia seu feito com orgulho, pois como o pai lhe ensinara: isso lhe confere posição de macho.

     Mas o que os questionadores não viam nas águas turvas desse rio era o desejo incontrolável de liberdade, de voos altos, de sair e ser aquilo que se pode ser.

     Coitada de mamãe, soube como eu hoje sei. Soube…

     Bom, voltando. Virgindade, essa era uma palavra tida como sagrada em minha casa. Meu pai dizia que ninguém arrancaria isso de mim e que, se surgisse na Terra um homem decidido a fazê-lo, deveria ser um doutor.

     E o destino armazenando essa informação tramou seu plano astuto. Ao invés de Alberto de Alcântara Albuquerque, chegar em outra cidade, na qual fora acionado para defender um fazendeiro milionário. Veio diretamente ao meu encontro.

     “Menina, onde fica a fazenda Boa Pessoa?” Foram suas palavras. Eu tinha quinze anos na época. Hurm! Todos ficaram me olhando falar com aquele sujeito que chegara ali com um carro que desperta em todos a ânsia de saber mais.

     E naquele momento, mesmo sabendo que era errado falar com qualquer pessoa do sexo oposto, não me contive perante a possibilidade da vaidade e de mostrar para toda aquela gentinha que eu era mais do que a filha de Antônio cachaceiro.

     “Não, sei não, moço.” E com essas palavras, a vida laço-me ao declínio e à benção dos dias porvir.

     Meu pai logo foi chamado por um dos meus irmãos que afirmou, idealizando meu encontro com o fragmento do limoeiro, que eu estava descumprindo à luz do dia, seus mandos.

     No entanto, ninguém, nem Antônio cachaceiro, teria coragem de chutar a oportunidade que batia tão carinhosamente à sua porta.

     Meu pai se aproximou e, a essa altura, Alberto perguntava-me se namorava.

     “Não, não, senhor, ela é moça pura. É minha filha.”

     “Ah, então é o senhor o culpado dessa belezura existir?”

     “Hurm! Sou sim.”

     “E o senhor? Qual é a vossa graça?”

      Alberto não disse uma palavra sequer, apenas pegou a carteira e tirou dela um cartão. Papai não sabia ler, então deu para mim, e quando li o “Dr.” na frente do nome Alberto, foi o suficiente para quatro horas depois, não antes, claro, de uma longa conversa entre os dois, eu estar entrando naquele carro, sob o olhar curioso de todos, e indo com o doutor para bem longe dali.

     Ainda hoje, questiono, com tristeza, se foi a melhor decisão que meu pai tomou. Alberto nunca foi o melhor marido do mundo, não era nem de longe agradável.

     No começo, foi mágico. Finalmente, eu estava em um lugar onde eu não tinha que ter medo de me esconder ou não usar a roupa que verdadeiramente queria usar.

     Mas com os anos, o grito veio. A princípio era por coisas banais, logo em seguida se tornou mais recorrente.

     Só que… O que era um grito para quem outrora vestia os trapos comprados na feira por mamãe e hoje usa a mais alta grife?

     E quando, depois do grito, o tapa marcou meu rosto. Lembrei de papai. “Eu bato porque te amo.” Então me calei.

     Quando Alberto morreu, me veio à mente, ao olhar para o seu caixão, o enterro de mamãe. Que antes de partir, havia me dito que eu nunca poderia deixar um homem mandar em mim e que era para fazer o que fosse preciso para sair daquela casa.

     E naquela noite, após sair do meu quarto, papai a amou muito. Oh, como amou.

     Anos mais tarde, quando o doutor e eu fizemos o aniversário de trinta e cinco anos de casados, Alberto veio com fúria me amar também, mas eu já estava pronta.

    Garanto a você, caro leitor, que eu o amei, naquele dia, mais do que tudo no mundo.

 

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...